Cadê? Chico Bento procura… ilustração Mauricio de Sousa.
Nos meus tempos de menino
tinha na palma da mão
a fieira do destino
nas voltas do meu pião!
(Antonio Claret Marques)
Nos meus tempos de menino
tinha na palma da mão
a fieira do destino
nas voltas do meu pião!
(Antonio Claret Marques)
Pierre de Nolhac, retratado por seu filho, 1909
Henri de Nolhac (França, 1884-1948)
óleo sobre tela
É o que se dá com todos os grandes escritores: a beleza de suas frases é imprevisível, como a de uma mulher que ainda não conhecemos; é criação, porque se aplica a um objeto exterior em que eles pensam — e não a si — e que ainda não expressaram. Um autor de memórias de nossos dias que quisesse imitar disfarçadamente a Saint-Simon poderia em rigor escrever a primeira linha do retrato de Villars: “Era um homem corpulento, moreno… de fisionomia viva, franca, impressiva”, mas que determinismo lhe poderá fazer encontrar a segunda linha que começa por: “E na verdade um tanto aloucado”? A verdadeira variedade está nessa plenitude de elementos reais e imprevistos, no ramo carregado de flores azuis surgindo, contra toda expectativa, da sebe primaveril, que parecia incapaz de suportar mais flores; ao passo que a imitação puramente formal da variedade (e o mesmo se poderia argumentar quanto às outras qualidades do estilo) não passa de vazio e uniformidade, isto é, o contrário da variedade, e se com isso conseguem os imitadores provocar a ilusão e a lembrança da verdadeira variedade é tão somente para as pessoas que não a souberam compreender nas obras-primas.
Em: À sombra das raparigas em flor, Marcel Proust, tradução de Mário Quintana
Jardim florido
Elizabeth Peña (Peru, contemporânea)
óleo sobre tela, 76 x 76 cm
“Era uma dessas manhãs ensolaradas da primavera limenha, em que os gerânios amanhecem mais arrebatados, as rosas mais perfumadas e as primaveras mais crespas, quando um famoso galeno da cidade, o doutor Alberto de Quinteros — testa ampla, nariz aquilino, olhar penetrante, retidão e bondade no espírito —, abriu os olhos e espreguiçou-se em sua espaçosa residência de San Isidro. Viu, através das cortinas transparentes, o sol dourando o gramado do bem-cuidado jardim cercado por canteiros de crótons, a limpeza do céu, a alegria das flores, e teve essa sensação de bem-estar proporcionada por oito horas de sono reparador e uma consciência tranquila.“
Mario Vargas Llosa, Tia Julia e o escrevinhador
Quando criança eu queria
crescer dez anos num mês
e, agora, o que não daria
pra ser criança outra vez!…
(Elton Carvalho)
Casario
Antonio Ferrigno (Itália-Brasil, 1863 – 1940)
óleo sobre madeira. 35 x 27 cm
Adélia Prado
Ao entardecer no mato, a casa entre
bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo,
aparece dourada. Dentro dela, agachados,
na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo,
rápidos como se fossem ao Êxodo, comem
feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,
muitas vezes abóbora.
Depois, café na canequinha e pito.
O que um homem precisa pra falar,
entre enxada e sono: Louvado seja Deus!
Passeio no parque, c. 1950
Anthony Hedges (Inglaterra, ? -2016)
óleo sobre tela, 30 x 41 cm
“Era a típica paisagem universitária durante o intervalo do almoço. E, no entanto, ao observar aquela cena familiar, dei-me conta de uma coisa. Todas as pessoas, cada uma à sua maneira, pareciam felizes. Não saberia dizer se estavam realmente felizes da vida ou se não passava de uma encenação. Em todo o caso, naquele agradável início de tarde em finais de setembro, toda a gente parecia satisfeita, e isso fez com que me sentisse ainda mais solitário. Como se fosse eu o único a destoar na paisagem.”
Haruki Murakami, Norwegian Wood
Muita gente me pergunta a razão de eu não postar mais dos meus próprios poemas ou ler no Instagram, onde leio uma poesia por dia (@escritora.ladycewest). Sou uma escritora vagarosa nas poesias. Não que eu seja particularmente preciosista, ou não admita mudanças, mas não sou de chegar ao computador e colocar um poema por dia. Mesmo os pequeninos levam algum tempo. Talvez seja a inexperiência.
