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Cascão coleciona revistas em quadrinhos, ilustração Maurício de Sousa.
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Reproduzo aqui, a sexta parte de uma coletânea de seis textos de Gilberto Freyre, escritos entre 1948 e 1951 para a revista O Cruzeiro, em que o sociólogo esclarece alguns pontos sobre a censura.
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Nacionalismo e internacionalismo nas histórias em quadrinhos
(parte VI) – Gilberto Freyre
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Deste mesmo recanto modesto de página 10 de O Cruzeiro já tive ocasião de referir-me à chamada “história em quadrinhos” como forma moderna de literatura ou arte: uma literatura ou arte cujo mal – o de conteúdo ou substância – não deve ser confundido levianamente com a forma.
A forma tanto pode se prestar a fins educativos como deseducativos. Correspondendo a um gosto moderno de síntese, tanto da parte de um público infantil como do adulto, deve ser aproveitada pelos educadores e moralistas e não apenas abandonada aos exploradores da vulgaridade ou da sensação.
Em vez de assim procederem, que fazem alguns educadores e moralistas? Investem contra a história de quadrinhos como os caturras de outrora investiram contra os principais cinemas, os primeiros rádios. Até que ficou evidente que jornal, cinema, rádio, tanto se podiam prestar a fins educativos como deseducativos. Que os próprios padres ou sacerdotes podiam utilizar-se do jornal, do cinema, do rádio para a propaganda da fé e da moral cristã. Que jornal ou imprensa não queria necessariamente dizer perigo para a ordem estabelecida ou a ortodoxia dominante, mas, ao contrário, podia ser posta a seu serviço. Que cinema não queria necessariamente dizer a moça quase nua fazendo pecar os adolescentes, homem beijando escandalosamente mulher, ladrão arrombando cofre, mas, ao contrário, podia ser posto ao serviço da ciência, da história clássica e da própria religião. Que o rádio não queria necessariamente dizer maior divulgação de samba, de anedota picante, de canção obscena, mas também de música clássica e da própria música de igreja.
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Ilustração Walt Disney.
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A “história em quadrinhos” está na mesma situação. Também ela pode tornar-se instrumento de divulgação de vidas de heróis, de santos, de sábios, de façanhas de vaqueiros do Nordeste e de gaúchos do Rio Grande do Sul e não apenas as aventuras de gangsters e de cowboys.
Também ela pode tornar-se, para os brasileiros, fonte de conservação de tradições nacionais, em vez de superação dessas tradições por mitos de povos imperiais sem que, entretanto, o justo zelo degenere em “nossismo” intolerante. “Nossismo” doentio que não admita história com Papai Noel, mas só com Vovô Índio; nem biografia que exalte Marconi, mas que só glorifique Santos Dumont; nem canto onde apareça lobo ou olmo, mas só onde brilhe a ramagem do cajueiro ou arreganhe a dentuça da suçuarana.
Compreende-se a campanha de nacionalização da história de quadrinhos inciada vigorosamente pelo jornalista Homero Homem. Mas seria uma lástima que a mística da nacionalização nos levasse aqueles exageros. E nos fechasse, nas nossas revistas e jornais, às histórias de quadrinhos que não falassem em índio, cajueiro, vaqueiro do Nordeste, suçuarana, pitanga, Caxias, Santos Dumont.
Atualmente, o extremo que domina nas histórias de quadrinhos publicadas nos nossos jornais é o de quase exclusiva americanidade de motivos, símbolos e personagens. Devemos reagir contra essa exclusividade lamentável. Mas não ao ponto de nos fecharmos dentro de motivos, símbolos e personagens exclusivamente brasileiros. Apenas escolhendo para publicação, histórias, tanto brasileiras quanto estrangeiras, mais capazes de deleitar o público, sem corromper-lhe o gosto. Pois não nos esqueçamos de que vivemos num mundo que é, cada dia mais, um mundo só, dentro do qual o Brasil deve ser o Brasil sem deixar de ser fraternalmente humano e cordialmente americano.
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Em: Pessoas, coisas e animais, de Gilberto Freyre, — ensaios e artigos reunidos e apresentados por Edson Nery da Fonseca, São Paulo, edição especial MPM Casablanca-Propaganda: 1979.