Cândida de Gusmão Cerqueira de Menezes (Brasil, 1901-1994)
óleo sobre tela, 46 x 38 cm
Cândida de Gusmão Cerqueira de Menezes (Brasil, 1901-1994)
óleo sobre tela, 46 x 38 cm
Bustamante Sá (Brasil, 1907-1988)
óleo sobre tela, 60 x 73 cm
Coleção particular
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Comecei o ano de 2010 com a leitura de um clássico brasileiro, um livro cujo título virou quase que um jargão, com muitas pessoas o repetindo, já sem saberem referência exata. Uma pequena busca no Google mostra esta frase sendo usada para os mais diversos fins. Sinal do seu grande sucesso. Olha para céu, Frederico! foi o meu segundo José Cândido de Carvalho. Conhecido de todos que freqüentaram escolas brasileiras pelo romance O Coronel e o Lobisomen, José Candido de Carvalho acabou tendo o resto de sua obra injustamente relegada a um outro patamar. Então hoje, começo a colocar em dia a dívida que tenho comigo mesma de conhecer melhor o trabalho deste autor fluminense.
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A característica mais marcante deste romance, além do retrato dos negócios e da decadência moral das famílias usineiras de açúcar da região de Campos dos Goytacazes, é, sem dúvida, um delicioso senso de humor que seduz e capacita o escritor a falar de assuntos sérios sem que venha a melindrar os orgulhos de famílias locais ou as politicagens bastante conhecidas dos anos 30 na região retratada. Além deste senso de humor, há no romance inteiro, as mais saborosas expressões, figuras de linguagem, que me fizeram parar a leitura e anotá-las, não só porque me pareceram novas, mas também porque me fizeram recordar de umas outras tantas maneiras de falar de pessoas que conheci na minha infância, quando a influência e a homogeneização da cultura através dos meios de comunicação nacionais não era ainda tão extensa. Aqui estão algumas dessas delícias:
“Quem visse Frederico assim de fala mole, com miséria nas conversas, era capaz de acreditar num São Martinho encalhado, de rodas mortas, com ninho de rato nas fornalhas. Conheci e vi morrer meu tio com esses lamentos que só acabaram quando sua boca se fechou vazia de palavras”.
“Era alto como vela de promessa”.
“Tanta gentileza acabou por trazer Dona Lúcia para a cama de Frederico. Os parentes é que não viam nada. Só olhavam a velhice de meu tio, a plantação que podia nascer em sua testa”. … “Agora, com um simples negócio de altar, os mourões do São Martinho ficavam sendo as pitangueiras da praia”.
“O raposão do meu tio não mostrava as unhas. Na varanda, de tarde, esparramado na cadeira de preguiça, lia os jornais. Vinha gente tirar prosa com ele. Conversinhas de calor, da miséria de fim de vida que andava solta pelo mundo”.
“Os barões, dependurados em pregos de parede, por trás das barbas , espiavam meus desmandos”.
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José Cândido de Carvalho
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Eduardo, nosso narrador, um menino órfão, vai morar com o tio Frederico e nunca chega a entender o velho. Não percebe como o tio era uma raposa velha, sempre comendo beiradas, parecendo um cordeirinho, mas que na hora H, dava o bote certeiro arrancando tudo do vizinho, do parente mais próximo, de quem fosse mais fraco, mesmo sem o saber. Frederico era um estrategista, com homem com olho grande, matreiro, conhecedor das fraquezas humanas.
Tendo passado os primeiros anos de sua vida na família de outro tio, Eduardo, chega à casa de Frederico cheio de orgulho por seus antepassados, nobreza brasileira, dona de terras e de gente. Depois de quase quinze anos no engenho São Martinho, com Frederico, ele recebe uma vistosa herança quando o tio morre. Mas Eduardo mostra que todo o tempo passado nessa usina de açúcar, pouco o atingiu. Só mesmo o aprendizado de sem-vergonhice vingou. No mais, ele que parece aberto à modernidade, às máquinas para melhor aproveitamento da cana de açúcar, mas logo, logo, mostra que em seu íntimo ainda vive de um esplendor imaginado da época de seus antepassados e espalha arrogância e desprezo pelos outros.
E assim vai o romance, com a prosa descontraída das conversas de varanda, com ritmo próprio que acompanha um enrolar de cigarro de palha, ou se cala para ouvir os primeiros grilos de um início de noite. Mas, por trás desta ingenuidade quase caipira, há uma forte crítica à sociedade dos usineiros, dos donos das terras, dos decadentes baronatos, gente com mentalidade de estupradores da terra, piratas permissionários pela monarquia, que pouco construíram além de famílias ilegítimas, de uma prole gerada com ex-escravas ou mulheres sem condições financeiras. Este grupo de irresponsáveis, mal letrados, preferiu continuar com a exploração nos moldes escravagistas, em que todos de quem dependia cresciam abandonados, sem recursos financeiros ou intelectuais, fadados a perpetuar a pobreza no campo por gerações e gerações futuras.
Olha para o céu, Frederico! é um livro que vale a pena ser lido, para nos lembrarmos também de como chegamos aqui, até hoje, em 2010. E para sabermos não repetir os erros do passado, de um passado nem tão longínquo. Apesar da seriedade do assunto tratado, o texto é leve, cheio de passagens humorísticas que nos levam facilmente ao fim: sem sermões, sem dogmatismo. Uma excelente leitura.
