Pequiri, descrição, de J. B. Mello e Souza, do livro Majupira

19 06 2012

Paisagem, s/d

Omar Pelegatta (Brasil, 1925-2000)

óleo sobre eucatex, 34 x 26cm

Só então conseguiu observar bem o aspecto do vilarejo onde estava.

O Pequiri consta, na realidade, de uma única rua e de uma pequena praça. A rua, na maior parte da sua extensão, só tem casas de um lado, visto que o outro é ocupado pelo leito da estrada de ferro.  Em consequência dessa disposição ingrata, as casas, em sua maioria, dão fundos para a montanha, rude maciço de impressionante altura. Em frente à pequena capela do povoado fuçava a praçazinha, que bem quereria ser retangular e plana, mas que não realizava a contento nenhum desses louváveis propósitos. À esquerda da via férrea havia algumas casas, construídas onde foi possível  obter área bastante para elas.Tais edificações, eretas à borda do precipício, apresentavam a singularidade de serem térreas na parte da frente, e de grande altura na nos fundos, o que se explica pelo brusco declive do terreno.

“Como se teria formado uma povoação nestas grimpas?” interrogava o jovem médico a seus botões. “Uma enxurrada mais violenta bem pode arrastar essas casas e precipitar os escombros no abismo. Seria prudente criar naquela topografia absurda, naquele desconforto, um estabelecimento destinado a grande atividade e futuro?

Mas… por outro lado, que pureza de ar! que limpidez de céu! que brisa agradável! Montanhas enormes e plácidas, cobertas de vegetação espessa, fechavam o horizonte ao oriente. Uma escarpa mais elevada que todas, e separada das demais por profundas grotas, atirava-se para o alto na ânsia temerária de escalar o azul.

Em compensação, abria-se do lado oposto, o imenso vale do rio Paraíba do Sul, ondeando de colinas verdejantes, até a serrania da Bocaina, muito longe, para o lado do nascente.

Que pureza de ar! que limpidez de céu! que brisa agradável! O gorjear da passarada harmonizava-se bem com o murmúrio da água, cascateando nas grotas, por toda a parte. Certamente, não se poderia encontrar mais serena estância para o corpo e para o espírito! Bem inspirado aquele que se lembrou de localizar ali um centro de estudo, e de trabalho benfazejo!”

Em: Majupira (romance brasileiro da atualidade, 1930-1934), J. B. Mello e Souza, São Paulo, Saraiva:1949.  Capítulo: Pelo Caminho dos Bandeirantes.





A rua Paissandu, no Flamengo, na década de 1930 — Ronaldo Wrobel

16 09 2011

Rua Paissandu, no bairro do Flamengo, década de 1930, Rio de Janeiro.  Cartão postal.

Coloco aqui uma das muitas passagens evocativas da época de 1930, encontradas no romance de Ronaldo Wrobel, Traduzindo Hannah.

“Os bairros do Rio de Janeiro eram tão diferentes uns dos outros que se tinha a impressão de cruzar continentes dentro de um bonde.  Do Relógio da Glória para o sul, por exemplo, já não se viam as ruas abarrotadas e barulhentas do centro, com seus prédios encardidos e letreiros comerciais.  No centro, a pressa não tinha hora; já no Flamengo, a hora não tinha pressa.  O silêncio reinava nas ruas sombreadas por árvores onde senhoras puxavam seus cachorrinhos empertigados.  Carrões deslizavam suavemente entre palacetes não raro ocupados por embaixadas e repartições de alto nível enquanto, nas praças, babás uniformizadas tomavam conta de suas crianças promissoras. 

