Amsterdã no século XVII, José Rodrigues dos Santos

2 02 2025

Mapa de Amsterdã no século XVII.  A cidade era capital dos Países Baixos e o maior porto no delta do Rio Amstel.  O século XVII, também chamado de Século de Ouro, foi um período de grande prosperidade no país, fazendo de Amsterdã uma das cidades mais ricas do mundo.  Mapa de 1652, do cartógrafo  Joan Blau (1596-1673).

 

 

Amsterdã era uma das maiores cidades do planeta, prodígio da civilização, epicentro do comércio mundial. As suas ruas estreitas, forradas por armazéns e cortadas por pontes, cheiravam a óleo de fritar, a cerveja e a tabaco felpudo, odores tão densos que se diria formarem uma neblina aromática. Todos os novos edifícios eram em tijolo, estreitos e de fachadas ornamentadas por um arenito claro, mas ainda se viam amiúde construções em madeira, vestígios dos tempos medievais. A maior parte das construções tinha dois andares acima do rés do chão, mas viam-se algumas de três e quatro andares e a mais alta chegava, para pasmo dos visitantes, aos sete. A riqueza da cidade atraíra imensa gente e a maior parte daqueles imóveis tinham sido retalhados em vários apartamentos para alugar por uma bela maquia ao crescente número de pessoas que por ali procuravam alojamento. Havia lojas por toda parte, decoradas com as mais variadas tabuletas; tão bonitas que a chamada uythangboord se tornara mesmo uma forma de arte. O movimento de carroças, fiacres e caleches nas ruas pavimentadas e de transeuntes nas bermas mostrava-se intenso, mas nem todos os que por ali deambulavam eram neerlandeses; viam-se muitos estrangeiros, sobretudo visitantes aliciados pela fama da prosperidade e da higiene da cidade. As maravilhas que se diziam de Amsterdã eram tantas e tão grandes que os forasteiros iam ali para se certificarem de que as descrições fabulosas que lhes haviam feito correspondiam mesmo à verdade, que era possível uma cidade ser limpa e bem-cheirosa, que existia mesmo uma urbe à face da Terra onde não havia mendigos a cada esquina e onde a prosperidade saltava à vista de todos, com estabelecimentos comerciais a venderem tudo de todo o mundo.

.  .  .  .  .  .  .

Ao longo da Breestraat viam-se as lojas e os armazéns a exibirem os produtos mais variados; muitos provenientes de empresas neerlandesas como a Companhia das Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais, outros de empresas portuguesas como a Carreira das Índias e a Companhia Geral do Comércio do Brasil, outros ainda de navios oriundos de Veneza, de Antuérpia, de Hamburgo ou de outros pontos, incluindo saques efetuados por corsários marroquinos. As prateleiras enchiam-se assim de porcelanas de Cantão e de Nuremberg, tapetes de Esmirna, tulipas de Constantinopla, sedas de Bombaim e de Lyon, pimenta das Molucas, sal de Setúbal, linho branco de Haarlem, lã de Málaga, faiança de Delft, sumagre do Porto, açúcar do Recife, madeira de Bjørgvin, tabaco de Curaçau, marfim de Mina, azeite de Faro. Havia ali de tudo e de toda a parte, como se o bairro português de Amsterdã fosse o bazar dos bazares, o mercado do mundo.

 

 

Em: O segredo de Espinosa, José Rodrigues dos Santos, Planeta: 2023.





Da memória, Arnon Grunberg

4 10 2016

 

 

fulvio-de-marinis-italia-1971-jpg-com-vinhoCom vinho

Fulvio de Marinis (Itália, 1971)

óleo sobre tela

 

 

“Você é escravo de suas lembranças. Simples assim… Algumas pessoas se lembram de coisas que nunca aconteceram. Até isso ocorre. São escravas da ficção. Mensageiras de seu próprio mito.”

 

 

Em: Tirza, Arnon Grunberg , tradução de Mariangela Guimarães, Rio de Janeiro, Estação Londres: 2015, p. 174

Salvar

Salvar





Resenha: “Tirza” de Arnon Grunberg

1 10 2015

 

Leonid Afremov, The Gateway to Amsterdam, 2000s, oil on canvas, [no dimensions], Private CollectionPorta de entrada para Amsterdã, 2000

Leonid Afremov (Bielorússia/Israel, 1955)

óleo sobre tela

Coleção Particular

 

 

Há muito tempo não leio um autor que demonstra tamanho domínio de seu texto como Arnon Grunberg. Ele brinca com o leitor sem que este o perceba. Ele nos envolve, nos seduz, nos puxa pela mão, mostra o que quer, esconde o que não precisa ser contado. Brinca. Cria. Joga xadrez conosco. Não percebemos a manipulação. Muito pelo contrário, queremos mais. Queremos mais de tudo, e as páginas são lidas com sofreguidão. O que as embala é uma sensação de que algo está para acontecer, algo será revelado a qualquer momento. A tensão é semelhante a de um filme de Alfred Hitchcock. Não se trata de uma história de uma centena de páginas. São 464 páginas em que o autor constrói aos poucos, deliberadamente, detalhes das personalidades envolvidas na narrativa, fazendo-nos íntimos dos membros da família Hofmeester. Ficamos familiarizados principalmente com Jörgen Hofmeester, pai de duas meninas, marido de uma artista plástica que entra e sai de sua vida à vontade, editor de ficção estrangeira de uma casa editorial em Amsterdã, homem em idade próxima à da aposentadoria, que mora num bairro da cidade de fazer inveja aos amigos, que possui uma casa de veraneio, que junta economias e as investe na Suíça, um homem, que tenta, porque tenta, sem colocar quaisquer barreiras, fazer aquilo que é certo e esperado dele. E, no entanto, há uma tensão imensa dentro desse pai de família. Tudo nele é quase obsessivo, mas sob controle. A perfeição é sua meta quer na cozinha, onde aprende a cozinhar quando sua mulher o deixa para “se encontrar”, quer no controle financeiro de sua vida, com a intenção de deixar um patrimônio sólido para as filhas.

