Chuva no Nordeste, texto de Graça Aranha

2 09 2024

 

 

 

“Uma manhã lá no Cajapió (Joca lembrava-se como se fora na véspera), acordara depois duma grande tormenta no fim do verão. A madrugada estava orvalhada, mas serena, e ele se erguera da sua rede para ver o tempo. Um grande tapete de verdura fresca e úmida parecia ter descido do céu e coberto como um manto misterioso o campo… Os olhos perdiam-se na campina alegre; o gado festejava o rebentar da vida na terra e comia a erva tenra; um bando de marrecas passava grasnando, pousava aqui , levantava o voo acolá, buscava mais longe a região dos eternos lagos… Dias inteiros de chuvas; o pasto agora era farto, a água porfiava em vencê-lo, e quando mais tarde o dilúvio se interrompia, viam-se na vasta savana verdes pontos claros que eram o refrigério dos olhos. Eram os primeiros lagos. Em volta deles uma multidão de aves aquáticas brincavam descuidosas  e ostentavam as penas de cores vivas e quentes. Vinham pássaros de toda a parte; pernaltas com o seu bico de colher, marrecas em algazarra, jaçanãs leves e tímidas; e à tarde, quando o céu se vestia de nuvens cinzentas, notava-se desfilar, ora o bando marcial e rubro dos guarás, pra a ala virgínia e branca das garças… No fundo dos lagos multidão de peixes borbulhavam por encanto. E em tudo o mesmo milagre de ressurreição, de rejuvenescimento, de expansão e de vida.”

 

Em: Canaã, Graça Aranha, 1902, em domínio público.

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Esta é uma das mais belas descrições de uma multitude de ações, de dezenas de animais, tudo acontecendo num momento, em um único parágrafo.





A dança dos colonos alemães, texto de Graça Aranha

10 05 2014

 

 

Kerb(fest..[1]Kerb, 1892

Pedro Weingärtner (Brasil, 1853 – 1929)

óleo sobre tela

Coleção Particular

 

 

Os dançantes continuavam no compasso marcial da polaca, executando variadas figuras, ora desenhando meias-luas, ora separando-se em alas, marchando frente a frente, ora fazendo evoluções de homens e mulheres, separados, para se reunirem depois de diferentes voltas. Os movimentos eram tardos e pesados; dentro de sapatos grossos e ferrados, batendo fortemente os pés no assoalho, arrastando-se com esforço, faziam um barulho seco, enorme, que dominava as vozes dos instrumentos. Quando a contradança parava, os pares voltavam-se num mesmo instante como por uma combinação mágica, e todos livres se moviam vagarosamente, procurando os bancos encostados às paredes das salas ou aos cantos das janelas. Muitos saíam até ao terreiro, para se refrescar; namorados passeavam ali no escuro, abraçados; velhos fumavam o seu cachimbo, resmungando conversas preguiçosas, até que de novo a música dava o sinal e todos voltavam à sala, em ordem, sem o menor embaraço, passando a dançar automaticamente, de charuto ou cachimbo ao queixo e chapéus na cabeça, enquanto as mulheres amarravam lenços ao pescoço, por causa do suor que lhes escorria da fronte.

 

Em: Canaã, Graça Aranha, 1902, em domínio público.