Outra opinião: Irene Popow, trecho extraído do livro Adeus, Stalin!

19 01 2012

O bolchevista, 1920
Boris Kustodiev (Rússia, 1878-1927)
Óleo sobre tela, 101 x 141 cm

Estou lendo as memórias de Irene Popow,  publicadas em 2011 pela Editora Objetiva, que levam o título  Adeus Stalin!.  Ainda não terminei a leitura — tenho o hábito de ler 4 a 5 livros ao mesmo tempo — mas ressalto aqui uma passagem interessantíssima, com o objetivo de contrabalançar a atual  discussão sobre o legado de Luís Carlos Prestes, cuja controvérsia sobre a doação de seus bens a família parece até fomentar para que o líder comunista não caia no esquecimento.  Resolvi citar essa passagem de Irene Popow por achá-la necessária para contextualizar, em perspectiva histórica, um período importante na nossa história.

“Tenho um sentimento misto de admiração e inveja cada vez que ouço ou leio que, durante o nazismo de Hitler, 6 milhões de judeus foram mortos.  Admiração porque os judeus conseguem manter viva a lembrança das atrocidades nazistas através de filmes, livros, artigos, palestras, exposições.  Não deixam ninguém esquecer.  Todos, na ponta da língua, sabem: 6 milhões de judeus morreram por ordem de Hitler.  Inveja porque os russos e os ucranianos não o fazem:  não divulgam que 30 milhões de conterrâneos morreram vítimas do comunismo de Stalin.  Raríssimas vezes se fala ou se escreve a respeito.

Dez milhões de ucranianos morreram durante a Segunda Guerra, e cerca de 2,3 milhões foram levados para campos de trabalho forçado na Alemanha (dois terços de todos os eslavos deportados). Com o fim do conflito, muitos não quiseram voltar para a União Soviética e emigraram para vários países.  Minha família veio para o Brasil, mas a maioria seguiu para o Canadá e os Estados Unidos.  O Ukranian Canadian Research & Documentation Center, com sede em Toronto, lamenta que, dos 300 mil imigrantes ucranianos, apenas dois gravaram depoimentos em vídeo sobre os campos de concentração de trabalhos forçados Ostarbeiterlager (Campo de Trabalhadores do Leste), na Polônia, e nenhum sobre o Holodomor.

No entanto, existem dezenas de milhares de relatos feitos por judeus sobre suas vivências nos campos de extermínio.  Jorge Mautner, que nasceu no Brasil, deu um intrigante título ao seu livro autobiográfico O Filho do Holocausto.

É ou não para ter admiração e inveja?

Ao mesmo tempo, fico irritada com a crescente glorificação de Olga Benário e Luís Carlos Prestes, que aumentou após o livro de Fernando Morais e o filme de Jayme Monjardim.  Ambos são muito bons.  Porém, uma obra com qualidade estética considerável sobre Hitler ou Stalin não justifica o enaltecimento desses líderes.
Olga, judia alemã e filiada ao Partido Comunista, revolta-se contra o nazismo e a perseguição ao seu povo, foge para a Rússia e abraça o comunismo de Stalin.  Mas ela ignora – o talvez apoie – a perseguição do dirigente soviético aos milhões de inimigos do povo.  Prestes, que mora em Moscou desde 1931, é treinado com Olga para liderar uma revolução armada no Brasil.

Não acredito que os dois estivessem alheios ao que acontecia na União Soviética.  Posteriormente, devido à Cortina de Ferro e ao isolamento absoluto, foi possível esconder a existência do muro de Berlim.  Entretanto, era quase inconcebível ignorar os milhões de mortos pelo Holodomor e pelos expurgos de Stalin, que era de conhecimento de toda a população soviética.  O mesmo comunismo que Olga e Prestes queriam implantar no Brasil. Eles então chegam ao Brasil em 1934, fiéis ao lema “Os fins justificam os meios”. A tentativa fracassa e os dois são presos.

Porém, nada justifica a decisão da ditadura de Getúlio Vargas de entregar Olga, grávida, à morte nos campos de Hitler.  Nada faz dela uma heroína tampouco.  A glorificação do casal é bem diferente da de Anne Frank, judia alemã também morta num campo nazista.  Seu diário foi traduzido para dezenas de línguas.  A casa em Amsterdã, onde se escondeu com os parentes durante a guerra e na qual registrou suas anotações, virou merecidamente um museu.”


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8 responses

19 01 2012
Leticia Alves

Ladyce,

Interessante trecho contextualizado, eu gostei do livro Olga e do filme também, mas eu nunca os endeusei, sempre me pegava pensando nessas questões mesmo levantadas aqui nesse trecho.
Anne Frank sim, foi um livro que me marcou e eu o li uma vez só até hoje quando tinha uns 15/16 anos, e por outras questões me levou a “endeusá-la”, e seu museu com certeza é merecido.

