Resenha: “O segredo de Espinosa”, de José Rodrigues dos Santos

12 03 2025

Portrait of Benedictus de Spinoza, c. 1665

Anônimo

óleo sobre tela

Biblioteca Herzog August, Wolfenbüttel

 

 

Biografias de intelectuais famosos, pensadores, podem facilmente se tornar narrativas que se perdem nas explicações teóricas sobre as contribuições dos retratados.  Essas podem desinteressar o leitor comum, nem sempre motivado para aulas teóricas na leitura de entretenimento. Ou, na tentativa de agradar a maior público esses livros podem pecar também ao  passarem por cima de teoria representativa da contribuição dos biografados no intuito do texto ser melhor digerido pelo público não especializado.  Esse não é o caso de O segredo de Espinosa, de José Rodrigues dos Santos [Planeta: 2023].  Esse é um livro muito bem escrito, cobrindo a vida do filósofo Baruch Espinosa, nascido na Holanda, judeu marrano de origem portuguesa. que trata por meio de diálogos, uma boa parte dos posicionamentos de Espinoza, fazendo-os acessíveis ao leitor sem entediá-lo.

Essas ponderações são ainda mais pertinentes quando se trata de uma obra que traz ao leitor o papel da religião no dia a dia, assim como na vida do Estado. Espinosa foi um dos grandes defensores da separação entre Igreja e Estado. Levando a racionalidade de Descartes a nível não imaginado anteriormente. Considerado o filósofo que abre a era da modernidade nos estudos filosóficos, ele está hoje entre os filósofos mais influentes do mundo atual. Toda essa importância poderia tornar O segredo de Espinosa difícil de ler, difícil de interpretar, mas José Rodrigues dos Santos fez um excelente trabalho cobrindo desde a infância de Espinosa até seus últimos dias.


 

 

Além de ser fiel aos argumentos de Baruch Espinosa, José Rodrigues dos Santos presenteia o leitor com deliciosas vinhetas da vida na Holanda do século XVII, historicamente confirmadas,  assim como eloquentes cenas da política local, da população em revolta.  Não se recusa tampouco a delinear com precisão as questões religiosas e culturais complexas da época.

Ao longo da Breestraat viam-se as lojas e os armazéns a exibirem os produtos mais variados; muitos provenientes de empresas neerlandesas como a Companhia das Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais, outros de empresas portuguesas como a Carreira das Índias e a Companhia Geral do Comércio do Brasil, outros ainda de navios oriundos de Veneza, de Antuérpia, de Hamburgo ou de outros pontos, incluindo saques efetuados por corsários marroquinos. As prateleiras enchiam-se assim de porcelanas de Cantão e de Nuremberg, tapetes de Esmirna, tulipas de Constantinopla, sedas de Bombaim e de Lyon, pimenta das Molucas, sal de Setúbal, linho branco de Haarlem, lã de Málaga, faiança de Delft, sumagre do Porto, açúcar do Recife, madeira de Bjørgvin, tabaco de Curaçau, marfim de Mina, azeite de Faro. Havia ali de tudo e de toda a parte, como se o bairro português de Amsterdã fosse o bazar dos bazares, o mercado do mundo.

 

 

José Rodrigues dos Santos

Esse é um romance histórico, uma biografia cuidadosamente construída, que explora a maneira como Espinosa desenvolveu levou adiante as ideias de Descartes.  A obra afirma a retidão de seu caráter, expõe a maneira como as publicações se espalhavam no século XVII, e trabalha a narrativa de tal forma que o leitor não deseja parar de ler.  Foi um presente conhecer esse autor português.  Irei procurar outras de suas obras.  Recomendo sem qualquer restrição, foi para minha lista de favoritos.

 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.





As fogueiras do rei, romance histórico de Pedro Casals

8 02 2010

O tribunal da inquisição, 1812-1814

Francisco Goya (Espanha, 1746-1828)

Museu da Real Academia de São Fernando, Madri

 

Como estudante de mestrado em história da arte participei de um seminário sobre Goya.  Foi o meu primeiro grande contato com a  cultura espanhola.  Naquela época, para trabalhar com a iconografia desse pintor, li  diversos clássicos da literatura espanhola, uma das mais ricas em textos do século XVI ao XVII, os séculos de ouro.  Mas, depois dessa época, só ultimamente tive  a oportunidade  de  rever  e de conhecer alguns clássicos daquele país.

Foi com grande prazer, então, que me entretive com o livro de espionagem de Pedro Casals, intitulado As fogueiras do rei, [Record: 1990].  Apesar de ter sido publicado há vinte anos é um livro que, por ser um romance histórico, não perdeu a atualidade.  Ao que eu saiba, é o único romance do escritor publicado no Brasil, ainda que com o livro La Jerenguilla Casals tenha sido finalista para o prêmio Planeta de 1986 e em 1989 com este  romance aqui discutido.  Em 1992 ganhou o prêmio Ateneu de Sevilha, com o livro: El infante de la noche.

