O escuro, texto de Mia Couto

22 05 2025

Gato

Carlos Anesi (Argentina-Brasil, 1943-2010)

óleo sobre tela, 90 x 130 cm

 

 

“E os olhos do escuro se amarelaram. E se viram escorrer, enxofrinhas, duas lagriminhas amarelas em fundo preto.
O escuro ainda chorava:
– Sou feio. Não há quem goste de mim.
– Mentira, você é lindo. Tanto como os outros.
– Então porque não figuro nem no arco-íris?
– Você figura no meu arco-íris.
– Os meninos têm medo de mim. Todos têm medo do escuro.
– Os meninos não sabem que o escuro só existe é dentro de nós.
– Não entendo, Dona Gata.
– Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me entende?
– Não estou claro, Dona Gata.
– Não é você que mete medo. Somos nós que enchemos o escuro com nosso medos.”

Mia Couto, em O gato e o escuro; Cia das Letrinhas: 2008





O amor materno, texto de Garcia Redondo

5 02 2013

mãe e filho, 1922, John Rae

Mãe e filho no jardim, ilustração de John Rae, 1922.

O Amor Materno

Garcia Redondo

No fundo da chácara, numa touceira de arbustos, um menino encontrou um ninho, onde três avezinhas mal emplumadas dormiam. Contente do seu achado e no desejo inconsciente de se apoderar dele, o menino meteu o braço por entre a trama dos galhos e das folhas e aproximou a mão cobiçosa dos pobres inocentes, que logo ergueram para ele o biquinho e o sussurro duma asa que lhe roçou pelo rosto.  Depois sentiu que essa asa lhe batia nos olhos e que um bico audaz lhe espicaçava o rosto. Tímido, receoso dessa inesperada agressão, retirou o braço e olhou. Era um tico-tico, a mãe da avezinhas no ninho, que defendia a prole, e continuou a atacar o menino, enquanto ele permaneceu junto à touceira de arbustos. Saindo dali, muito admirado da audácia e da coragem  dessa ave minúscula, o menino contou o caso à mãe. E a mãe lhe disse:

— Não há que estranhar, meu filho: essa avezinha faz pelos filhos o que eu faria por ti.

 

[Exemplo de narrativa demonstrativa]

Em: Flor do Lácio, Cleófano Lopes de Oliveira, São Paulo, Saraiva:1964, página 202.





O viajante noturno, conto infantil de Wilson W. Rodrigues

24 11 2012

Murucututu

Chico Martins (Brasil, contemporâneo)

aquarela

Flickr

O viajante noturno

Wilson W. Rodrigues

Aquele ruflar agitado de asas acordava todos na floresta, fosse noite escura, fosse noite estrelada, fosse noite de lua.

A corujinha, curiosa, perguntava:

— Que é que ele vai fazer, mamãe?

A Coruja-mãe, anideando-a sob as asas, respondia sempre:

— Dorme, filhinha.

Na perambeira, Gavião-mirim espigava a cabecinha para vê-lo passar, mas o Gavião puxava o filho para o buraco:

— Deixa de ser metediço.

Mais adiante o Murucututuzinho, assustado, também indagava:

— Para onde ele vai tão depressa?

E o velho Murucututu:

— Cala a boca, netinho.

Lá para a Serra, o Araguari-menino, abandonado pelos pais, sempre o via passar voando. E como não tinha ninguém para perguntar, numa madrugada gritou para o viajante noturno:

— Passarinho que voas tanto e todas as noites passas por aqui, para onde vais tão ligeiro e tão feliz?

E o Sem-Fim respondeu:

— Vou buscar o Sol. Vou buscar o Sol.

***

Em:  Contos do Rei Sol, Wilson W. Rodrigues, Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, Editora Torre, s/d; ilustrado por Percy Lau.

Wilson Woodrow Rodrigues (Brasil, 1916) Nasceu em Salvador, BA.  Foi poeta, folclorista e jornalista, escritor e professor.

