Tua pulseira, poesia de Adherbal de Carvalho

24 09 2025
Tua pulseira

 

Adherbal de Carvalho

(1869-1915)

 

(A uma moça que me põe uma pulseira no braço)

 

Tenho beijado esta pulseira olente,

Cheia de amor e cheia de magia!

Aperto-a ao coração constantemente,

Como um sinal da tua simpatia!

 

Os elos, que se prendem nos meus braços,

Creio que têm um pouco de tua alma;

Alma subtil, voando nos espaços,

Alma de amor, que o meu delírio acalma!

 

Constantemente, eu a tateio a medo

E com caricia levo-a ao meu ouvido,

Afim de ver se encerra algum segredo

Que o teu amor acaso haja escondido!

 

E, no entanto, é tão fria, tão pacata,

Como o metal argênteo de que é feita!

Não há nada tão frio como a prata,

Ou como este aro que o meu braço enfeita.

 

Apesar d’isso, sei-a amar, querida,

E quero-a tanto como a ti desejo;

Pois vejo n’ela a minha e a tua vida,

O nosso amor entrelaçando um beijo!

 

Em: Efêmeras, Adherbal de Carvalho, 1894.





Os livros finalistas do Booker de 2025!

23 09 2025

 

 

De todos os prêmios nacionais e internacionais, o de que mais gosto, ou melhor, aquele com que tenho melhor afinidade, ano após ano, é o Booker.  Os juízes são diferentes a cada ano, mas os finalistas têm sempre sido um grupo de livros que leio com prazer, mesmo quando o vencedor do prêmio não me satisfaz tanto quanto esperado.  Sempre encontro entre os finalistas algo que me fascina.  Por isso presto atenção a esse prêmio mais do que a qualquer outro. 

 

Andrew Miller entrou com The Land in Winter, que ainda não está traduzido para o português.  Mas há traduções de seus outros livros: Casanova, Puro e O insensível.  É tentador conhecê-lo de imediato. 

Susan Choi, americana, que é autora diversos livros, não tem nenhum deles traduzido para o português.  Flashlight é a obra com que foi selecionada.

David Szalay, inglês, é outro com grande produção, diversos livros publicados mas nenhum em português. Ele conseguiu estar entre os finalistas com Flesh.

Kiran Desai, indiana, é autora bem conhecida.  Encontrei dois títulos dela em português: O legado da perda (Com o qual ganhou o prêmio Booker, em 2006) e Rebuliço no pomar das goiabeiras, que parece estar esgotado. Sua obra escolhida foi The Loneliness of Sonia and Sunny

Ben (Benjamin) Markovits, americano, é um conhecido escritor, também sem obras no traduzidas aqui no Brasil. The Rest of Our Lives foi o livro selecionado para finalista. 

Katie Kitamura, americana, é conhecida entre os brasileiros pelo Uma separação. No entanto, o título selecionado para finalista do prêmio é Audition.

Logo, logo alguns desses aparecerão nas livrarias daqui.  Mas. se puderem, podem também ler qualquer um desses em inglês, aproveitando para treinar a língua. 





As amizades comuns, Michel de Montaigne

18 09 2025

Apollinaire e seus amigos, 1909

Marie Laurencin (França, 1883-1956)

óleo sobre  tela

Centre Pompidou, Paris

 

As Amizades Comuns

 

O que habitualmente chamamos amigos e amizades não são senão conhecimentos e familiaridades contraídos quer por alguma circunstância fortuita quer por um qualquer interesse, por meio dos quais as nossas almas se mantêm em contacto. Na amizade de que falo, as almas mesclam-se e fundem-se uma na noutra em união tão absoluta que elas apagam a sutura que as juntou, de sorte a não mais a encontrarem. Se me intimam a dizer porque o amava, sinto que só o posso exprimir respondendo: «Porque era ele; porque era eu».

(…) Não me venham meter ao mesmo nível essas outras amizades comuns! Conheço-as tão bem como qualquer outro, e até algumas das mais perfeitas do gênero, mas não aconselho ninguém a confundir as suas regras: laboraria num erro. Em tais amizades deve-se andar de rédeas na mão, com prudência e cautela – o nó não está atado de maneira que, acerca dele, não se tenha de nutrir alguma desconfiança. «Amai o vosso amigo», dizia Quílon, «como se algum dia tiverdes que o odiar; odiai-o como se tiverdes que o amar.» Este preceito, tão abominável se aplicada à soberana e superna amizade, é salutar a respeito das amizades comuns e habituais, em relação às quais se deve empregar este dito tão ao gosto de Aristóteles: «Ó amigos meus, não há nenhum amigo!»