Max gostava de contemplar as palmeiras que ladeavam a rua Paissandu desde o Palácio Guanabara até a rua Marquês de Abrantes.  Aqueles troncos esguios tinham visto coches com marquesas e barões, broches e tiaras antes que o automóvel infestasse a cidade e a monarquia brasileira se exilasse em museus.  Pois as palmeiras da rua Paissandu não tinham se curvado à modernidade:  nenhuma república saberia roubar sua altivez ou a nobreza daquelas folhagens que se abriam como asas soberanas.  Perto dali ficava o campo do Fluminense com suas torcidas estrondosas.  A cada gol os pássaros disparavam dos galhos em revoadas que adentravam a saleta onde Max descansava ao fim do dia, instalado em sua bergère, ao som da risonha criançada que as mães só tiravam da rua depois da Hora do Brasil. Então escolhia um Haydn ou Mozart, deixando a agulha da vitrola surtir seus melodiosos efeitos enquanto comia algo leve na mesa da copa.  Puxava a manta depois das dez, lendo até adormecer no quarto de fundos, ninado pelos gatos vadios que, lá fora, se enroscavam na escuridão.

Dois andares, a nova casa de Max era grudada nas vizinhas feito irmã siamesa.  Custara uma pechincha porque um velho muito velho estava para morrer e os filhos queriam apressar o negócio, tendo aceitado a oficina da Praça Onze como parte do pagamento.  Inacreditável!  O resto Max ia pagando mês a mês avalizado por ninguém menos que o Capitão Avelar.  Perto da bergère, uma estante de jacarandá compunha com a mesa redonda deixada pelo antigo dono.  Max comprou quatro cadeiras de palhinha e uma fruteira de porcelana portuguesa sempre cheia de maçãs, laranjas e bananas.  Na cozinha mantinha as provisões de sal e açúcar que os vizinhos vinham-lhe pedir em cordiais incursões, para depois revisitá-lo com fatias de bolo ou pudim.   Calçava chinelos para não arranhar o parquê bicolor nem estragar o tapete arraiolo em seu quarto.  Agora, sim, Max tinha uma casa decente.”

Traduzindo Hannah, Ronaldo Wrobel, Rio de Janeiro, Record:2010, Pp- 151-2





Pescaria no Avanhandava, texto de Francisco de Barros Júnior

24 11 2009

Pescando, 1894

José Ferraz de Almeida Júnior (Brasil, 1850-1899)

óleo sobre tela, 64 x 85 cm

Coleção Particular

A minha primeira pescaria no Avanhandava foi feita em companhia de um senhor, advogado em Penápolis, e de seu filho, estudante do terceiro ano da nossa Politécnica, ambos fanáticos pescadores.

Era em maio, e as águas límpidas tinham seu nível muito baixo.  Os dourados, à montante do salto, vinham até sua borda, mas evitavam descer, certamente advertidos pelo instinto,  da quase impossibilidade de retorno.  Na corredeira rasa onde ficavam, eram fisgados com facilidade.  Para atingir esse local, tínhamos de entrar pela margem direita e atravessar o canal –mestre quase na boca do salto, com água pela cintura.  A passagem era perigosíssima, e disso fui advertido, mas pai e filho estavam acostumados a vencê-la.  Venceram com facilidade, passando de uma para outra pedra submersa, colocadas como batentes da porta desse canal.  Quando chegou a minha vez, fiquei como o Colosso de Rodes, de pernas tão abertas, que não podia comandar os músculos para prosseguir ou voltar.  Deveria, quando dei o passo, aproveitar o impulso para vencer a passagem, em lugar de estender a perna tateando, medroso de me faltar apoio.

Fiquei nessa posição sem rolar no abismo, porque quando tombava, instintivamente procurei amparar-me na vara que levava na mão direita, e esta firmou-se em alguma fenda de pedra, mantendo-me em equilíbrio.  Nessa insegura posição, passei momentos angustiosos, sentindo claramente rondar-me a morte.  Por fim, numa prece íntima implorando auxílio divino, reuni as forças que se iam esgotando e retrocedi, não sem cair sentado, com água até o pescoço.  Desisti da empresa e fiquei a ver de longe as ferradas seguidas dos companheiros que matavam os dourados com golpes das costas do facão, atravessavam-lhes nas guelras uma correia e a prendiam na cinta, prosseguindo a pescaria.  Avançavam contra a correnteza, com uma profundidade média de um metro e iam lançando a linhada para a frente.  Os dourados abocanhavam a isca, mal esta tocava a superfície, ou logo ao iniciar a descida.  Com a pequena profundidade, brigavam pouco.  Quando a carga lhes pesava, iam depositar os peixes sobre uma pedra que aflorava à superfície, e continuavam.  Quando voltaram, traziam seis dourados de três a seis palmos, e mais não pescaram pela dificuldade do transporte.