Obras:

A caveirinha do preá,  Arca ed.: s/d, Rio de Janeiro

Desnovelando, Arca ed., s/d, Rio de Janeiro

O galo da campina, Arca ed,: s/d, Rio de Janeiro

O pintainho, Arca ed.: s/d, Rio de Janeiro

Por que a onça ficou pintada, Arca ed:s/d, Rio de Janeiro

A rãzinha, Arca ed:s/d, Rio de Janeiro

Três potes, Arca ed:s/d, Rio de Janeiro

O bicho-folha, Arca ed:s/d, Rio de Janeiro

A carapuça vermelha, Arca ed:s/d, Rio de Janeiro

Bahia flor, 1948 (poesias)

Folclore Coreográfico do Brasil, 1953

Contos, s/d

Contos do Rei-sol, s/d

Contos dos caminhos, s/d

Pai João, 1952

Lendas do Brasil, s/d

Sombra de Deus, s/d





A árvore de Natal de Jean Lou, texto de Gregório José

2 12 2011

A árvore de Natal de Jean Lou:

um conto de Natal

Gregório José

 –

A história passa-se perto de uma aldeia de Vesges, numa casa isolada, próximo de uma floresta de pinheiros.

— Papá, perguntou Jean Lou, quando acordou – Quero uma árvore de Natal.  Os meus amigos da aldeia vão todos ter uma.

–Mas tu não tens necessidade de uma árvore de Natal, respondeu-lhe o pai.  – Há tantas em volta da casa.

— Não árvores de Natal, são pinheiros.

— É a mesma coisa.

Oh, não, não era a mesma coisa, pensou o filho.  Para um pinheiro se tornar uma árvore de Natal, é preciso que se ilumine, e que tenha prendas para os meninos!

Jean Lou sentiu o coração encher-se de desgosto.  A mamã tinha morrido na Primavera, e op ai, sozinho com dois filhos, não substituía a sua ternura.  Mas Jean não perdera de todo a esperança e perguntou ao irmão mais velho, Lucien, — O que é preciso para ter uma árvore de Natal.

Ora os pintarroxos, essas avezinhas simpáticas de babete vermelho, vão próximo das casas, não têm medo das pessoas, mas vivem sempre isoladas.  Jean Lou entrou em casa,  colou o rosto  contra o vidro da janela e observou atentamente a estrada.  Era o entardecer.  Um pintarroxo pousou nela, de seguida um outro sobre um arbusto. O coração do menino saltou acelerado, enquanto via um terceiro pousar sobre um tufo de ervas.

— Um, dois, três… contou o rapazinho.

— Vejo-os, vejo os três pintarroxos, vou ter a minha árvore de Natal!

Precipitou-se de encontro a Lucien, que regressava do campo: — Vou ter minha árvore de Natal!

— Mas que se passa?  Admirou-se Lucien, que tinha esquecido a brincadeira.

— Vi três  pintarroxos juntos!

—  Juntos?  Uns ao lado dos outros?

— Não. Um na estrada, outro num arbusto e outro sobre a relva.  Mas vi-os ao mesmo tempo.  Vou ter a minha árvore de Natal?

— Sem dúvida, prometeu o irmão, perante tanta alegria.  Mas como?

Lucien bem gostaria de dar essa alegria ao seu irmãozinho, mas como encontrar uma verdadeira árvore de Natal?

Após o jantar, Lucien foi dar um passeio, procurando uma idéia. Pinheiros não faltavam.. e quando acariciava um dos mais bonitos, a percebeu-se de um suave murmúrio: “eu farei uma bonita árvore de Natal, se tu quiseres…”

— Não posso levar-te para casa.

— Trarás o teu irmão junto de mim.

— Mas… falta-te tudo, para seres uma árvore de Natal.

— Podemos encontrar tudo aqui.  Tenho amigos, a neve, a geada, as corujas, os silvados, a lua, o céu e até mesmo as aranhas, que estão escondidas no celeiro.  Os meus amigos poderão ajudar-te, não queres?

Então a neve disse:  “Tornarei branco o pinheiro, como se fosse de arminho”; a geada pronunciou: “Fá-lo-ei brilhar como se estivesse salpicado de diamantes”; os silvados: “Nós temos bonitas bagas vermelhas”;  as corujas prometeram dissimularem-se nas ramagens e abrindo e fechando os olhos brilhantes, substituírem as lâmpadas elétricas.

O céu oferecia as estrelas, para enfeitar as pontas dos ramos, e a Lua estenderia os seus raios brilhantes, para colorir as pinhas e os brinquedos de madeira que Jean teria.

Lucien regressou a casa, contentíssimo.  Mas de repente, pensou que se tinha esquecido das aranhas.  Que poderiam elas oferecer?  Foi ao celeiro.

— Fizeste bem em vir, disseram elas, poderemos tornar a árvore verdadeiramente bela.  Lançaremos fios de alto a baixo, e a envolveremos numa rede de renda.

— Mas os vossos fios são escuros e tristes?!?!

— Não.  A geada prateará os nossos fios, verás.

