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Um dia de chuva, ilustração: ignoro a autoria.
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A chuva sobre a cidade
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Lêdo Ivo
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Chove sobre a cidade
e a chuva inunda o asfalto, difunde o desastre e o desencontro
e procura abater as palmeiras que do fim da tarde
queriam apenas — graça plena — as estrelas.
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Os trovões reboam, espantando os pássaros
que vieram refugiar-se no meu quarto.
Os relâmpagos, fotógrafos do absoluto, iluminam as pessoas que passam
— são outros rostos, minha irmã, são as faces
revoltadas porque as divindades impossibilitaram os idílios,
a chegada pontual a uma casa, o já adiado trespasse com o inefável.
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As sarjetas recebem finalmente a Poesia. Como são belos
e nítidos os barcos de papel
que navegam buscando os reinos fantásticos, os inaccessíveis!
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A chuva tem uma canção. Jamais uma elegia
para saudar sua gentileza. Jamais uma ode,
um himeneu, uma écloga deploratória.
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Meu irmão, deixa que a goteira molhe tuas últimas
poesias. Pouco importa que amanhã te reconcilies com os grandes temas poéticos.
O amanhã é inconsumível. A chuva te ensina
a ser invariável sem se repetir.
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Em: Central Poética: poemas escolhidos, Lêdo Ivo, Rio de Janeiro, Aguilar:1976
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Em homenagem ao poeta Lêdo Ivo, falecido hoje, aos 88 anos.