Mas há outro impasse: quando sou chamada para participar de uma antologia, quando me pedem uma contribuição; quando acho que um escrito merece entrar num concurso, todos os organizadores pedem que o trabalho seja inédito. Inédito infelizmente quer dizer que não tenha aparecido em qualquer mídia antes. E a maioria considera a publicação em blog, principalmente um blog como este que tem visibilidade, muitos visitantes. Logo, logo, uma pesquisa na internet e poema, conto, crônica com o meu nome aparece,(também meu nome é fácil de achar), então é considerada obra já publicada, eliminando a possibilidade de colocá-la em outros canais. Este ano já participei de 2 antologias e ano passado de outras duas com contos e poesias.
Mas devo lançar meu próximo livro de poemas em 2026. Então, aos poucos irei colocando um ou outro poema por aqui. Aí a explicação. Boa noite.
Casal comendo próximo à janela,1655
Frans van Mieris, o Velho (Holanda, 1635-1681)
óleo sobre madeira, 36 x 31 cm
UFFIZI, Florença
Ladyce West
Contrariando a física
o tempo parou,
sugado por falha geológica
no descontínuo rolar das horas.
Lacuna espelhada na rua deserta
no som suspenso dos carros parados
no intervalo forçado de planos, projetos
breque em desejos, ambições e caprichos.
O inimigo invisível por todo lado.
Sombra ou sol, chuva ou névoa,
no ar respirado na cidade, ele impera.
Parou o mundo. Em casa
à janela, abraçados, teimamos
na extravagância do viver.
(Junho, 2020)
Jovem bebendo, c. 1580
Annibale Carracci (Itália, 1560-1609)
Universidade de Oxford, Inglaterra
[Essa obra foi roubada no dia 14 de março de 2020, não se conhece o paradeiro dela]
“… e ele bebe lentamente, saboreando, e esquadrinha a parede com um olhar tranquilo, em busca desta ou daquela sequência do seu passado. No ângulo formado pelas paredes e o teto, o pessoal da limpeza não tinha reparado em uma teia de aranha minúscula, perceptível apenas para um olho atento. Um restinho de gaze acinzentada sem a inquilina que a teceu. E nela ficou presa a lembrança do beijo de Arantxa. Que idade eu tinha? Vinte, 21 anos. E ela? Dois a menos. São coisas corriqueiras que acontecem nas festas do interior. O pessoal dança, bebe, sua, todo mundo se conhece; se você é jovem e surge na sua frente um par de seios, você os pega; se uns lábios chegam mais perto, você os beija. Ninharias, migalhas que o esquecimento devora, o que não impede que, de repente, olhando a teia de aranha, a memória de Xabier as resgate. É antes do serviço militar e ele estuda medicina em Pamplona. Tem fama de sem sal, de formal, de fechado em si mesmo; enfim, do que ele é realmente, um homem sério de verdade, sendo bem objetivo. Amigos? A velha turma de sempre, antes que os sucessivos casamentos a desagregassem. Não é bebedor nem fumante nem glutão nem esportista nem andarilho; mas, apesar de tudo isso, todos o apreciam porque faz parte da paisagem humana do lugar, frequentou o colégio com os outros, é o Xabier, tão da vila quanto o balcão da prefeitura ou as tílias da praça. Dá a impressão de que o futuro está à sua espera de braços abertos. É alto e boa-pinta, mas, ainda assim, nunca tem uma paquera. Sensato demais, tímido demais? Segundo seus conhecidos, deve ser algo assim. Toma um gole de conhaque sem tirar os olhos da teiazinha de aranha. Mas por que sorriu? É que achou engraçado lembrar esse episódio. Em uma lateral da praça arde a fogueira de são João. As ruas estão apinhadas de gente. Crianças correm, brilham caras felizes, línguas lambem sorvetes, vizinhos desinibidos conversam aos gritos de uma calçada para a outra. Calor.”
Em: Pátria, Fernando Aramburu, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, 2016