 

TIRZA

 

Tirza é o nome da filha caçula de Jörgen Hofmeester, sua filha preferida, aquela que completa 18 anos e está pronta para entrar na universidade. Para comemorar essa passagem decide viajar pela África, e uma festa colocará o ponto final na vida anterior e marcará o início de sua nova aventura. Seu pai prepara a festa com cuidado, fazendo, ele mesmo, os quitutes, arranjando as bebidas. Durante esses preparativos aprendemos sobre a família. Sobre a mãe, as meninas, Ibi, a irmã que já não mora na Holanda e, sobretudo, conhecemos Jörgen. Apesar de um tanto fora da norma, nossa identificação com ele é inevitável. Conhecemos seus desejos, seus desapontamentos. Sua absoluta solidão. Há humor nessa narrativa, muito humor, porque entendemos sua visão do absurdo. Ocasionalmente a vida parece caótica e surreal, mas o humor vem mesmo das situações cotidianas, daquelas pequenas decisões que não dão certo, das expectativas frustradas,de sua inépcia social.

 

 

Arnon+Grunberg+©+RingelGoslinga+2013+-+RV+smallArnon Grunberg

 

Mas, há sempre a sensação de algo oculto. Há uma expectativa subjacente. Uma perturbação que nos deixa alerta. Há a sensação de que algo já aconteceu, mas não sabemos o que, há um ponto cego: incesto? Violência no casamento? O que? É como se tivéssemos sido as rãs numa panela com a água quente e não percebemos que a água ferveu. Esse mistério, essa dúvida só se esclarece nas últimas páginas. E é surpreendente. Um final estarrecedor. Imprevisível. Vale todas as horas dedicadas à leitura.

Este está, para mim, entre os melhores livros lidos neste ano e tem tudo para estar entre os meus favoritos de todos os tempos. É impossível discuti-lo sem revelar mais do que deveria. Mas recomendo sem constrangimento sua leitura para todos os leitores.





Oito pequenos notáveis: livros inesquecíveis com menos de 200 páginas

8 09 2015

 

 

Still Life (French Novels) painting by Vincent van Gogh (c. 1888 Paris, France) Van Gogh Museum, Amsterdam, NetherlandsRomances franceses, 1888

Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)

óleo sobre tela, 73 x 53 cm

Museu van Gogh, Amsterdam

 

 

Tendo lido recentemente O sentido de um fim, de Julian Barnes, uma obra com meras 156 páginas, resolvi listar outras pequenas joias literárias que se apresentam de maneira sucinta e que nem por isso perdem o verdadeiro objetivo da boa literatura: mover o leitor a refletir.   Assim aqui vai mais uma lista para quem segue o blog, escolhido pela Peregrina.

 

Pequenos notáveis

Livros inesquecíveis com menos de 200 páginas

 

 

EM ORDEM ALFABÉTICA

 

As Avós de Doris Lessing

 

avc3b3s
Billy Budd, marinheiro de Herman Melville

 

ArquivoExibir.aspx
A Casa de Papel de Carlos Maria Dominguez

 

A_CASA_DE_PAPEL_1277433062B
A Fera na Selva de Henry James

 

A_FERA_NA_SELVA_1313554751B

O Sentido de um fim de Julian Barnes, obra vencedora do Man Booker Prize de 2011.

 

O_SENTIDO_DE_UM_FIM_1339789896B

A Trégua de Mário Benedetti

 

A_TREGUA_1235086376B

Vermelho Amargo de Bartolomeu Campos de Queirós

 

VERMELHO_AMARGO_1305813947B
24 horas na vida de uma mulher, de Stefan Zweig

 

24_HORAS_NA_VIDA_DE_UMA_MULHER_1265039258B

 

 

Mais algum que deixei de lado?  Tem que ser sensacional.  Obras com menos de 200 páginas existem aos borbotões.  Mas que deixem marcas no coração?

 





Imagem de leitura — Jan Toorop

29 08 2015

 

 

Jan_Toorop_-_Portret_van_Marie_Jeanette_de_Lange_001Retrato de Marie Jeanette de Lange, 1900

Jan Toorop (Holanda, 1858-1928)

óleo sobre tela

Rijksmuseum, Amsterdam





Michel Houellebecq sobre literatura

27 07 2015

 

 

bramine-hubrecht-lecture Alphons Joseph Marie Antoine Grandmont lendo para duas jovens italianas, década de 1900  [DETALHE]

Bramine Hubrecht (Holanda, 1855-1913)

óleo sobre tela, 100 x 100 cm

Rijksmuseum, Amsterdam

 

“Quando se trata de literatura, a beleza do estilo, a musicalidade das frases têm sua importância; a profundidade da reflexão do autor, a originalidade de seus pensamentos não são de desprezar; mas um autor é antes de tudo um ser humano, presente em seus livros; que escreva muito bem ou muito mal, em última análise, importa pouco, o essencial é que escreva e esteja, de fato,presente em seus livros…”

 

Submissão, Michel Houellebecq, Rio de Janeiro, Alfaguara: 2015, p.11