Frente à Prefeitura de Raleigh, NC, onde nos casamos no civil. Foto de Polaroid.
Há três anos ele se foi. E até hoje não gosto de tomar café da manhã sozinha, em casa. Todos os dias, para surpresa de amigos, saio, vou à padaria, muitas vezes depois de andar na praia, e tomo meu café da manhã. Um de nossos ajustes iniciais, na vida em comum, foi justamente o ritual matutino: sou a que acorda com a cabeça pronta para conversar, enquanto ele, silencioso, não queria papear. Nem tinha cabeça para isso. Mesmo assim, a primeira refeição do dia era nossa. Só nossa. Depois, preparados para o dia, por volta das seis e meia da manhã, sentávamos para ler o jornal, comentar acontecimentos, trocar ideias sobre o trabalho. Um pouco antes das oito, esse primeiro afago, essa mostra da camaradagem, da troca de pontos de vista, da leitura em voz alta de uma notícia que achávamos interessante, dividindo um com o outro a observação sobre o mundo lá fora, esse ritual de cumplicidade chegava ao fim pelas demandas do dia.
Todas as manhãs, observávamos os pássaros no comedouro dependurado na árvore dogwood, mais próxima da bay-window que se abria para a mesa onde estávamos. Era um canto do jardim protegido por cerca de madeira, com pátio de tijolos vermelhos, que mesmo no inverno, quando as temperaturas baixavam em todo o resto do terreno, e até mesmo quando nevava, ali, graças ao calor retido pelos tijolos, graças à cerca de privacidade, só nesse cantinho do jardim que protegia o pátio dos ventos gélidos, algumas plantas com ar mais tropical haviam sido plantadas, seguindo o plano do paisagista que eu contratara para que houvesse alguma lembrança de um jardim tropical nesse grande terreno que nos cercava.
Os cafés da manhã ficaram como um ritual nosso. Mesmo nos diversos países onde moramos, mesmo quando, depois de aposentado, Harry insistiu em virmos para o Rio de Janeiro, que ele amava.
Washington, NC. no rio Pamlico.
O luto é um processo muito estranho. É claro que já passei por lutos diversos: irmão, pai, mãe, tios, amigos. Ele nos faz dar muitas voltas nas nossas memórias e as décadas de vida compartilhada parecem sair de uma pasta zipada, e a gente não sabe mais o que aconteceu exatamente quando.
Ainda estou passando minha vida em revista. Dizem os psicólogos, os experts em luto, que será assim por muito tempo. Aos poucos essas revisões se atenuam. É como fazer análise. Que fiz há muitos anos, não agora. O número de vezes, as horas que passei revendo a adolescência, as primeiras amizades, paixonites, primeiro namorado sério e aquele casamento, e, depois, na minha vida com Harry dariam uma série de streaming de algumas centenas de capítulos. E essas memórias, esses eventos, acontecimentos, questionamentos, não vêm em ordem. Hoje de manhã. me lembro da pandemia, de tarde da colega de turma na escola, que se suicidou, à noite me lembro de meu enteado no hospital com indigestão, logo em seguida, volto ao primeiro casamento, quando morávamos em São Paulo, como é que aquilo aconteceu mesmo? É movimento circular, que ajuda, não sei como, mas ajuda, nessa redefinição de uma nova era, de uma nova eu.
Mas a falta, a falta que Harry me faz, é constante. É uma presença invisível, que me acompanha e com quem ocasionalmente troco um olhar de cumplicidade na minha mente, porque não há como não o fazer. É impressionante o que a memória guarda e as inúmeras perguntas que se faz nessa redefinição de quem somos, por que somos assim? O que é que queremos ainda ser, fazer, ouvir, ler, aprender? Não é necessariamente penoso esse caminho, pelo menos não tem sido. Mas é uma busca que aparece do nada, no meio do dia, no meio de um filme, quando faço chá à tardinha, que aparece um pouco antes de dormir, e me deixa acordada a noite toda. E como eu daria, como dizem os americanos, an arm and a leg para poder voltar no tempo, de maneira Proustiana, procurar nos detalhes das minhas memórias, meu tempo perdido. Não quero trocar nada do passado, mas gostaria observar as cenas, como se pudesse ver em um filme, estreado por essa personagem que fui, com o conhecimento que tenho hoje.
Não sei ainda para onde caminho nessa peregrinação. Mas vejo algumas mudanças. Pequenos passos. Imagino conversas com minha mãe, que ficou viúva aos cinquenta e seis anos. Mas rapidamente me lembro que ela era muito fechada, não dividia experiências e tudo que expressava era através das tintas no papel, na madeira, na arte. Cada qual tem seu caminho no luto. É um processo individual. Essa redescoberta que faço, não acontece para todos. Esse tem sido o meu caminho. Só. É uma solidão no peito, um vazio imenso na alma. Mas a cada dia se transforma. A volta ao passado ajuda, não sei como ou porque, mas ajuda. Não tenho mágoas nessas lembranças. Foi o que foi. Todos que um dia fizeram parte da minha vida, do meu cenário, são lembrados, contribuíram para que eu chegasse aqui, sã e salva, inteira. I have no regrets.
Sfizef, Argélia.
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro.
©Ladyce West, 7 de abril de 2025, Rio de Janeiro










