Cuidado, quebra!

4 05 2025

Jarra, 1522-1566

Jingdezhe, China

porcelana e prata persa

Victoria & Albert Museum, Londres

 

 

Essa jarra é um dos exemplos mais antigos de porcelana chinesa com brasão europeu. O brasão representado é provavelmente da família Peixoto de Portugal atribuído a Antônio Peixoto, filho de Lopo Peixoto, que tinha esse escudo de armas em 1511.  Antônio Peixoto, navegador e comerciante, embarcou em uma missão à China com seus sócios: Antônio da Mota e Francisco Zeimoto. 

Mais informações no site do Victoria & Albert Museum de Londres.





Mulher medieval

28 04 2025

Penelope escrevendo para Ulisses, c. 1500

Página com iluminura da obra de Ovídio: Heroides versão em francês

Biblioteca Nacional da França

 

 

No livro O leitor comum de Virgínia Woolf, no primeiro ensaio, Os Pastons e Chaucer, somos apresentados a um detalhado e simpático retrato de uma senhora: Margaret Paston(c. 1420-1484). Virginia Woolf traz aos nossos olhos, a personalidade que detectou através das cartas para membros da família   Primeiro me lembrei do marcante diário e memórias, The memoirs of Glückel of Hameln, (1646- 1724) [não encontrei em português] que, começado em 1690, foram escritas trezentos anos depois das cartas de Margaret Paston. Surpreende o quão pouco mudou naqueles séculos todos o papel da mulher, suas preocupações em manter a família e os  bens da família protegidos. Esse era de fato um dos papeis da mulher, esposa de comerciante ou da pequena nobreza ou dos senhores de terras. 

Apesar de leitora assídua sobre idade média, sempre me assombro com o que aprendo sobre a vida dessas mulheres no passado. Letradas, se comunicavam com membros da família regularmente, por cartas, nos dando assim uma maneira de imaginarmos suas vidas com maior precisão. Mas mais delicioso ainda é ver como Virgínia Woolf constrói um retrato tridimensional dessa mulher que conheceu só através de suas cartas. Para escritores de ficção não só a descrição de Margaret Paston assim como a do Castelo Caistor em Norfolk. Além, é claro, de nos ensinar como observar a obra de Chaucer.   Aqui fica um pedacinho do ensaio de Woolf, para servir de acepipe literário.

 

“As longuíssimas cartas que escreveu tão laboriosamente, com sua letra clara e apertada, para o marido, que estava (como sempre) ausente, não mencionavam a si mesma. Os carneiros tinham destruído o feno. Os homens de Heyden e Tuddenham estavam ausente. Um dique se rompera e um boi foi roubado. Precisavam com urgência de melaço, e ela necessitava muito de tecidos para um vestido.

Mas a Sra. Paston jamais falava de si mesma.

Portanto os pequenos Pastons viam a mãe redigir ou ditar cartas longuíssimas, uma página após a outra, uma hora após a outra; porém interromper um pai ou mãe que escreve tão laboriosamente sobre questões de tamanha importância devia ser um pecado. A tagarelice dos filhos, a sabedoria do quarto de dormir das crianças, ou do seu quarto de estudos não tinham lugar naquelas comunicações elaboradas. Em sua maioria, suas cartas são as cartas de um meirinho honesto para seu chefe, explicando , pedindo conselhos, dando notícias, fazendo relatos. Houvera roubos e carnificina; dificuldades em conseguir o pagamento dos aluguéis; Richard Calle mal conseguira amealhar um dinheiro de nada; e, entre uma coisa e outra, Margaret não tivera tempo de realizar, como deveria, o inventário dos bens que seu marido solicitara. . A velha Agnes, inspecionando à distância um tanto duramente, os afazeres do filho, deve muito bem tê-lo aconselhado a planejar esse inventário, para que tenhais menos o que fazer no mundo,; vosso pai já disse: Onde há poucos afazeres, há muito descanso. O mundo não passa de uma estrada, cheia de infortúnio; e, ao partirmos dela, nada levaremos conosco a não ser nossas boas ações e malfeitos.

Essa passagem ressalta mais uma vez, como a concepção generalizada de que as mulheres na idade média não tinham responsabilidades é errônea. Eram elas as responsáveis pela manutenção, pela adição e preservação dos bens familiares, pelo bem-estar dos filhos e do todos aqueles que se encontravam sob sua guarda, nas terras, nas mansões, nos castelos.

