José Ferraz de Almeida Jr. (Brasil, 1850-1899) Moça com livro, 1879, óleo sobre tela, Museu de Arte de São Paulo
Hoje li pela segunda vez o relatório Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-livro, uma pesquisa feita sobre os hábitos de leitura no Brasil, incluindo o perfil do leitor brasileiro. Não fiquei surpresa ao saber que no Brasil, assim como no resto do mundo, as mulheres lêem mais que os homens. Aqui, a nossa percentagem é de 55% de leitoras mulheres para 45% de leitores homens.
Na verdade esta diferença entre leitores e leitoras é tão conhecida que o escritor inglês Ian McEwan se sobressaiu numa entrevista publicada no jornal The Guardian, de Londres, em 2000, quando sabendo-se conhecedor destes números e sendo avisado que as mulheres lêem mais ficção do que os homens, declarou: A conclusão inevitável é que no dia que as mulheres deixarem de ler, o romance terá desaparecido.
Este tipo de pesquisa, estes tipos de números são sempre fonte para muita especulação. Muitos estudos ainda virão a ser feitos, muitas teses de doutoramento e pesquisas similares para justificar esta diferença. Há as explicações biológicas, comparando os cérebros entre os dois sexos e há também aqueles que acreditam que isto se deve às meninas em geral serem alfabetizadas e apresentadas à leitura numa idade mais tenra do que os meninos.
Mas não deixa de me trazer um sorriso irônico nos lábios ao constatar que esta diferença também existe no Brasil. Porque até bem pouco tempo as mulheres não eram nem consideradas para a alfabetização. Lembrei-me disso quando ontem à noite, passando uma vista d’olhos no romance de Ana Miranda intitulado O retrato do rei, uma passagem prendeu minha atenção. Uma passagem que ilustra as raízes culturais que levaram em parte ao atraso na alfabetização das mulheres brasileiras, e a uma perda cultural imensa para a nós. Ana Miranda assim descreve nossa heroína, vivendo em 1707, no Rio de Janeiro.
Ainda menina, Mariana recebera, uma noite, ordem de seu pai, dom Afonso, para que fosse à sala de livraria. Ela entrara, assustada. Sempre que o pai tinha uma repreensão ou castigo para as filhas chamava-as a tal lugar. O barão, em pé, diante da mesa, parecera-lhe um gigante. Batendo ritmadamente o chicote na mão, perguntara se ela estava pretendendo aprender a ler. Apontara com o chicote para um volume sobre a mesa, uma cartilha das primeiras letras. Mariana abaixara os olhos, sentindo o sangue tomar-lhe o rosto. Dom Afonso pegara o livro e aproximara-o da chama da vela. A cartilha demorou a pegar fogo e lentamente foi-se consumindo. “Cuida-te com os teus desejos”, o pai dissera. “Se eles te tomam, e não tu a eles, vais arder no fogo do inferno.” Em seu quarto a velha aia Sofia a esperava, com uma vara na mão. “Tira a roupa”, dissera a alemã. “Essas meninas da colônia são educadas como vacas. Que mal há em saber ler? As freiras não aprendem nos conventos? Na minha terra todas as mulheres sabem letras.” “Sabeis ler, dona Sofia?” “Cala-te, menina. Tira a roupa.” Mariana, nua, curvada sobre o baú, esperara. “Trata de gritar bem alto para que teu pai ouça”, Sofia sussurrara. E aplicara, sem nenhuma força, vinte vergastadas nas costas de Mariana, para cumprir a ordem do pai.
O retrato do rei, Ana Miranda, Companhia das Letras: 1991, São Paulo, páginas 23-24
ACIMA: Tarsila do Amaral ( Brasil, 1890-1973), Beatriz lendo, 1965, óleo sobre tela.
Mariana não era uma qualquer. Mariana era prima do governador da capitania do Rio de Janeiro. Em outras palavras, ela não era analfabeta por não ter dinheiro, meios de se educar. Era analfabeta porque era mulher.
Antes que se conclua que isto acontecia só no século XVIII, o que não é verdade, pode mos saltar no tempo e ler um livro também de ficção, do escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil, retratando um caso parecido. Em seu romance Concerto campestre, situado no século XIX, a filha de um fazendeiro, rico o suficiente para contratar um músico com o intuito de formar uma orquestra, é mantida analfabeta por razões semelhantes às expressadas no livro de Ana Miranda.
Concerto Campestre, Luiz Antonio de Assis Brasil, LP&M:1997, Porto Alegre.
O que seria dos nossos escritores, dos nossos editores e das nossas livrarias, dos nossos filhos, se não tivéssemos mudado de valores? Haveria uma literatura brasileira?