 

Michel de Montaigne,  em Ensaios





Offenbach, texto de Guillermo Cabrera Infante

18 09 2025

O gato

Sonya Grassmann  (Bulgária-Brasil, 1933-1997)

[Anne Marie Elisabeth Graesse]

acrílica sobre madeira, 30 cm x 32 cm

 

 

A curiosidade de Offenbach não tem limites animais: basta que alguém de nós pare diante das janelas que dão para rua, para ver Offenbach, atrás e abaixo, tentando olhar o que olhamos, por todos os meios, chegando a miar para que o carreguem ou suba ao televisor e, espichando o pescoço, olhar também o que olhamos.

Um dia chegou em casa a bela G. Ch., numa visita breve, e Offenbach, talvez reconhecendo-a, caprichou seu caminhar à Dietrich para atravessar a sala em direção ao estúdio e para inspirar a simpatia eterna à visita: a mesma coisa acontece com qualquer visitante receptivo aos gatos.

. . . . . . . . . . . . 

Ver Offenbach comer ou tomar água é outro deleite: não pode haver maior finura em atos tão animais. Sua língua sobe e desce na água com uma regularidade metronômica, e, ao comer, morde gentilmente a carne e a engole pouco a pouco, à medida que é mastigada por seus débeis dentes. 

Offenbach é um espetáculo de ver até dormindo, sobretudo dormindo. Nos dias de sol ele se regala com a luz e o calor, estirando uma pata à frente enquanto coloca sobre ela a cabeça à maneira de almofada.  Nos dias frios se recolhe como  uma galinha chocando, perto de um dos radiadores, convertendo-se numa verdadeira bola de pelos, apenas a cabeça saindo de dentro do abrigo natural. Outras vezes usa como travesseiro os objetos mais diferentes: o cabo do telefone, a perna de um radiador, o próprio chão, enquanto seu corpo descansa num coxim. Outras vezes… mas basta. 

 

Em: Offenbach, conto de Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), em Os melhores contos de cães e gatos, org. Flávio Moreira da Costa, Rio de Janeiro, Ediouro: 2007





Na boca do povo: escolha de provérbios populares

17 09 2025
Ilustração, Martta Wendelin (Finlândia, 1901-1986)

 

 

“A vingança é doce, mas os frutos são amargos.”




Carta-soneto, poesia de Célia de Cássia

15 09 2025
Cartão postal,  anos 20, séc. XX.

 

 

Carta-soneto

 

Célia de Cássia

 

“Escrevo-te pra dizer-te”, meu amor,

que minhas já não são as tuas cartas.

De folheá-las — velhas, já sem cor —

as minhas mãos nunca ficaram fartas!

 

As tuas cartas!  Doces e amargas…

Luar iluminando com fulgor

a minha escura estrada! Portas largas,

abrindo pra jardins plenos de flor!

 

Vão publicá-las. Dei-as de presente

(perdoa, amado, essas ideias loucas

que a meu viver já deram mil escolhos…)

 

Quero, dando-as a ler a toda gente,

que o amor que morreu em nossas bocas

possa ressuscitar em outros olhos…

 

Célia de Cássia (MG, 1909-?)





Trova das rosas

10 09 2025
Ilustração Jessie Willcox Smith.

Nesse exemplo se resume

um prêmio às almas bondosas:

fica sempre algum perfume

nas mãos que oferecem rosas!

 

(Aparício Fernandes) 





Uma orquestra na fazenda, texto de Luiz Antonio de Assis Brasil

1 09 2025

Orquestra

Mariinha Santos (Brasil, ativa nas décadas de 1970-80)

aquarela, 48 x 68 cm

 

 