A noite de Natal chegou.

O pai tinha comprado um lindo bolo.  Jantaram e deitaram-se.  Assim que pressentiram que o pai dormia, Lucien agasalhou muito bem o irmão e saíram silenciosamente.

Ao  dobrar a esquina da estrada, Jean parou fascinado.  A Árvore de Natal estava ali, grande e tão bem enfeitada que nada poderia haver de mais belo.

Os ramos cintilavam.  Longos fios prateados envolviam-na e as corujas  escondidas abriam e fechavam os olhos alternadamente.

Jean nem se preocupava com os brinquedos, pendurados pelo irmão:  um pífaro feito de um junco, animais feitos à faca, um cachimbo e misteriosos saquinhos com berlindes, bonbons e outras coisas.

A Lua dava um tom dourado a tudo.  As estrelas cintilavam docemente nas extremidades dos ramos, enquanto ao longe, o som mavioso dos sinos subia e chegava até eles.

Foi assim que Jean, o menino órfão de mãe, pode ter, para ele só nessa noite, a mais linda árvore de Natal.

Tradução do livro Les Contes de Perrette

Em:  Comércio do Seixal e Sesimbra, Semanário,  17 de dezembro de 2010, Ano IV, nº 129





O pássaro azul, conto infantil, Wilson W Rodrigues

17 06 2009

passarinho na gaiola 4

O pássaro azul

Wilson W Rodrigues

— Quem quer comprar o pássaro azul?

— O pássaro azul!  repetiram os meninos.

— Quer-me vender?  Dou todos os meus brinquedos.

O moleque vendeu.

O menino rico levou a gaiola com o pássaro.  De tarde, o tio do menino foi visitá-lo, e ficou tão encantado com o pássaro que propôs:

— Em troca do pássaro azul eu lhe dou um automóvel.

O menino rico aceitou.

Mal o tio levou o pássaro para casa, chegou um amigo banqueiro:

— O pássaro azul… o pássaro da felicidade.

O banqueiro desafiou:

— Vamos disputá-lo num jogo de cartas?

O tio, que estava convencido que aquele era o pássaro azul da felicidade, aceitou.  E perdeu.

O banqueiro levou o pássaro azul para o palácio.

— Coloquem-no em uma gaiola de ouro… é o pássaro da felicidade.

Um criado, sabendo que aquele pássaro trazia a felicidade, roubou-o e deu-o de presente a sua noiva:

— É o pássaro da felicidade.

— Vou botá-lo no viveiro do jardim.

Botou.

Um moleque que estava com outros em cima do muro, reconheceu:

— Lá está o meu pássaro azul.

— È ele mesmo.

— Ainda está pintado de azul.  A cor não desapareceu.

E o pássaro vendo o lagozinho jogou-se n’água, tomou um banho… e a cor desapareceu.

Quando a moça voltou com o alpiste, ficou espantada:

— Cadê o meu pássaro azul da felicidade?

***

Em: Contos dos caminhos, Wilson W. Rodrigues, s/d, Estado da Guanabara [RJ]:Torre Editora.

 

 

Wilson Woodrow Rodrigues — poeta, folclorista, jornalista, professor e técnico de educação.  Nasceu em 6 de julho de 1916, na cidade de São Salvador, Bahia.  Filho do Cel. Julio Rodrigues de Sousa e de D. Josina Parente Rodrigues, família do Recôncavo Baiano.  Desde menino revelou vocação para a poesia, tendo publicado as suas primeiras composições em periódicos escolares.  Seu primeiro livro publicado teve as bençãos antecipadas do poeta Jorge de Lima.

Obras:

A caveirinha do preá,  Arca ed.: s/d, Rio de Janeiro

Desnovelando, Arca ed., s/d, Rio de Janeiro

O galo da campina, Arca ed,: s/d, Rio de Janeiro

O pintainho, Arca ed.: s/d, Rio de Janeiro

Por que a onça ficou pintada, Arca ed:s/d, Rio de Janeiro

A rãzinha, Arca ed:s/d, Rio de Janeiro

Três potes, Arca ed:s/d, Rio de Janeiro

O bicho-folha, Arca ed:s/d, Rio de Janeiro

A carapuça vermelha, Arca ed:s/d, Rio de Janeiro

Bahia flor, 1948 (poesias)

Folclore Coreográfico do Brasil, 1953

Contos, s/d

Contos do Rei-sol, s/d

Contos dos caminhos, s/d

Pai João, 1952

Sombra de Deus

Pai João, 1952

Lendas do Brasil