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Meninos, 1946
Tomás Santa Rosa ( Brasil, 1909-1956)
óleo sobre tela
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Santa Rosa
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Rachel Jardim
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Santa Rosa morreu na Índia, um país onde a morte é considerada um acidente natural, ou apenas uma pequena pausa. Ele, tão plantado na vida, buscando-a sempre, persistentemente, em tudo o que fazia.
Nesta ocasião apareceu o seu retrato nos jornais – rosto redondo, óculos, nenhum cabelo, cigarro constantemente pendurado na boca. Era um tipo arredondado, sem arestas, sem ossos à vista. Carregado de humanidade, alguém para se levar para casa, sentar no sofá e deixar falar.
Por essa época, literatura estava muito fora das minhas cogitações. Mas aquela estranha morte na Índia me deixou muitos dias abalada. Não combinava com ele, tampouco parecia destinado a qualquer tipo de tragédia. Sua integração à nossa paisagem era total. Como pois aceitar aquela morte num mundo tão diferente?
Uma vez, ilustrou um conto meu. A ilustração era muito melhor do que o conto. Dera a ele uma dimensão que não tinha. Quando vi a ilustração pensei: era assim que eu queria ter escrito. Eu falava numa chuva translúcida. Ele fez uma chuva translúcida.
Pelos idos de 40 fui parar, não sei como, no seu atelier. Sentei-me num caixote. Livros e quadros por toda parte. Maquetes para cenários. Ele nem desconfiava que eu era a moça, de quem, alguns anos antes, tinha ilustrado um conto. Nada lhe disse.
Tirei da estante o Romancero Gitano, de Garcia Lorca.
— Que tipo lorquiano, você é – disse-me. – Por dentro e por fora.
Eu ri e concordei. Leu-me uns versos do Romancero e depois me disse:
— Olhe, não quer posar para mim? Faria de você um retrato lorquiano.
Olhei para os seus quadros na parede. Não havia quase figuras. Uma nítida atmosfera da época, a visão de beleza da época. Ninguém retratou tão bem o espírito a sensibilidade da década.
Pensei – posarei. E combinei aparecer no dia seguinte. Não o vi mais.
Tão importante. Tão humano, sua arte impregnada de vida. Perdi o retrato, mas guardei sua imagem. Lembro-me dele totalmente – voz, gestos, riso, modulações, terno, sapato. Pouca gente permaneceu tanto dentro de mim. Foi curto o instante, mas tão permanente. Não pintou meu retrato, mas o dele pintou-se em mim.
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Em: Os anos 40 de Rachel Jardim, Rio de Janeiro, José Olympio: 1973