 

As fogueiras do rei  não é só um romance histórico, mas um romance de intriga palaciana, numa época crucial da cultura espanhola.  Uma época importante, simultaneamente para a Inglaterra,  Portugal e até mesmo o Brasil, porque além de tratar da Inquisição, retrata também o período anterior à invasão holandesa no Brasil, ou seja anterior à coroa de Portugal passar para as mãos espanholas.  Desse modo podemos entender com maior clareza  a interdependência dos países europeus, através das ligações matrimoniais  entre diversas famílias reais.  A história se passa no final do século XVI durante o reinado de Felipe II (1527-1598).

Princesa de Éboli, desconheço a autoria.

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Sinceramente, eu não sabia muito a respeito de Felipe II.  Lembrava-me de um retrato dele feito por Ticiano. [Essa é uma das falhas do historiador da arte, às vezes só conhecemos a história por causa das pinturas de época]!   Mas, corrigindo qualquer falha anterior, aprendi, com esse romance um pouco mais sobre Felipe II.  Familiarizei-me com sua vida, suas preocupações e suas conquistas amorosas.   E, principalmente, com a Princesa de Éboli, Doña Ana Mendoza y de La Cerda, uma das grandes aventuras amorosas do rei, que deve ter sido uma mulher fascinante: mesmo tendo tido um ferimento no olhos direito e obrigada a usar uma venda ,  Ana de Mendoza era de uma beleza a que poucos podiam resistir.  Teve dez filhos e uma enormidade de amantes.  É verdade, que para ajudá-la havia muito poder e grande fortuna já que era a  única herdeira de uma poderosa casa nobre da Espanha   E ela é uma das  personagens centrais na trama que se desenrola em As fogueiras do rei.

Felipe II da Espanha e de Portugal,  c. 1550

Ticiano  Vecellio, dito Ticiano  (Itália, c. 1490-1576)

Óleo sobre tela, 185 x 103 cm

Sala da Ilíada,  Palácio Pitti,  Florença

Um auto da fé é a cena em torno da qual a história se desenrola.  Assistindo às punições dos hereges,  está um grupo de especialistas em espionagem e contra-espionagem representando diversos interesses da política interna e externa do reinado.  O leitor acompanha as intrigas e  tentativas mais variadas para a subida ao poder desde a coroa da Inglaterra,  ao meio-irmão de Felipe II, filho bastardo de Carlos V,  D. João da Áustria.  Mas mais interessante ainda do que essa intriga palaciana é o entendimento com que saímos, após a leitura do livro, não só dos judeu-portugueses, dos marranos, dos cristão-novos, mas  suas preocupações e meios de sobrevivência.  E acima de tudo, nos enfronhamos na Inquisição na Espanha para desvendar que ela não foi só uma maneira de estabelecer  o domínio da Igreja Católica contra a religião muçulmano, ou contra os judeus, mas foi, também, uma maneira de evitar o crescimento dos ensinamentos de Lutero, que ameaçavam  tornarem-se populares.  Além disso, fica claro o modo da Inquisição, com suas práticas subjetivas,  deter a subida da burguesia,  um interesse da realeza que o Vaticano protegia das ameaças que a nobreza considerava perigosas, nos exemplos vindos dos Países Baixos, onde a burguesia subia e tomava conta do poder.  Essa  era a preocupação da nobreza, era um futuro, que sem os ensinamentos da Igreja Católica,  poderia vir a acontecer e derrubar o poder das grandes casas nobiliárquicas, mesmo que, na Península Ibérica, estas tivessem muito sangue judeu.

Pedro Casals

Curioso, também,  foi saber que apesar de haver muitos hábitos e costumes considerados desrespeitosos à Igreja,  esses mesmos costumes eram praticados pela realeza e pela classe dominante: astrologia, leituras dos textos de Erasmo,  simpatias as mais diversas oriundas de crendices ligadas às bruxarias.   E aos poucos podemos fazer uma pequena lista das obras impressas, que preenchiam os gabinetes de leitura da nobreza e que eram proibidas pela Santa Inquisição, só para perceber que elas incluem os grandes clássicos da literatura não só espanhola como da portuguesa:  Amadis de Gaula, Palmerim de Inglaterra, Obras de Teresa d’Ávila, Lazarillo de Tormes, A Celestina: tragicomédia de Calixto e Malibeia,  Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdão, e assim por diante.

Mais do que um romance de espionagem, As fogueiras do rei é um excelente romance histórico, que leva o leitor a considerar os acontecimentos do século XVI na Espanha sob um novo olhar, um olhar de dentro.   Quem está à procura de um romance que vai além de uma mera distração,  um romance que enriquece o leitor com os detalhes históricos coletados, Pedro Casals oferece bastante conteúdo para um aprendizado rápido e compreensivo.