Qualquer visitante à cidade Campos de Goytacazes, no norte fluminense descobre ruas, escolas e demais logradouros públicos freqüentemente batizados com um nome de mulher: Benta Pereira. Perguntando aos campistas, cidadãos comuns, que poderiam ser nossos vizinhos, profissionais liberais, comerciantes em diversos ramos, gente que lê jornal e tenta votar conscientemente, fiquei pasma ao descobrir que ninguém tinha uma boa noção sobre esta mulher, cujo nome aparece com suficiente regularidade para que se indague se não haveria alguma importância local, ao invés simplesmente da “ deve ter sido mãe ou mulher de político antes do meu tempo.”
Infelizmente muitos de nós brasileiros às vezes até nos gabamos da nossa ignorância, como se todo o passado fosse de pouquíssima importância, porque afinal “veja no que deu… olhe à sua volta…” Mas é justamente o conhecimento destes pequenos heróis locais, destas pessoas que se destacaram na defesa de seus direitos, que em outros países leva a população à conscientização da cidadania; ao orgulho local, bairrista é verdade, mas necessário na educação de cidadãos. Por quê? Porque este orgulho pela terra natal, pela história dos heróis da terra, cujos descendentes talvez ainda conheçamos, pode servir não só de exemplo mas de inspiração na defesa do meio ambiente, do ar, dos rios às florestas nativas; na defesa do monumento histórico e dos direitos do cidadão.
Mas como? Na defesa dos direitos do cidadão? Claro. Vejamos o caso de Benta Pereira. Nome completo: Benta Pereira de Souza. Heroína local. Uma senhora que viveu no início do século XVIII. Nasceu por volta de 1670-1675 [ a data de nascença é incerta] e morreu aos 75 anos, em 10 de dezembro de 1760. Filha do Padre Domingos Pereira Cerveira com Isabel de Souza. Casou-se com Pedro Manhães e com ele teve seis filhos que criou sozinha depois de enviuvar. Era uma mulher de muitos bens e sozinha não só gerenciou a fortuna deixada pelo marido e como educou os filhos.
Aos 72 anos de idade, Benta Pereira montou num cavalo e armada liderou uma revolta contra o 3º Visconde de Asseca, Diogo Corrêa de Sá, donatário da capitania da Paraíba do Sul. Ela lutava não só pela liberdade de suas terras, cujas delimitações haviam sido infringidas pelos viscondes, como contra os pesados impostos requeridos pelo donatário. Criadora de gado bovino numa terra que se transformava em um grande canavial com a exploração do açúcar, Benta Pereira, ladeada por sua filha Mariana de Souza Barreto, lutou sem descanso até conseguir a expulsão dos Assecas da capitania. Lutou pelas terras que havia herdado de seus antepassados que por sua vez as receberam em 1627 das mãoo do governador Martim Correa de Sá em reconhecimento pelo corajoso desempenho destes homens nas lutas contra os guerreiros Goitacás.
Quase cem anos foi o período de lutas violentas entre os Asseca, cujo título havia sido criado pelo rei de Portugal para apaziguar lutas familiares na casa de Bragança e os herdeiros dos Sete Capitães (Miguel Aires Maldonado, Miguel da Silva Riscado, Antonio Pinto Pereira, João de Castilhos, Gonçalo Correa de Sá, Manuel Correa e Duarte Correa). As terras em questão, que estavam próximas da Lagoa Feia até a Ponta de São Tomé e que pertenceram originalmente a Pero de Góis da Silveira que acompanhara Martim Afonso de Souza em 1530, haviam sido dedicadas à criação de gado desde 1633 quando currais foram levantados.
É verdade que mais tarde os Viscondes de Asseca ainda conseguiram retomar as terras, sob ordem do então governador do Rio de Janeiro. Mas a festa durou pouco. Os colonos, herdeiros de terras e pessoas comuns já haviam sentido o gosto revolucionário, o gosto de uma independência ainda que tardia, sob o comando de Benta Pereira. E os Viscondes de Asseca, enfraquecidos, logo, logo perderam suas terras. Em 1752 a capitania da Paraíba do Sul foi incorporada à coroa portuguesa.
Retomo esta história aqui por acreditar que pessoas que se revoltaram contra os excessos da nobreza, contra o descaso da coroa portuguesa, a favor de um Brasil diferente, não colonizado, pagador de impostos mais justos, reconhecedor dos direitos judiciais, deveriam ter seus nomes amplamente reconhecidos, como verdadeiros heróis, personagens que lutaram para que nós, nossos avós e bisavós nascidos aqui ou imigrantes pudessem ter neste novo mundo, um ambiente muito mais justo do que aquele que deixaram para trás numa Europa ainda medieval na sua índole e de fato.
Recentemente peregrinando pelos sebos do Rio de janeiro tive o prazer de ver que nos antigos livros adotados pelas escolas estaduais nos anos 50 e 60, de Theobaldo Miranda Santos, Benta Pereira era homenageada como uma importante figura da história fluminense. O que aconteceu com este conhecimento? Por que, hoje, nem mesmo aqueles que residem em Campos dos Goytacazes estão cientes do valor desta senhora, heroína verdadeiramente brasileira? Mesmo que Ordem de Mérito Benta Pereira seja a mais alta condecoração da Câmara Municipal de Campos de Goytacazes o habitante de Campos não a conhece e muito menos os outros cidadãos fluminenses.
Resgatar esta e outras histórias é essencial. O nosso passado não começou em 1822. Há por trás desta data 300 anos em que brasileiros, pessoas nascidas aqui e com amor a esta terra, lutaram também para a melhoria e o beneficiamento do país.
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Para maiores informações sobre Benta Pereira e seus descendentes, o blog Historiar em 5 de maio de 2009 tem uma excelente entrada: