Resenha: “O homem sem doença” de Arnon Grunberg

28 05 2018

 

 

Georges van Houten (Belgica, 1888-1964) Retrato de mulher em amarelo lendo um livro, 1953Retrato de mulher em amarelo lendo um livro, 1953

Georges van Houten (Belgica, 1888-1964)

Acervo da Universidade de Oxford

 

 

 

Tornei-me fã de Arnon Grunberg após a leitura de Tirza, que junto a O refugiado, é considerado uma de suas obras-primas, entre os mais de doze romances publicados.  O Homem sem doença (2012), traduzido por Mariângela Guimarães, é bem mais recente.  São duas obras diferentes em polos opostos do espectro. Elas se encontram na narrativa de suspense típica de Grunberg que faz o leitor permanecer em estado de alerta sobre o futuro dos personagens, preocupado com o que virá a acontecer.  E quando eventos finalmente se concretizam têm a habilidade de retratar  uma realidade muito pior do que a imaginação permitiria.

Confesso que sem meu grupo de leitura eu não teria me preocupado em escrever sobre este romance, porque não gostei.  Mas não gostei do quê?  E por que razão? Fui até o fim.  Li, palavra por palavra.  Mas me perdi no asco gerado pelas imagens vivas e em cores de selvageria e agressividade; desfiz-me imaginando torturas e vagueei pelo mundo sem saída de Samarendra Ambani, arquiteto suíço de origem indiana, que protagoniza a obra. A personalidade de Sam habita a zona limítrofe mental. O leitor entrevê, nas detalhadas ações do cotidiano, uma zona de penumbra comportamental perigosa, apoiada na instabilidade de humor, que se reflete nas relações sociais do personagem.  O desconforto gerado com a leitura começa desde o primeiro parágrafo, quando descobrimos que há discrepância entre a visão que ele tem de si mesmo e o que é: “gostaria de ser visto como um viajante profissional, alguém que já esteve em quase toda parte do mundo e, portanto, também se sente em casa em qualquer lugar” [7]. Grunberg é generoso com o leitor. Logo no primeiro capítulo, dá as diretrizes do comportamento do arquiteto, mas de maneira sutil, portanto temos que pescar, nas ideias subordinadas, aquelas características que irão servir de fio de Ariadne, para o entendimento de Sam.  Sabemos, por exemplo, que Sam não consegue exprimir seus sentimentos em palavras: “Que bom que você está aqui! Ele gostaria de dizer isso sem palavras e por isso não diz nada. Sentimentos e palavras não combinam. Em sua opinião a palavra mata o sentimento” [10]. Para ele o mundo deveria ser perfeito e organizado como a própria Suíça e imperfeições são difíceis de aceitar. Com a irmã doente, presa numa cadeira de rodas, ele vacila entre curá-la ou matá-la, pois um mundo imperfeito é inaceitável. Não fazendo nenhum dos dois, chega à sua definição do amor: “… não é amor quando não sabemos mais se queremos fazer desaparecer ou curar o objeto dos nossos sentimentos?” [14]. E quando se apaixona, Sam justifica: “Ela era a mulher mais civilizada que ele já havia encontrado e ele buscava civilidade no amor.”[16]. “Nina era completamente diferente de sua irmã. Não babava, era independente, podia ir sozinha ao banheiro e também não precisava de ajuda para tomar banho. A civilidade começa com o controle do próprio corpo.” [17]. Mas será que se apaixona?  Será que é capaz deste sentimento?

 

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O passo seguinte é Sam perder o controle. Projeta a primeira casa de ópera de Bagdá, construção que na vida real havia sido desenvolvida pelo arquiteto americano Frank Lloyd Wright,  em 1957, sem ter sido concluída. É exatamente neste momento, em que se prepara para erigir a casa de ópera, projeto de sua autoria, vencedor de uma competição internacional, que Sam entra no mundo labiríntico iraquiano.  Confinado a uma realidade Kafkaniana, onde nenhum parâmetro pode ser delineado; num mundo paralelo, onde a racionalidade não existe, e certezas têm a solidez de miragens, Sam se desconstrói emocional e fisicamente. Nem mesmo a profissão de arquiteto cujos preceitos ordenam o cotidiano serve de eixo para seu desempenho diário. E as consequências dessa aventura de mau gosto são sentidas no decorrer de seu retorno ao mundo civilizado suíço.

Como alguém se refaz de tal desmanche?  Como sobreviver quando tudo em que sua vida se baseou foi destruído, despedaçado? Sobrevivente dos excessos que lhe foram impostos, do desregramento, Sam retorna diferente.  E encontra um mundo também mudado.  Até mesmo o bigodinho de sua namorada, que ele tanto apreciava, desapareceu nesse intervalo. Será que sua maneira de achar controle, equilíbrio também foi corrompida?

