Vincent van Gogh ( Holanda 1853-1890)
técnica mista: aquarela e carvão
Museu Kröller-Müller, Otterlo, Holanda
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Uma passagem das mais interessantes do livro Os diários de pedra de Carol Shields, cuja resenha publiquei recentemente aqui mesmo no blog, mostra a descoberta que um homem faz da mulher que o abandonou, subitamente, sem nada dizer. A cena se passa no Canadá nos anos 20 do século XX. É simultaneamente delicada, enternecedora, engraçada. E fala da solidão, da inabilidade de se demonstrar o amor. Realmente fascinante.
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Fazia um ano que ela tinha ido embora quando ele resolveu fazer uma faxina na sala – tapete, cadeiras, tirar o pó e botar tudo para arejar, e no fundo da caixa de costura dela ele encontrou quatro livros pequenos. Livros românticos, ele achava que se chamava esse tipo, livros femininos, com capa de papel macio. Nove centavos cada um, o preço estava carimbado nas costas: Livraria dos Nove Centavos. Não sabia ao certo como ela arranjara aqueles livros, mas imaginava que os tinha comprado do caixeiro-viajante judeu, comprado e lido em segredo, como se ele algum dia fosse negar-lhe esse prazer tão insignificante.
Ele mesmo começou a ler aqueles livros nas noites de inverno. Era melhor do que ficar olhando o relógio, ouvindo o seu tique-taque, ou escutando o gelo caindo dos ramos sobre o telhado. A essa altura ele tinha instalado um pequeno e potente aquecedor a lenha na sala, para esquentar o ambiente, coisa que a esposa vivia pedindo. Lia, devagar, pois, verdade seja dita, ele nunca em sua vida tinha lido um livro inteiro, da capa à contracapa. Achava agradável pensar que conseguia decifrar a maioria das palavras, virando as páginas uma por uma, prestando atenção: Lutar por um coração, de Laura Jean Libby, O que o ouro não compra, por uma tal de Sra. Alexander, À mercê do mundo, por Florence Warden e Jane Eyre, de Charlotte Brontë. Esse último era o seu predileto; havia episódios na história que lhe traziam à garganta uma sensação doce e dolorosa, e nesses momentos ele sentia a esposa perto, separada por algumas batidas do coração, tão perto que ele quase podia estender a mão e acariciar a carne do interior de suas coxas. Ficava pasmo com a quantidade de pessoas que recheavam aqueles livros. Cada um era um mundinho, povoado e mobiliado. E como falava aquela gente dos livros! Falar, falar, viviam pela língua. Muito do que diziam era tolice, mas também razoável. Falar afastava a raiva. As palavras eram trocadas como se troca dinheiro por mercadoria. Algumas das frases pareciam poemas, nada do jeito como as pessoas falam na realidade, mas mesmo assim ele as pronunciava em voz alta e as decorava, de modo que, se por algum acaso a esposa resolvesse voltar para casa e retomar o seu lugar, ele estaria pronto. Se essa bobagem de falar difícil era a maior necessidade dela, ele estaria preparado para satisfazê-la – um vulcão de palavras cheias de doçura e sentimento. Ó lindos olhos, Ó rosto precioso, Ó pele mais bela. Ou frases que falavam de coração transbordante, desejo crescendo no peito, súbitas centelhas de um corpo acolhendo outro, ou mesmo a simples declaração de amor: Eu te amo, sussurrou ao ouvido expectante dela. Adoro-te por inteiro.
Ou, se essas declarações lhe fossem demasiado difíceis, como suspeitava que seriam, iria simplesmente olhá-la nos olhos e pronunciar o nome dela: Clarentine. Falando a princípio com delicadeza, como se faz para acalmar uma criança arisca, forçando a voz a permanecer suave, falando diretamente para aquele rosto que pertencia para sempre ao Clube Feminino de Ritmo e Movimento mas não a ele, aquele rosto querido e imóvel. Clarentine. Clarentine.
Em: Os diários de pedra, Carol Shields, tradução de Eliana Sabino, Rio de Janeiro, Editora Record: 1996, páginas 111 e 112.
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NOTA: Todas as autoras mencionadas nesse texto existiram de verdade.