O Major convidara os estancieiros mais próximos, e assim a capela encheu-se de cadeiras, e foi preciso que as crianças ficassem pelo chão, junto com os cachorros. O Maestro ostentava a casaca nova, e, ao entrar pelo corredor central, com as músicas debaixo do braço, caminhando para sua orquestra como para oficiar uma missa, todos se compenetraram: jamais haviam visto algo semelhante. Os notáveis que, de fato, ainda abominavam o Maestro, agora intrigavam-se com aquela dignidade. – “Ele deu vida a esta capela” – disse o Major ao Vigário, que concordou com um movimento de cabeça e pôs o indicador frente aos lábios: o Maestro, já de costas para os convidados, esperava que cessassem as tossidelas e os murmúrios; depois, ergueu as mãos num gesto elegante e decidido, e os instrumentistas perfilaram-se nas pontas das cadeiras. Ficou assim, imóvel, por um momento; depois, muito lentamente, acariciando o ar, baixou os braços – e as rabecas deram início a um andante cantabile mal audível, lascivo, complicado por appogiaturas que se enredavam nas notas. Na plateia, ninguém se animava a um só movimento. A melodia cresceu, ganhou inesperada rapidez, e logo um festivo allegro retumbava pela capela, num estrépito de tambores e cornetas. O Maestro luzia de suor, transfigurando-se pelo fogo de seus movimentos, que varriam o espaço acima das cabeças; seu colarinho saía para fora da gola, e surgiram os punhos da camisa. E a música foi-se desdobrando em ondas, ganhando matizes delicados, para logo ressurgir com mais força, avançando ao limite do suportável. Em poucos minutos atingiu um paroxismo sonoro que fazia vibrarem os vidros das janelas. Quando os ouvintes já se entreolhavam em desespero, tudo acabou num triunfante e ensurdecedor acorde de toda a orquestra. No silêncio imediato, seguiu-se o grito do Major: – “A la fresca!”. A audição continuou, agora com obras ligeiras, onde se percebia sua anterior destinação à banda. Aí sim, os ouvintes sentiram-se mais à vontade, e os homens autorizavam-se a marcar os compassos, batendo com os pés na laje do piso. O Maestro pretendeu agradar os brios gaúchos e atacou o hino da República Rio-Grandense, o que fez com que os convidados, ao comando do Major, se levantassem para ouvir a música do Mendanha.

 

Em: Concerto Campestre, Luiz Antonio de Assis Brasil, L&PM: 1997, Porto Alegre





Resenha: A voz do tempo, Lenah Oswaldo Cruz

31 08 2025

Pensativa, 1883

Władysław Czachórski (Polônia, 1850-1911)

óleo sobre tela, 90 x 60 cm

Museu Nacional, Varsóvia

 

 

Pensativa foi minha reação à leitura de A voz de tempo, de Lenah Oswaldo Cruz. Por coincidência, horas depois, quando ainda estava sob o impacto da leitura, recebi de uma amiga, a conhecida frase de Luís Fernando Veríssimo: A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.  Esse seria um resumo parcial das contorções emocionais dos quatro personagens envolvidos nessa biografia familiar: Luiz, Dora, Victor e Lenah.  Com ajuda da autora, navegamos pelos mares tempestuosos das paixões, dos amores e desejos de seus pais, e testemunhamos as consequências, o legado deixado aos filhos pelo comportamento destemperado dos progenitores.  

Luiz era um homem de família muito pobre que encontrou na igreja um meio de se educar e trazer alívio às vicissitudes da pobreza em que ele e seus pais viviam. Inteligente, brilhante mesmo, com conhecimento acima de todos à sua volta, que a bela educação no seminário beneditino lhe proporcionou, Luiz não se tornou padre sem dúvidas sobre essa escolha. No entanto, não viu outro caminho aberto que pudesse preencher suas necessidades.  Fervoroso, dedicado, segue pelo magistério até encontrar a belíssima aluna, que chega atrasada para sua primeira aula. Dora era de uma beleza estonteante.  Mas mais que isso, era inteligente, interessada, devoradora de livros, capaz de sustentar um argumento intelectual melhor do que muitos homens de seu tempo. De espírito intrépido, desafiador, fazia o que queria sem as entravas sociais que a maioria respeitava.  Vinha de uma família abastada, da alta sociedade. Duas pessoas fisicamente atraentes, que se encontram no respeito e na admiração pelo intelecto do outro. O incêndio amoroso é quase instantâneo.   Mas ele é padre. Para ambos essa é uma paixão impossível, o que torna o relacionamento ainda mais intenso.

Victor e Lenah são as crianças dessa loucura.  Luiz eventualmente deixa a batina, mas a vida não é fácil e Dora, a bela e rebelde mulher que conquista quem ela quiser, acaba desinteressada. Eventualmente, há outro homem no caminho.  Um americano, também casado, também inteligente, belo e rico.  Mas, essa paixão tem um preço para Dora: ela terá que não trazer seus filhos para o convívio diário do novo casal, depois que ambos, conseguindo o divórcio, se estabelecerem em novo casamento.  Mas que divórcio?  No Brasil da época não há divórcio. Há o desquite. E há um preconceito enorme contra os desquitados (principalmente a mulher nessa situação indefinida de status civil) e também contra as crianças frutos do relacionamento do casal que se separa.  Pais não querem seus filhos em companhia dessas crianças, nem nenhum contato com seus progenitores. Esse é apenas um dos grandes empecilhos encontrados por essas quatro almas protagonistas dessa biografia de família. E volto à frase de Luís Fernando Veríssimo: A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.  