 

Arnon-grunberg-450x302Arnon Grunberg

 

Já no mundo inglês o provérbio “if you can’t beat them, join them” [se você não pode vencê-los, junte-se a eles] nos dá uma ideia parcial do futuro de Sam. Como um viciado, com um dependente dos abusos que lhe foram impostos, Sam retorna ao mundo que o corrompeu.  Não encontra a satisfação que esperava e em ação quase heroica, desesperada, semi-demente, se desvencilha de tudo que compôs seu mundo e dá a prova final de amor e dedicação à irmã.

Esta poderia ser a leitura mais romântica da obra.  Mas há no subtexto a grande ironia das verdades humanísticas, das propostas idealizadoras da civilização; há a crítica aos lugares-comuns que alardeamos como verdades inquestionadas. Há crítica ao idealismo ocidental. E então você me pergunta, por que não gostou? Uma obra tão rica, que pode ser lida em diferentes níveis? Porque não preciso da brutalidade das imagens para entender o conteúdo.  Porque há um exagero de provocação, de vitupério.  Avilte, violência, barbaridade e desumanidade. Por melhor que a obra seja, não quero passar horas e horas abraçada a esses despropósitos.  Acredito na meia-palavra, no signo que a imaginação do leitor preenche. Prefiro que o autor me dê o crédito de entender as evasivas, de perceber a obliquidade.  Não preciso da adulação à violência, nem do barroco na crueldade. Por isso não gostei. É uma preferência minha.

 

 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem qualquer incentivo para a promoção de livros.





Ética e estética, por Arnon Grunberg

16 05 2018

 

 

Paul Wonner The Newspaper 1960 painting oil on canvas, 120x 138O jornal, 1960

Paul Wonner (EUA, 1920 – 2008)

óleo sobre tela,  120 x 138 cm

 

 

“Não há ética sem estética. Quem negligencia a estética mais cedo ou mais tarde também pode enterrar a ética.”

 

Em: O homem sem doença, Arnon Grunberg, Rio de Janeiro, Rádio Londres: 2016, p. 53





Lendo: “O homem sem doença”, Arnon Grunberg

12 05 2018

 

 

 

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Lendo:

O HOMEM SEM DOENÇA

Arnon Grunberg

Rádio Londres: 2016, 240 páginas

 

SINOPSE

O romance narra as desventuras tragicômicas no Oriente Médio de Samarendra Ambani, jovem e idealista arquiteto zuriquense de origem indiana. Ao participar de um concurso para a construção de um teatro de ópera em Bagdá, Sam é selecionado e convidado para ir ao Iraque. A viagem, iniciada em clima de ingênuo otimismo, rapidamente se transforma em uma experiência traumatizante: no país devastado pela violência, ele vivenciará a brutalidade da guerra na própria pele: enganado, absurdamente acusado de ser espião, é preso, interrogado e torturado, conseguindo retornar para a Suíça graças apenas à inesperada intervenção da Cruz Vermelha. Uma vez em Zurique, Sam tenta retomar a normalidade, mas, ferido no corpo e na mente, não consegue e, pouco tempo depois, viaja para Dubai, a fim de acompanhar o projeto de construção de uma grandiosa biblioteca. No emirado, nosso herói é novamente acusado de espionagem e até de assassinato, acusações que o levarão a um trágico e surreal epílogo.
Uma história trágica contada com irresistível ironia, O homem sem doença é um impiedoso ato de acusação contra o idealismo e a hipocrisia do Ocidente, que logra, ao mesmo tempo, divertir e chocar o leitor. Em outras palavras, é um típico romance de Arnon Grunberg.





Da memória, Arnon Grunberg

4 10 2016

 

 

fulvio-de-marinis-italia-1971-jpg-com-vinhoCom vinho

Fulvio de Marinis (Itália, 1971)

óleo sobre tela

 

 

“Você é escravo de suas lembranças. Simples assim… Algumas pessoas se lembram de coisas que nunca aconteceram. Até isso ocorre. São escravas da ficção. Mensageiras de seu próprio mito.”

 

 

Em: Tirza, Arnon Grunberg , tradução de Mariangela Guimarães, Rio de Janeiro, Estação Londres: 2015, p. 174

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Minhas melhores leituras em 2015

30 12 2015

 

 

153.1LLeitora, por Jule Monti, cópia de Harrison Fisher.

 

Este foi um ano de muitos altos e baixos nas minhas leituras. Nos primeiros seis meses do ano, gostei muito pouco do que li. Depois veio uma onda de bons livros.  O final foi positivo mais até do que em outros anos.

Aqui vai a minha listinha, do que recomendo lido neste ano. Tenho um gosto bem eclético para assuntos, mas gosto de uma boa história, bem contada.