Fiz essa pescaria com esses amigos de um dia, cujos nomes, por mais que me esforce não posso recordar, e segui para Corumbá.

Regressei um mês depois com intenção de ficar em Penápolis e fazer, em tão excelente companhia, nova pescaria no lindo salto.  

Nem cheguei a ficar, pois quando me dispunha a descer a bagagem, fui abordado pelo pai do rapaz.  Estava de luto fechado.

Uma semana depois voltou com o desditoso filho e passou o primeiro passo perigoso, prosseguindo a pescaria.  Ao jovem sucedeu o que me havia acontecido, e não podendo firmar-se, rolou no abismo.  Um pescador que estava embaixo, na margem do canal, o viu tombar, sumir-se no turbilhão e surgir adiante, desgovernado, debatendo-se desesperadamente, a fronte sangrando de larga ferida.

Era tal a velocidade da descida, que, chicoteando-o com a sua linha, na esperança de fisgá-lo com o anzol, não mais pode alcançá-lo e o corpo sumiu-se entre os cachões de espuma, para só ser encontrado três dias depois, vários quilômetros mais abaixo.

Desta vez depois de inúmeras dificuldades, conseguimos um pirangueiro para a rodada.  A triste lembrança acudiu-me à memória, desde que cheguei ao majestoso salto, até que fisguei o primeiro dourado de uns três palmos.  Durante os dois quilômetros que descemos, consegui pegar quatro dourados.  Dois, mais ou menos do tamanho do primeiro, e o último de seis palmos, que brigou bastante antes de ser embarcado,.

Na volta, aludindo à tragédia, o pirangueiro, um dos que procuraram o corpo, indicou o poço onde fora encontrado já bastante atacado pelos peixes. (*)

Não tive mais vontade de pescar nesse dia, e no seguinte voltei para S. Paulo, sem aproveitar os que me restavam de férias.

 

 

(*) Recentemente soube que no mesmo passo perigoso, haviam perecido anos depois, o pai e um tio do infeliz estudante, quando aquele tentava salvar o irmão.  

Em:  Caçando e pescando por todo o Brasil, 3ª série: no planalto mineiro, no São Francisco, na Bahia, de Francisco de Barros Júnior, São Paulo, Melhoramentos: s/d, pp. 34-36

Francisco Carvalho de Barros Júnior (Campinas, 14 de dezembro de 1883 — 1969) foi um escritor e naturalista brasileiro que ganhou em 1961 o Prêmio Jabuti de Literatura, na categoria de literatura infanto-juvenil.

Francisco Carvalho de Barros Júnior, patrono da cadeira n° 16 da Academia Jundiaiense de Letras, colaborou em vários jornais e revistas e é o autor da série Caçando e Pescando Por Todo o Brasil, um relato de viagens pelo Brasil na primeira metade do século XX, descrevendo diversos aspectos das regiões visitadas (entre outros botânica, animais e populações caboclas e indígenas).

Obras:

Série Caçando e Pescando Por Todo o Brasil

Primeira série: Brasil-Sul, 1945

Segunda Série: Mato Grosso Goiás, 1947

Terceira Série: Planalto Mineiro – o São Francisco e a Bahia, 1949

Quarta Série: Norte,  Nordeste,  Marajó, Grandes Lagos, o Madeira, o Mamoré, 1950

Quinta Série: Purus e Acre, 1952

Sexta Série: Araguaia e Tocantins, 1952

Tragédias Caboclas, 1955, contos

Três Garotos em Férias no Rio Tietê, 1951, infanto-juvenil

Três Escoteiros em Férias no Rio Paraná, infanto-juvenil

Três Escoteiros em Férias no Rio Paraguai, infanto-juvenil

Três Escoteiros em Férias no Rio Aquidauana, infanto-juvenil