Letícia

19 01 2012
peregrinacultural

Olha, Letícia, a doação de documentos pela viúva e descendentes do Prestes ao Arquivo Nacional trouxe à imprensa carioca — certamente ao GLOBO cuja assinatura mantenho — uma onda de valorização dessa figura, que vira e mexe volta à primeira página dos jornais. O jornal O GLOBO, além de cobrir a doação da documentação ao Arquivo Nacional, caiu na armadilha da “briga de familia”, e voltou ao assunto, dias depois, com artigo na revista de domingo, com fotos da família inteira e da filha que não queria a doação, que não queria a publicação da foto de Prestes de calção na praia, etc… Eu digo que o jornal caiu na armadilha, porque acho que essa é uma maneira dos sobreviventes, dos herdeiros do Prestes, deles todos, “manterem viva a memória do homem” que temos que reavaliar se merece, de fato, o destaque que tem num certo círculo intelectual.

19 01 2012
Regina

Ladyce,
Tenho grandes desconfianças sobre os herois brasileiros. Nunca entendi o critério usado por nós para endeusar alguém. Luis Carlos Prestes, um deus batizado de o cavaleiro da esperança ( não sei em que era essa esperança) tido como vítima,de Getúlio Vargas, alguns anos depois alia-se ao caudilho que havia entre sua mulher Olga, à Gestapo. A sua coluna deixou rastro de morte feia pelo caminho, pelo menos uma delas cometida pelo próprio heroi,é vista hoje como patriótica inclusive por gente que nunca leu absolutamente nada sobre ela e ou sobre Prestes. Este é só um exemplo, de uma série de endeusamentos estapafúrdios, feitos por cabeças seguidoras e não pensadoras.

19 01 2012
peregrinacultural

Regina, “O cavaleiro da esperança” não explica de que esperança se trata. Certamente não era a esperança da minha familia. Filho de imigrante, papai jamais teria se colocado no lado de uma “esperança comunista”. Temos sempre que considerar de que lado está essa esperança. Meu avô e meus bisavós tinham a esperança no Brasil, nas oportunidades de uma nova vida que o país oferecia, no pequeno negócio, na liberdade empresarial, na liberdade de escolha. Quem emigrou, como meus avós e bisavós o fizeram, não via a esperança que Prestes promulgava no comunismo. Aquela geração fugiu de uma Europa totalitária, quer ela fosse comunista ou monárquica. E hoje, depois da queda da URSS e da falência do sistema comunista, só mesmo pelo interesse histórico sobre as idiossincrasias do passado é que podemos manter essas relíquias de um idealismo obsoleto, e o Arquivo Nacional é um lugar perfeito para isso. O que não combina é pessoas como nós, que já vivemos nos braços de uma ditadura, que venhamos a pensar com carinho em quem também advogava um regime totalitário. Liberdade de expressão e regimes totalitários de direita ou de esquerda não se dão bem, veja o exemplo de Cuba… ou do Irã… São posições completamente obsoletas e me admira que tanta promoção ainda seja feita sobre esses movimentos. Vergonha… Faltam cabeças pensantes… Concordo com você, há muitos seguidores, poucos líderes.

20 01 2012
Nanci Sampaio

Prezadas Ladyce e Regina:

Além de agradecer os comentários de vocês, aproveito esse canal para também manifestar meu repúdio aos governos totalitários, aos medíocres. Fora Stalin, Hitler, Chavez, Busch. Fora Lula! Ao ler esse trecho de livro de Irene Popow e seus comentários sobre nossos pseudo-heróis, me lembrei de um antigo professor meu: “vocês, nascidos em 1964, são filhos da ignorância”. De fato, há muitos aspectos obscuros e outros tantos, sobre os quais não me sinto capaz de discutir acerca de nossa história, de nossa política… Acho que somos também resultado de nossas circunstâncias, que mesmo não justificando nossas atitudes, acabam por nos confundir e nos empurrar em uma ou outra direção. Pensei em Graciliano Ramos, escritor que muito admiro e que, após ter sido preso por conta de sua crítica social à época (1936), só se tornou comunista em 1945…

Não sei quantitativamente, mas há obras importantes dos russos sobre os campos de trabalho forçado, e também narrando outras facetas da insana crueldade do comunismo de Stalin, que vitimou milhões. Acho que tampouco se fala do extermínio de negros, de índios… Os judeus – que me parecem uma etnia livresca por excelência – mantêm viva não apenas a lembrança das atrocidades nazistas, como a memória e o ritual de tantas festas ainda hoje. Por seu intermédio, Ladyce, conheci e venho acompanhando o blog O mundo de K. Recentemente li a recomendação do livro Nova Antologia do Conto Russo (olha o meu gênero preferido aqui de novo!). Imediatamente li na íntegra Xerez – um conto de Varlam Chalámov, ele próprio uma vítima do regime e que classificou sua obra literária como “ficção verídica”. De Chalámov, é possível ler Kolyma Tales em inglês (acho que não temos tradução para o português).