As crianças não só são deixadas de lado por Dora que verá os filhos nos anos vindouros sem frequência regular; mas Luiz também os abandona, porque olhar para a menina, que é a imagem da mãe, dói muito.  Esse pai, ex-padre, passa a vida sem olhar para sua filha, olho no olho.  Suas interações são sempre sem que ele a olhe no rosto.  Luiz também se casa, com uma viúva, que traz para o casamento uma filha do relacionamento anterior, que ele trata muito melhor que a própria filha. Victor e Lenah são colocadas em colégios internos no Rio de Janeiro: ele no Anglo-Americano, na praia de Botafogo, enquanto Lenah vai para o Bennett, no Flamengo.

Lenah Oswaldo Cruz

Não pretendo dar a história completa da família biografada. Mas não posso deixar mencionar alguns pontos que me fizeram pensativa.  É impressionante que em duzentas páginas se consiga identificar tantos sentimentos nesse imbróglio familiar.  Sair dessa leitura sem meditar sobre o que move nossas almas: amor, ódio, paixão, reconciliação, traição, abandono, perdão, preconceito, coragem e tantos outros sentimentos primordiais, não teria sido uma leitura completa, digna do texto publicado. Somos também forçados a considerar o progresso que tivemos nas normas sociais do país.  Não teria sido tão rica narrativa sem as memórias escritas de Luiz, lembranças de familiares, e experiência vivida por Victor e Lenah. 

Essa é uma leitura impactante, que não nos deixa tempo para respirar. Viciante.  Recomendo a todos.  O livro está em sua segunda edição. Agora na Amazon em papel e eletrônico.  Essa foi a segunda vez que li A voz do tempo. A primeira, foi no lançamento de 2017.  Meu grupo de leitura Ao Pé da Letra, contudo, escolheu essa nova edição para leitura de agosto, já que a recente publicação (2025) está recebendo bastante atenção. Para nossa alegria tivemos a oportunidade de um encontro com a autora, após a leitura. Foi delicioso.   Recomendo. Além da biografia há um esquete bastante repleto de surpresas da vida no Rio de Janeiro nas décadas de 30 a 50. 





Aquarela, poesia de Francisca Júlia

28 08 2025

Grace Rose, 1866

Frederick Sandys (Inglaterra, 1829-1904)

óleo sobre madeira, 28 x 24 cm

Yale Center for British Art, EUA

 

Aquarela

 

Francisca Júlia

 

Cheio de folhas, úmido de orvalho.

Fresco, à beira de um córrego crescia

Jovem pé de roseira em cujo galho

Uma rosa sorria.

 

O orvalho matinal que o beija e molha,

Desce de cima em brancas névoas finas.

E todo pé salpica, folha a folha,

De gotas pequeninas.

 

Beija-o o perfumeo Zéfiro, que passa,

O grupo de falenas que anda à toa,

A borboleta clara que esvoaça,

E o pássaro que voa.

 

Uma moça gentil sentiu anseio

De possuir a rosa e teve mágoa

De não poder colhê-la, com receio

De molhar os pés na água.

 

A roseira agitou a coma e opima,

Estremeceu, embriagada e douda,

Sob os raios do sol que lá de cima

A iluminavam toda.

 

A moça foi-se; o ar estava morno;

Mansamente o crepúsculo descia;

Uma abelha zumbiu36 da rosa em torno;          

Lento, expirava o dia…

 

Porém nessa hora a ventania brava

Que veio do alto impetuosamente,

Arranca a flor do ramo em que se achava          

E joga-a na corrente.

 

E a flor caiu no meio do riacho;

Do vento rijo foi sofrendo o açoite,

E escorregando em prantos, água abaixo,

Na tristeza da noite.

 

Nenhuma flor pode salvar-lhe a vida;

Na água desceram, entretanto, algumas;

E a flor morreu aos poucos, envolvida          

Num círculo de espumas.

 

Em: Livro da Infância, Francisca Júlia da Silva, 1899, em domínio público