Citação: O leitor comum, Virgínia Woolf, tradução de Marcelo Pen e Ana Carolina Mesquita, Tordesilhas: 2023, p. 34-35

Nota: Cartas de Paston [The Paston Letters] é um do maiores arquivos de correspondência na Inglaterra do século XV. Volume composto de correspondência particular, (por volta de mil cartas) e documentos tais como petições, contratos de aluguel, testamentos, que cobrem três gerações sobre a vida pessoa de uma família na época. Na Biblioteca Britânica em Londres.





Domingo de Ramos na pintura de Duccio

13 04 2025

Entrada em Jerusalém, 1308-1311

Duccio di Buoninsegna (Siena, 1255-1319)

têmpera sobre madeira, 100 x 57 cm

Museo dell’Opera del Duomo, Siena

Esta obra está na parte de trás do altar chamado Maestá. É uma das 26 cenas narrativas da história da Paixão que cobre o reverso do altar.  Está localizado no canto esquerdo embaixo.  A cena mostra Jesus Cristo entrando na cidade de Jerusalém montado num burrico.  Um grande grupo de pessoas entusiasmadas se preparam para lhe dar as boas-vindas colocando ramos, mantos, tecidos, roupas em seu caminho. Há pessoas nas árvores e acima dos muros para melhor verem a cena.

Essa cena é fora dos padrões da arte da época, porque muita atenção foi dada à paisagem com grande detalhes.  O caminhos pavimentado, o portão da cidade e seus muros, batentes, as torres esguias se dominando a cidade, bastante realista. A pequena árvore sem folhas e decrépita  vista por trás do halo de Jesus é a figueira que ele encontrou sem frutos.  Isso indica que Duccio parece ser a fiel representação da cena encontrada no Livro V de Flavius Josephus da obra De Bello Judaico do primeiro século, muito conhecido na Idade Média.

 





Descoberta inacreditável!

18 03 2025

Este painel do artista italiano Cimabue (1240-1302), o mestre de Giotto, precursor da Renascença italiana, foi encontrado em uma cozinha, em cima do fogão numa casa do interior da França, em 2019. Cimabue é conhecido por suas tentativas, algumas vezes bem-sucedidas de incorporar a perspectiva linear em suas obras na esperança de dar impressão de profundidade às cenas representadas.

É esse painel, acima, chamado Jesus escarnecido por Herodes e flagelado.  Com tema da Via Crucis que deixou de ser pintada com frequência  a partir do século XVII.  A obra foi adquirida pelo governo francês e hoje faz parte do acervo do Louvre.  Foi adquirida por €24.000.000 (vinte e quatro milhões de euros) ou aproximadamente R$150.000.000 (cento e cinquenta milhões de reais).

Uma exposição especial sobre Cimabue e sua época, com quarenta obras de seus contemporâneos abriu no Louvre em 22 de janeiro deste ano e ficará aberta ao público até 12 de maio de 2025.  É uma maneira de introduzir o novo painel do artista ao público francês e turistas.  Ele está ao lado da Maestà, [Madona entronada] do mesmo.

 

 

 

Maestà, de Cimabue, Louvre





Resenha: O barman do Ritz de Paris, de Philippe Collin

17 03 2025

Trabalhadores franceses, 1942

Ben Schahn (EUA, 1898-1969)

têmpera sobre papelão, 102 x 145 cm

Museu Thyssen-Bornemisza, Madri

 

 

Mais uma excelente escolha do grupo de leitura Papalivros neste ano — O barman do Ritz de Paris do escritor francês Philippe Collin [Record: 2025, minha edição: Kindle] com tradução de Yvone Benedetti — conta a história de Frank Meier, famoso barman daquele hotel.  Baseado nas próprias lembranças do personagem principal, acompanhamos a tomada do Ritz pelos oficiais alemães desde de o início da ocupação alemã da França, no que é conhecido como governo Vichy até a liberação de Paris, no final da guerra.

São inúmeros os livros de ficção que cobrem a Segunda Guerra Mundial, mas há relativamente poucos tratando do dia a dia da França ocupada, ou seja no governo Vichy.  Lembro-me bem da popular série publicada nos anos oitenta, da escritora Regine Deforges, cujo primeiro volume de três chamava-se A bicicleta azul, e se concentrava no período da França ocupada, mas não na área de ocupação necessariamente.  Um dos livros que li, que me deu outra visão desse período foi o de anotações de um diário do escritor inglês Somerset Maugham, Assunto Pessoal.  Bem mais recente,  houve a publicação do best-seller Toda luz que não podemos ver, de Anthony Doerr, mas mesmo esse não se detém no cotidiano da guerra na ocupação alemã da França. Isso tem aparecido mais em filmes. De qualquer jeito, O barman do Ritz de Paris, vem para preencher esse pequeno hiato.  E fazer muito mais, porque o Hotel Ritz havia sido escolhido como local preferido do comando do exército alemão em Paris.