Maria de Sanabria, de Diego Bracco

26 02 2009

barcos20026

 

 

 

 

Um bom romance histórico sempre me fascinou, principalmente quando o autor, como o uruguaio Diego Bracco, é um professor de história e tem o cuidado de colocar as fontes, ou a documentação em capítulo à parte como é o caso no livro Maria de Sanabria [ Rio de Janeiro, Record: 2008]. A vantagem destes romances quando são escritos por um historiador é que temos a impressão de aprender mais do que se estivéssemos sentados numa sala de aula atentos às explicações dos cuidados necessários, por exemplo, com a organização de uma expedição à América do Sul no século XVI.

 

E é esta exatamente a história fascinante que nos leva a conhecer bem mais de perto Maria de Sanabria, a organizadora da chamada expedição das mulheres  que atravessou o Atlântico em 1550.  Seis anos são necessários para que o grupo expedicionário tendo  chegado a Santa Catarina, depois de uma estadia muito difícil na costa do Brasil, que durou dois anos, procure, mais ao norte, a proteção dos portugueses na província de  São Paulo e finalmente chegue a Assunção, no Paraguai, um vilarejo ainda diminuto em 1556.  Lá, Maria de Sanabria se estabelece para ficar.  Seu filho do primeiro casamento tornou-se um monge franciscano e mais tarde um “dos grandes protagonistas da vida religiosa e intelectual no Rio da Prata.”  Enquanto que seu filho do segundo casamento, Hernandarias foi três vezes governador e grande protagonista civil e militar no Rio da Prata, uma figura de grande importância na história do Paraguai, da Argentina e do Uruguai.

 

bracco

 

A vantagem deste romance é que podemos adentrar a vida diária, o desenrolar das tarefas comuns da época e entender as razões e as necessidades destas pessoas, melhor ainda do que se estivéssemos lendo uma tese de mestrado, descrevendo detalhes do dia a dia das limitações e dos compromissos que estavam implícitos numa família burguesa e também o que era ou não prescrito para uma mulher em Sevilha, neste período.  

 

É de grande virtude o fato deste historiador ser um ótimo contador de histórias.  Na verdade, Diego Bracco já foi honrado com o Prêmio de Narrativa da Universidade de Sevilha e com o Prêmio Revelação da Feira do Livro do Uruguai com o seu romance anterior:  El mejor de los mundos.  Digo isto, porque apesar de detalhes interessantíssimos, a narrativa corre suavemente, cheia de aventura e imprevistos, cheia de ação e simpatia para com Maria de Sanabria, de tal forma que as 270 páginas deste livro são lidas rapidamente, como num bom livro de aventuras.  

 

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Escritor e historiador Diego Bracco.

Há no entanto grande cuidado com a verdade histórica.  A descrição por exemplo dos preparativos da saída de Sevilha podem nos dar um gostinho desta preciosa maneira de contar a história:

 

Na última terça-feira de janeiro de 1550, a catedral de Sevilha recebeu com pompa e circunstância os que se preparavam para participar da expedição.  Depois da primeira missa da manhã, todos foram em procissão até o cais, levando uma imagem abençoada de Nossa Senhora das Mercês.  Os poucos que deviam conduzir a nau rio abaixo e os muitos que se juntariam a eles em Sanlúcar de Barrameda despediram-se como quem deixa uma festa e promete se encontrar na seguinte.  Pouco tempo, poucas e precisas manobras e uma única vela foram suficientes para que a embarcação desse início à viagem.  Uma multidão de curiosos fez seu rumor pairar sobre o navio que começava a se afastar em direção à desembocadura do rio.  Atrás da esteira d’ água, como se quisessem alcançar os que se distanciavam, ouviam-se risadas prognosticando infernos e também bênçãos lançadas como beijos no ar; prantos de mães pressentindo o pior e aclamações aos heróis que voltariam distribuindo ouro. [p. 150].

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Mas além de este ser um ótimo romance, além de ser rico em detalhes de época, um outro aspecto que o faz sensacional é justamente o resgate da história desta corajosa mulher, que se rodeou de outras mulheres para ganhar um espaço na história, para fazer, sua, a aventura do século.  Gosto de ver que as gerações de hoje e de amanhã, diferentemente da minha, têm e terão exemplos de mulheres corajosas e aventureiras que existiram de verdade.  Mulheres cujos retratos podem servir de exemplo de vida para todas as meninas e jovens que ainda hoje  vêem seus sonhos de aventura desconsiderados, minados, cerceados por costumes, pela família, por limitações que não lhes pertencem.   Leiam o livro, vale a pena!