–
–
Relatividade, 1953
M. C. Escher (Holanda, 1898-1972)
Litografia
–
Inicialmente pensei que a imagem mais apropriada para ilustrar o livro Serena de Ian McEwan fosse uma das paisagens de Estaque do pintor francês e fundador do cubismo, Georges Braque, tal como Viaduto de Estaque ilustrado abaixo. Nesta tela vemos uma paisagem com algumas casas rodeadas de vegetação e um viaduto romano ao fundo. Nós compreendemos a cena, e ainda a vemos mais completa, porque somos instruídos — através da criativa maneira de pintar desenvolvida pelos cubistas, inspirados por Cézanne — sobre as demais facetas da paisagem que revela diversos elementos vistos por diferentes ângulos, que não estariam dentro das nossas possibilidades entrever. Com o uso de múltiplas perspectivas Georges Braque neste caso permite que conheçamos “o outro lado da lua”, ou seja: os dois lados de um telhado que nossa visão não permitiria perceber, ou a fachada de uma casa, que ele levanta ligeiramente, por cima das casas na frente, para que vejamos a série de janelas paralelas corridas. Essa visão compreensiva, giroscópica, do tema, dos objetos ou pessoas retratadas, explorada pelos cubistas constitui em grande parte a maneira narrativa de Ian McEwan.–
–
Viaduto de Estaque, 1908
Georges Braque (França, 1882-1963)
óleo sobre tela, 72 x 59 cm
Museu de Arte Moderna, Centro Pompidou, Paris
–
Mas à medida que o texto avançou e certamente depois que cheguei ao fim do romance, a visão cubista, ainda que interessante, não me satisfez. Porque é um texto que se renova, que se reencontra e que recomeça. É um labirinto com alguns becos, algumas passagens em múltiplos níveis, com algumas realidades paralelas, como se estivéssemos num jogo digital e uma vez ou outra achássemos a porta que nos leva direto até o próximo nível, sem termos que lutar com o dragão ou algum inimigo inesperado. Esta é uma história que vai e volta e se aprofunda em diversos níveis sem que saibamos por que estamos sendo levados por aquele caminho e de repente, parecemos voltar ao ponto inicial como em um rondó musical ou em uma fita de Möebius. E foi pensando nela que acabei selecionando uma das muitas gravuras de M. C. Escher para dar o tom visual do que acontece com o leitor de Serena. Escolhi a gravura Relatividade, uma litografia cuja primeira tiragem foi feita em 1953, porque esse artista holandês é quem, nas artes plásticas, de meu conhecimento, melhor exemplifica a minha experiência ao terminar esse texto.
–
É a habilidade narrativa de McEwan que permite que se chegue ao final da trama capaz de entender os diversos níveis em que ela se desenvolve. E ser surpreendido. Totalmente surpreendido. Este é um romance, um thriller, que aparenta tratar de espionagem na década de 60 do século passado. Espionagem envolvendo o fabuloso serviço inglês MI5 já bastante caracterizado na literatura, no cinema e em programas televisivos pela sua invencibilidade. Não há nenhum James Bond, mesmo em se tratando de Londres, cidade onde Serena, que acabou de terminar o curso superior numa excelente universidade inglesa, arranja seu primeiro emprego. A jovem é a nossa porta de entrada para esta aventura literária que insiste em parecer simples e direta. Até que, em certo momento, temos a sensação de que talvez não estejamos lendo coma atenção necessária. No meu caso foi lá pela página 140, quando parei e voltei ao início. Mas tive relatos de outros leitores, talvez mais sensíveis, mais perceptíveis, que o fizeram umas 50 páginas antes. De qualquer modo, o leitor sente que há algo no ar mas não sabe onde, nem o quê, nem o porquê. E assim se desenrola a narrativa.
–
Ian McEwan
–
Mais do que um thriller, Serena é um livro sobre ficção. Sobre diversos níveis de ficção. Sobre a ficção que encontramos no dia a dia, na fabricação de quem somos, no contar e recontar de nossos movimentos de nossas ações. Temos a ficção de espiões e a ficção de quem escreve ficção. Este é um romance baseado no ato de simular, na habilidade do fingimento. Ian McEwan explora aqui a tênua linha que define realidade. Este romance é uma ode à imaginação. À nossa habilidade, à capacidade humana de iludir e de aceitar ser iludida. A narrativa é um quebra-cabeça, um Cubo de Rubik com faces de espelhos, onde tudo se encaixa, a qualquer momento em qualquer hora, porque tudo, absolutamente tudo não passa de ficção. Uma narrativa brilhante.
Minha objeção está na personagem que achei o menos crível dos elementos. Mas como acreditar em um personagem que nos ajuda a construir o ficcional? Como julgar aquele que nos faz crer e que nos ajuda a descrer. Este é o impasse a que chegamos. E a mensagem é simples: não creia, não acredite. Tudo não passa de ficção. Nem mesmo eu, nem você que me lê, nem Serena.
Deixe um comentário