 

 

 

Essa é uma narrativa ágil, cheia de viradas na trama que não foram inventadas, ou feitas para manter a atenção do leitor. Trata-se de um relato de quem assistiu, vivenciou e colocou sua vida em perigo, vivendo com os nazistas, sendo ele mesmo um judeu austríaco, protegendo outros judeus à sua volta, mas trabalhando em Paris, servindo a todos os militares alemães. 

Para o leitor há ainda o prazer de ver circularem personagens famosos e históricos que encontram no Ritz alívio para o período da ocupação alemã. Conhecido por sua  habilidade de compor deliciosos drinques,  já com fama internacional desde que chegara a Paris depois do sucesso que tivera como barman em Nova York,  Frank Meier diariamente, durante toda a ocupação, se preocupa com os dois mundos que o circundam no Ritz, desde o domínio alemão sobre a capital da França.  De Ernst Hemingway a Coco Chanel, somos expostos pelos olhos de Frank Meier,  aos segredos daquela sociedade e seus truques para sobrevivência.  Nem sempre os generais famosos, escritores ou no caso de Chanel, saem dessa narrativa com o brilho que hoje lhes damos, o que torna a narrativa ainda mais interessante.

 

Philippe  Collin

 

O autor, Philippe Collin, jornalista, escritor, radialista escreveu um livro agradável de ler, coordenou com eficácia as partes do diário de Frank Meier e a narrativa histórica. Ficamos familiarizados com a história do Ritz, que sobreviveu muito bem e até hoje é um marco na paisagem urbana de Paris,  mas também percebemos que a sobrevivência naquelas circunstâncias exigia muita flexibilidade em atitudes, sem comprometer os princípios de cada um.  Essa é uma narrativa que nos faz lembrar que somos humanos e cada um sobrevive de maneira diferente.

Recomendo a leitura, rica em detalhes, em ação, vivaz, mas que deixa espaço para entendermos a complexidade dos sentimentos dos que sobreviveram à guerra. 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.





Novas escavações em Pompeia revelam importante procissão dionisíaca!

27 02 2025
O friso na Casa de Thiasus em Pompéia. Foto cortesia do Parque Arqueológico de Pompéia.

 

 

Um friso de uma longa procissão, representando uma bacanal foi descoberto em Pompeia.  Grande, ele cobre três paredes de um salão de banquetes.  Esses grandes afrescos mostram bacantes, que eram mulheres seguidoras de Baco, o deus do hedonismo.  Elas aparecem como caçadoras e dançarinas, acompanhadas de sátiros tocando flauta, bebendo vinho, em festa.  Há também uma figura feminina ao lado de Sileno, que era o mentor de Dionísio. Essa figura feminina tem uma tocha que é um símbolo de alguém iniciada no ritual dionisíaco. Completando a decoração vemos diversos animais marinhos por entre as figuras.

 

Detalhe do friso na Casa del Tiaso em Pompeia. Foto cortesia do Parque Arqueológico de Pompéia.

 

Os afrescos são parte da decoração da Casa del Tiaso ou Casa de Thiasus, localizada na Regio IX de Pompeia.  O nome Casa de Tiaso foi dado pelos arqueólogos, porque esse era associado à comitiva dos seguidores de Dionísio.  O culto a Dionísio  exigia que os iniciados participassem de um um ritual específico para entrada no culto, e a oportunidade de conhecer os segredos da seita, que eram guardados pelos membros desse grupo.

 

Friso de Dionísio na Casa del Tiaso, em Pompeia.

 

Pompeia era uma cidade rica e está cheia de afrescos coloridos que demonstram a riqueza daqueles que ali moravam.  Este friso é mais raro.  A única outra pintura mural que representa cerimônia dionisíaca conhecida no local está na Vila dos Mistérios nos subúrbios de Pompeia, descoberto em 1919. 

As escavações na Regio IX, cobrem 3.200 metros quadrados;  Elas estão em andamento desde fevereiro de 2023 e já revelaram 50 novos cômodos, uma padaria, uma lavanderia e, mais recentemente, um complexo de banhos de luxo .

Artigo baseado em publicação do Smithsonian Magazine, deste mês: fevereiro de 2025.





As casas na Grécia Antiga, Luiz Felipe Pondé

24 02 2025
Ilustração de como eram as casas na Grécia Antiga.

 

 

Na Grécia Antiga, você não era dono da sua casa, o dono era a linhagem, os mortos enterrados nela.