Os relatos russos não apresentam heróis românticos, mas o retrato da brava resistência. Homens que, nos campos, com pouco acesso a qualquer mínima dignidade, pensavam que “gostariam de ter tido uma pequena biblioteca, pois só conseguiram ler uns poucos livros gastos, com as mãos algemadas” (fragmento em tradução livre). Embalada por essa descoberta de outros escritores russos – eles que quando contam sua dor, falam da dor do universo todo – interrompi minha leitura do momento, para ler “Faithful Ruslan, do ucraniano Georgi Vladimov (disponível e-book em inglês na Livraria Cultura), cuja alegoria conta a história narrada pelo cachorro Ruslan, que tendo cumprido magnificamente seu trabalho de guarda num campo, não entende a repentina ausência dos prisioneiros, os portões abertos, o fato de seu “master” humano não mais lhe atribuir nenhuma ordem ou missão. Todos partiram. O campo fechou. Ruslan fica para trás, confuso e certo de que seu trabalho ainda não terminou. Assim, “livre”, o cão passa a perseguir um antigo prisioneiro, que termina por despedaçar. Afinal, pode um cachorro sobrevivente abandonar de todo os condicionamentos impostos por anos, quando não havia espaço para transgressões ou para a esperança?

Obrigada & abraços, da Nanci.

23 01 2012
peregrinacultural

Nanci, temos uma longa tradição de camuflar a história, cobrí-la com véus. Todos os países têm. Nos anos 70, no meu primeiro contato com os EUA, fiquei surpresa de ver que ao visitar a casa de George Washignton, não havia menção das senzalas ou dos escravos. Eles ainda estavam na fase de esconder o vergonhoso passado, mas aos poucos nas últimas décadas começaram a mudar a música… Com o tempo, a pesquisa e as novas gerações aos poucos formam novas imagens do passado.

Aliás, a história é sempre multi-facetada porque depende da memória [que é pessoal e não confiável] de muitos. Mas pior ainda é quando colocamos um viés nessa memórias. Nunca me esqueço do meu choque, depois que entrei para a faculdade, ao estudar a história do Brasil e descobrir que tudo que eu havia aprendido no curso secundário, tinha viés colonizador, dos historiadores portugueses. Mesmo tendo sido aluna de um dos melhores colégios do Brasil, Colégio Pedro II, quando cheguei à faculdade fiquei pasma de nunca ter tido um debate em classe, em casa, de nunca ter a porta de dúvida aberta a certos fatos que haviam sido apresentados como certos. Devo agradecer a inspirados professores de história pela germinação da dúvida sobre o que era apresentado. Uma vez esta semente brote é impossível aceitar visões do passado sem questionamento.

Obrigada por continuar neste debate, um grande abraço, Ladyce

20 01 2012
Regina

Cara Nanci,
Nos contos russos podemos ver também a fome, muita fome. Na minha sociologia de bolso, as gerações perdidas com totalitarismos são em maior número. Calculo que quem nasceu,como eu, 10 anos antes do golpe chegou ao ano mais cruel (68) com apenas 14 anos. O que a gente sabia ou entendia daquilo tudo? Passei por uma invasão a meu colégio, feita pela cavalaria e que foi assustadora, depois uns episódios na rua que mais pareceram aventura, lembro de várias coisas até com certa precisão mas eu era só uma adolescente que jogava bola e achava “hay que endurecer pero sin perdar la ternura jamás” uma coisa fantástica. A falta de conhecimento e informação era geral. Atingia até e também gente mais velha e ativa. A geração que se seguiu à minha também não foi muito melhor. Ou seja, perde-se a geração anterior, a vigente e a posterior à ditadura. Hoje acho que “aquele tempo infeliz de nossa história” beneficiou e muito ao partido que mais gritou. O ex presidente usa de vários expedientes daquela época e tira grande proveito da ignorância e falta de capacidade de pensar da geração atual. Tenho duas sugestões para você e a Ladyce:
O Que Sei de Lula, José Nêumanne Pinto e
Coluna Prestes, O Avesso da Lenda, Eliane Brumm
Abraço.
Regina

23 01 2012
Regina

Ladyce,
A história é contada pelos vencedores, então…
Irrita-me ver pessoas numa faixa etária em que tiveram oportunidade de pensar melhor, se perguntar, ler mais, estudar mais, olhar como espectador afastado do calor dos fatos (caso de nossa história) mesmo assim não conseguir enxergar os dois lados que todo fato possui.
Abraço

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