Resenha de “O trem dos órfãos” de Christina Baker Kline

16 11 2014

 

Agostinho Batista,Trem(1978),29 x 44 cmTrem, 1978

Agostinho Batista de Freitas (Brasil, 1927-1997)

acrílica sobre tela, 29 x 44 cm

 

Daqui a dez anos, não vou me lembrar deste livro. O que ficará comigo da leitura de O trem dos órfãos? Fica o fato histórico, uma revelação mesmerizante, mesmo para quem está familiarizado com a história dos Estados Unidos: por mais de cinquenta anos houve um trem de órfãos. Mas é só. Só isso que ficará comigo. O resto não criou raízes, não me afetou. Na verdade me irritou muitas vezes quando me senti manipulada emocionalmente.

O título e a chamada na capa traseira da edição brasileira já preparam o leitor para um drama e direcionam a nossa opinião para uma injustiça social. “Entre 1854 e1929, os chamados ‘trens dos órfãos’ percorriam regularmente cidades da costa leste até fazendas do meio-oeste dos Estados Unidos, carregando milhares de crianças abandonadas cujo destino seria determinado simplesmente pela sorte”. Note-se que a sugestão de que nossas emoções serão testadas começa aí, quando faz-se a notificação de que o “destino[ das crianças] seria determinado simplesmente pela sorte”, ou seja que elas estariam abandonadas à sua sorte, por causa do trem que as levava.  Este é o alerta às nossas lágrimas e soluços, que vem da sugestão de que só o destino dessas crianças é determinado pela sorte, quando que sabemos muito bem que todo ser humano, assim como essas crianças, tem sua sorte determinada em grande parte por seu destino. Começamos, portanto, a leitura guiada, enviesada, para achar o ‘trem dos órfãos’ uma prática desumana e inaceitável.

 

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Há um grande problema com releituras de fatos históricos: a tendência de julgarmos o passado com os olhos de hoje. O que eram práticas comuns em Roma antiga, por exemplo, não conseguem ser aceitas hoje: escravidão, estupro dos vencedores sobre as mulheres dos vencidos na guerra, relações licenciosas entre meninos e homens maduros. Não se aceita, no presente, que o dono de uma terra tenha o direito à primeira noite de núpcias da jovem com quem seu inquilino se casara, como podia acontecer em comunidades medievais. O comportamento humano é passível de mudança, mas qualquer historiador sabe que o ser humano é cruel com o seu semelhante. Mas sabemos também que as condições históricas de cada momento não conseguem ser pensadas com integridade, quando o leitor contemporâneo se encontra sentado no conforto de sua poltrona preferida, desfrutando de luxos como uma semana de 40 horas de trabalho, ar-condicionado para os dias de calor e um carro potente a levá-lo sem esforço a comprar os suprimentos necessários à sua vida. Sem maior conhecimento de história, não nos lembramos que esses luxos foram adquiridos só depois da segunda metade do século XX. E é aí que se encontra o ponto mais fraco do romance de Christina Baker Kline, a falta de contexto histórico que localize para o leitor as razões desse experimento social. Um bom romance com temática histórica implica uma revelação contextualizada. Nesse livro o contexto aparece superficialmente e com o viés moralista da atualidade. Não descobrimos claramente o porquê. Por que havia tantos órfãos ou crianças abandonadas nas ruas das grandes cidades americanas? Seria o mesmo fenômeno social apresentado nos livros de Charles Dickens, o escritor inglês que se distinguiu pela descrição dos moleques de rua, criminosos, na Londres vitoriana, como acontece em Oliver Twist? Não sabemos. A história centrada nos dois personagens que se opõe na idade mas que são semelhantes em sua exclusão social se apequena às experiências das duas protagonistas. O tema é muito maior… e se perde.

Um bom debate, caso esse livro chegue ao seu círculo de leituras, seria justamente descobrir que medidas tomar quando há um número extraordinário de órfãos, crianças abandonadas ou maltratadas. O ‘trem dos órfãos’ americano foi um experimento social que tinha como objetivo, proteger e melhorar as condições de vida dessas crianças. Pode não ter dado certo, ou pelo menos para alguns não deu certo, mas também foi capaz de dar casa e comida para muitos indigentes menores de idade cujo destino já se projetava nefasto, caso permanecessem onde estavam, abandonados nas ruas.

 

112421399995920G.jpgChristina Baker Kline

 

Quase todas as pessoas que encontrei gostaram da leitura de O trem dos órfãos, emocionadas com a trágica vida de Vivian Daly. Mas a trama é previsível e melodramática. Só faltava a orquestra de violinos em alguns momentos cinematográficos. Molly Ayer, uma menina quase adulta, que paga pela sua rebeldia com trabalhos sociais é um estereótipo, um personagem raso e improvável. A narrativa se apresenta com altos e baixos, aparecendo mais complexa só na descrição da nonagenária Vivian. Molly parece ter sido um personagem inserido posteriormente, como se uma obrigação – poderia ser a conselho do editor? — para contrabalançar a história de vida da velha senhora. Há momentos, principalmente a partir de meados do livro que a prosa parece ter sido escrita em um outro momento da autora e às pressas.

Tenho a impressão de que este foi um romance encomendado para o mercado jovem adulto. Muita emoção, muita reverberação fácil de questões de identidade, pouca preocupação com estilo. Não foi escrito com a intenção de permanecer na nossa imaginação dando frutos para experiências futuras. Não me surpreenderei ao ver essa história no cinema, onde garotas adolescentes encontrarão na sala escura, ambiente favorável ao debulhar de lágrimas tão necessárias para o equilíbrio das glândulas hormonais em desalinho. Dá saudades de grandes romancistas históricos contemporâneos como Philippa Gregory, Noah Gordon, Hilary Mantel entre outros escritores de ficção histórica.


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2 responses

17 11 2014
Janaina

Excelente resenha! Realmente, hoje em dia, é difícil levantar a cabeça em meio à multidão e observar a realidade com um olhar mais macro, mais objetivo e lúcido – somos tomados como reacionários desalmados. O sufocamento do politicamente correto está matando nossa capacidade analítico-crítica em nome de uma hipocrisia que não curará nossos problemas, apenas os mascarará e, possivelmente, criará novos rachas e ressuscitará outros.
O entendimento histórico e humano e a lucidez é que podem nos ajudar a tentar melhorar.
Muito boa a peregrinação de hoje por aqui.
abraço,
Janaina
http://www.mudagerminadadejardinsalheios.blogspot.com

17 11 2014
peregrinacultural

Obrigada Janaína.

Concordo com você que estamos com as mãos atadas e com mordaças através do politicamente correto. Obrigada pelo incentivo.

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