Você não podia vender a sua propriedade, porque na propriedade estavam enterrados os ancestrais, então você estava ali por enquanto, vivo, mas também ia morrer e ser enterrado ali, portanto o filho tinha que cuidar do pai e, em vista disso, ele não podia, por exemplo, decidir vender a casa. A noção de propriedade era vinculada a uma crença religiosa.

 

Em: Diálogos sobre a natureza humana: Perfectibilidade e Imperfectibilidade, Luiz Felipe Pondé, nVersos Editora: 2023





Cuidado, quebra!

3 02 2025

Taça de Licurgo, século IV AD, período do Império Romano Tardio

vidro, dicróico, ornamentado em prata dourada montada na borda e no pé

Altura: 16 cm Largura: 13 cm

Museu Britânico, Londres

 

Essa taça é feita de um vidro que muda de cor.  Mostra uma cor diferente dependendo de onde a luz passa ou não por ela. Parecerá vermelha se iluminada por trás.  Quando iluminada de frente, parece  verde.  Apesar de termos referências deste tipo de vidro e existirem fragmentos de objetos feitos de vidro dicróico este é o único objeto de vidro romano dicróico completo, que conhecemos.  A mudança de cor entre vermelho e verde também é a mais contrastante.

 

 

Nesta foto com luz direta e flash, podemos ver a mudança de cor para verde.

 

O efeito dicróico é obtido pela introdução de pequenas proporções de nanopartículas de ouro e prata dispersas em forma coloidal por todo o material de vidro durante o processo de fabricação.  Não se sabe o processo preciso usado pelos romanos para esse efeito.

A taça também é rara por ser o que uma taça em que a grossura do vidro original foi meticulosamente cortado, esculpido mesmo, deixando apenas uma “gaiola” decorativa no nível da superfície original. O desenho deixado neste caso, mostra o mítico Rei Licurgo, mais comum são desenhos abstratos não figurativos nos exemplos conhecidos.





Amsterdã no século XVII, José Rodrigues dos Santos

2 02 2025

Mapa de Amsterdã no século XVII.  A cidade era capital dos Países Baixos e o maior porto no delta do Rio Amstel.  O século XVII, também chamado de Século de Ouro, foi um período de grande prosperidade no país, fazendo de Amsterdã uma das cidades mais ricas do mundo.  Mapa de 1652, do cartógrafo  Joan Blau (1596-1673).

 

 

Amsterdã era uma das maiores cidades do planeta, prodígio da civilização, epicentro do comércio mundial. As suas ruas estreitas, forradas por armazéns e cortadas por pontes, cheiravam a óleo de fritar, a cerveja e a tabaco felpudo, odores tão densos que se diria formarem uma neblina aromática. Todos os novos edifícios eram em tijolo, estreitos e de fachadas ornamentadas por um arenito claro, mas ainda se viam amiúde construções em madeira, vestígios dos tempos medievais. A maior parte das construções tinha dois andares acima do rés do chão, mas viam-se algumas de três e quatro andares e a mais alta chegava, para pasmo dos visitantes, aos sete. A riqueza da cidade atraíra imensa gente e a maior parte daqueles imóveis tinham sido retalhados em vários apartamentos para alugar por uma bela maquia ao crescente número de pessoas que por ali procuravam alojamento. Havia lojas por toda parte, decoradas com as mais variadas tabuletas; tão bonitas que a chamada uythangboord se tornara mesmo uma forma de arte. O movimento de carroças, fiacres e caleches nas ruas pavimentadas e de transeuntes nas bermas mostrava-se intenso, mas nem todos os que por ali deambulavam eram neerlandeses; viam-se muitos estrangeiros, sobretudo visitantes aliciados pela fama da prosperidade e da higiene da cidade. As maravilhas que se diziam de Amsterdã eram tantas e tão grandes que os forasteiros iam ali para se certificarem de que as descrições fabulosas que lhes haviam feito correspondiam mesmo à verdade, que era possível uma cidade ser limpa e bem-cheirosa, que existia mesmo uma urbe à face da Terra onde não havia mendigos a cada esquina e onde a prosperidade saltava à vista de todos, com estabelecimentos comerciais a venderem tudo de todo o mundo.