 

Os melhores:

 

Nora Webster de Colm Tóibín

Tirza de Arnon Grunberg

Stoner de John Williams

Na praia de Ian McEwan

Norwegian Wood, de Haruki Murakami

Meio sol amarelo de Chimamanda Ngozi Adichie

O sentido de um fim de Julian Barnes

Nadando de volta para casa de Deborah Levy

A linha da beleza, Allan Hollinghurst

 

Menção Honrosa para:

 

Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie

Toda luz que não podemos ver de Anthony Doerr

O leitor do trem das 6h27 de Jean-Paul Didierlaurent

Estação Atocha de Ben Lerner

O corpo humano, de Paolo Giordano

 

 





Resenha: “Tirza” de Arnon Grunberg

1 10 2015

 

Leonid Afremov, The Gateway to Amsterdam, 2000s, oil on canvas, [no dimensions], Private CollectionPorta de entrada para Amsterdã, 2000

Leonid Afremov (Bielorússia/Israel, 1955)

óleo sobre tela

Coleção Particular

 

 

Há muito tempo não leio um autor que demonstra tamanho domínio de seu texto como Arnon Grunberg. Ele brinca com o leitor sem que este o perceba. Ele nos envolve, nos seduz, nos puxa pela mão, mostra o que quer, esconde o que não precisa ser contado. Brinca. Cria. Joga xadrez conosco. Não percebemos a manipulação. Muito pelo contrário, queremos mais. Queremos mais de tudo, e as páginas são lidas com sofreguidão. O que as embala é uma sensação de que algo está para acontecer, algo será revelado a qualquer momento. A tensão é semelhante a de um filme de Alfred Hitchcock. Não se trata de uma história de uma centena de páginas. São 464 páginas em que o autor constrói aos poucos, deliberadamente, detalhes das personalidades envolvidas na narrativa, fazendo-nos íntimos dos membros da família Hofmeester. Ficamos familiarizados principalmente com Jörgen Hofmeester, pai de duas meninas, marido de uma artista plástica que entra e sai de sua vida à vontade, editor de ficção estrangeira de uma casa editorial em Amsterdã, homem em idade próxima à da aposentadoria, que mora num bairro da cidade de fazer inveja aos amigos, que possui uma casa de veraneio, que junta economias e as investe na Suíça, um homem, que tenta, porque tenta, sem colocar quaisquer barreiras, fazer aquilo que é certo e esperado dele. E, no entanto, há uma tensão imensa dentro desse pai de família. Tudo nele é quase obsessivo, mas sob controle. A perfeição é sua meta quer na cozinha, onde aprende a cozinhar quando sua mulher o deixa para “se encontrar”, quer no controle financeiro de sua vida, com a intenção de deixar um patrimônio sólido para as filhas.

 

TIRZA

 

Tirza é o nome da filha caçula de Jörgen Hofmeester, sua filha preferida, aquela que completa 18 anos e está pronta para entrar na universidade. Para comemorar essa passagem decide viajar pela África, e uma festa colocará o ponto final na vida anterior e marcará o início de sua nova aventura. Seu pai prepara a festa com cuidado, fazendo, ele mesmo, os quitutes, arranjando as bebidas. Durante esses preparativos aprendemos sobre a família. Sobre a mãe, as meninas, Ibi, a irmã que já não mora na Holanda e, sobretudo, conhecemos Jörgen. Apesar de um tanto fora da norma, nossa identificação com ele é inevitável. Conhecemos seus desejos, seus desapontamentos. Sua absoluta solidão. Há humor nessa narrativa, muito humor, porque entendemos sua visão do absurdo. Ocasionalmente a vida parece caótica e surreal, mas o humor vem mesmo das situações cotidianas, daquelas pequenas decisões que não dão certo, das expectativas frustradas,de sua inépcia social.

 

 

Arnon+Grunberg+©+RingelGoslinga+2013+-+RV+smallArnon Grunberg

 

Mas, há sempre a sensação de algo oculto. Há uma expectativa subjacente. Uma perturbação que nos deixa alerta. Há a sensação de que algo já aconteceu, mas não sabemos o que, há um ponto cego: incesto? Violência no casamento? O que? É como se tivéssemos sido as rãs numa panela com a água quente e não percebemos que a água ferveu. Esse mistério, essa dúvida só se esclarece nas últimas páginas. E é surpreendente. Um final estarrecedor. Imprevisível. Vale todas as horas dedicadas à leitura.

Este está, para mim, entre os melhores livros lidos neste ano e tem tudo para estar entre os meus favoritos de todos os tempos. É impossível discuti-lo sem revelar mais do que deveria. Mas recomendo sem constrangimento sua leitura para todos os leitores.