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Ao longo da Breestraat viam-se as lojas e os armazéns a exibirem os produtos mais variados; muitos provenientes de empresas neerlandesas como a Companhia das Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais, outros de empresas portuguesas como a Carreira das Índias e a Companhia Geral do Comércio do Brasil, outros ainda de navios oriundos de Veneza, de Antuérpia, de Hamburgo ou de outros pontos, incluindo saques efetuados por corsários marroquinos. As prateleiras enchiam-se assim de porcelanas de Cantão e de Nuremberg, tapetes de Esmirna, tulipas de Constantinopla, sedas de Bombaim e de Lyon, pimenta das Molucas, sal de Setúbal, linho branco de Haarlem, lã de Málaga, faiança de Delft, sumagre do Porto, açúcar do Recife, madeira de Bjørgvin, tabaco de Curaçau, marfim de Mina, azeite de Faro. Havia ali de tudo e de toda a parte, como se o bairro português de Amsterdã fosse o bazar dos bazares, o mercado do mundo.

 

 

Em: O segredo de Espinosa, José Rodrigues dos Santos, Planeta: 2023.





Caixas de concha

17 11 2024
Caixa da época vitoriana [Século XIX], em madeira, decorada com conchas variadas.  Origem provavelmente inglesa.

 

 

Conchas foram sempre de grande fascinação para o ser humano.  Elas eram facilmente encontradas em praias.  Aqui mesmo no Rio de Janeiro, na minha infância e adolescência as praias da Zona Sul tinham muitas conchas dos mais diversos moluscos, que machucavam nossos pés se as pisássemos, mas que ao mesmo tempo nos fascinavam.  Não era fora do comum trazermos para casa uma concha mais bonita, com um formato diferente ou aquela que tinha listrinhas coloridas de diversos tons de ocre, amarelo, bege e pérola, numa verdadeira comunhão com a natureza admirando aqueles desenhos perfeitos.

No século XIX, caixas como a mostrada acima, foram populares.  Mas elas caem, para mim, naquela área do gosto estranho, duvidoso, da era vitoriana, que abusava dos excessos e acabava com objetos como essa caixa, que não sei porque me lembra mais de rito funerário do que de um lugar aprazível para colocar um joia ou preciosidade.

Em 2022, uma rara coleção de caixas de concha foi à venda na loja de leilões Christie’s em Londres. As caixas, não muitas, pertenciam à coleção particular de Anthony e Marietta Coleridge. Seria de se esperar, que suas caixas de concha fossem verdadeiras joias, já que Anthony Coleridge foi CEO e mais tarde presidente da casa de leilão Christie’s em South Kensington.

Essas são duas caixas de conchas, com montagem em ouro. A caixa à direita conhecida como Caixa de Turritella foi transformada por volta de 1765.  Turritella é o nome latino para um caracol marinho, em forma de cone alongado com diversas rotações.  Turritella em latim e em italiano significa pequena torre,  Esta concha tem cerca de 10 cm de comprimento.  Os adornos de acabamento e dobradiça de ouro mostram desenho rococó com volutas e flores e há uma faixa em esmalte branco com os dizeres ‘NUL PLAISIR SANS VOUS VOIR’ [não há prazer sem lhe ver, que bela mensagem de alguém enamorado!]. A concha cancerallia, que acompanha nesta foto a Turritella,tem a tampa forrada por dentro em ouro, cinzelado para simular a textura natural da concha e mede 9 cm no comprimento.

Outras quatro caixas, todas para rapé, da mesma coleção, variam em forma. Uma é do período de George III, claramente assinada pelo ourives William Scott, de Dundee, datando de 1780. Duas outras,  uma tem acabamento em prata e outra espessurada à prata [também conhecido com banho de prata] datam respectivamente do final do século XVII e início do XIX.  Medem: 9,2 cm; 9 cm e 10,2 cm;

 

A caixa russa com tampa parcialmente em concha e montagem espessurada à prata, mostra assinatura na montagem.  Tem cobertura gravada com pássaros sobre flores; uma com cobertura espessurada a ouro  com relevos e gravações de dois pássaros rodeados por volutas com dois passarinhos rodeados por flores.

Quando vemos esses exemplos extraordinários de pequenas caixas de conchas, deixamos de lado a ideia das não tão elegantes caixas com adornos de conchas populares na era vitoriana.  Um dos meus professores de história da arte, na Universidade de Maryland, que era também um dos curadores da National Gallery em Washington DC repetia para nós alunos, sempre que podia.  Olhe e observe sempre o melhor que há na arte, Vá aos museus.  Examine coleções.  Aos poucos de tanto ver, mas de tanto ver coisas boas e coisas não tão boas, seu olhar vai saber em fração de segundos se algo merece ou não sua atenção.  Ele queria que apurássemos os olhos.

Muitos anos mais tarde, lendo o livro Blink, de Malcolm Gladwell percebi que esse professor estava certo.  É a teoria das 10.000 horas de trabalho.  De tanto ver, observar, examinar objetos da sua época de interesse, ou melhor da sua área de especialização, mais precisa é a avaliação sobre o que você vê.