
Uma boa parte dos leitores deste blog é de professores dos cursos básico e médio que procuram poesias adequadas à sala de aula. Grande ênfase tem sido dada aos pequenos poemas, com trocadilhos e uma atitude jocosa nas rimas ou ritmos. Há na verdade ótimos poetas brasileiros e portugueses que se enquadram exatamente nessa tendência, chamada “para crianças”. Mas não muito tempo atrás, já bem na segunda metade do século XX a poesia para crianças era — com exceção de uns poucos autores entre eles os nomes clássico como Olavo Bilac, Zalina Rolim – a poesia que autores escreviam para um público geral e que era selecionada para uso escolar, por causa da temática e do linguajar de mais fácil compreensão. Daí o sucesso de antologias de poesias para a infância, tais como aquelas organizadas e selecionadas por Henriqueta Lisboa, ela mesma uma excelente poeta brasileira. Quisera eu me lembrar do nome do organizador da antologia de textos e poesias brasileiras em cujo volume estudei na escola municipal do Rio de Janeiro onde completei os meus primeiros anos escolares… Mas não me lembro.
Lembro-me, no entanto, que decorávamos poesias, na sala de aula, a turma inteira, éramos 30, lendo o texto em conjunto, como faríamos se regidos numa missa à cultura brasileira. Vez por outra, íamos, um a um, para perto da professora, lá na frente, e declamávamos – por bem ou por mal – um ou outro poema, lendo de nosso livro de textos. Tive sorte, agradeço à minha professora, Dona Yolanda, algumas boas memórias. Entre elas está o poema Meus oito anos, de Casimiro de Abreu, que por ser muito longo – e o líamos inteiro – foi recitado em conjunto, em sala de aula, como se declamássemos uma tabuada de versos, e depois, cada estrofe, era lida por uma criança, em cadeia perpétua: quem lia a última estrofe era seguido por quem lia a primeira estrofe de novo, como num rondó, interminável. É um poema que sei de cor até hoje. Em parte, porque eu conseguia me ver naquele menino de oito anos “correndo pelas campinas, à roda das cachoeiras, atrás das asas ligeiras das borboletas…” Não havia campinas no Rio de Janeiro, não havia cachoeiras perto de minha casa e muito menos borboletas azuis. Mas eu sabia que deveria haver um local assim, à sombra das bananeiras.
Não é difícil imaginar a influência que esse poeta teve no Brasil e principalmente a influência desse poema especificamente: ENORME! Achei que poderíamos nos lembrar de Meus oito anos, aqui no blog, pois ontem, virando as páginas de alguns livros de poesia, achei uma outra jóia, influenciada por Casimiro de Abreu e que também pode ser usada na sala de aula. Em, Cheiro de chuva, do poeta norte rio-grandense José Lucas de Barros, sentimos claramente a influência de Casimiro de Abreu, no ritmo, no tema escolhidos. No entanto, é um poema que se destaca por si só, seu valor independe de Meus oito anos. Colocarei aqui os dois textos, para uma bela e saudável comparação. Em ambos há um retorno à infância e um retrato da natureza como imaginamos, que hoje, depois da abertura da nossa conscientização sobre o meio-ambiente, a natureza deva ser ou possa voltar a ser. É claro que há uma idealização mas uma idealização que só sublinha ainda mais enfaticamente a necessidade que temos de que a nossa terra e o nosso planeta voltem a nos dar prazeres semelhantes aos descritos nos dois poemas. Bom proveito!

Chuva no sertão, fotografia Pedro Cavalcante/Flickr.
Cheiro de chuva
José Lucas de Barros
Deus, que saudosa manhã,
Em que ouço a melodia
Do canto da saparia
E o grito da jaçanã!
Ai! Quem conhece esse encanto
No meu sertão grato e santo
Esquecer não poderá.
O que há de bom nesta vida,
Pode passar de corrida,
A saudade deixará.
Vendo d’água a terra cheia,
Eu sinto a doce lembrança
De meu tempo de criança,
Dos meus açudes de areia;
A corrente do regato,
O cheiro de flor do mato
Das caatingas do sertão,
Tudo são gratas memórias
Que vêm cavar mil histórias
Plantadas no coração.
Nada mais belo e atraente
Do que, no rio revolto,
Pelejar de braço solto
De encontro à bruta corrente.
Lembro-me bem, no Espinharas,
Em manhãs boas e claras,
Após noite de trovão
A gente afogava as mágoas,
Cortando o peito nas águas
Como simples diversão.
Depois de ver-se na terra
Fartura d’água rolando,
O relâmpago faiscando,
O trovão quebrando a serra,
O gemer das cachoeiras,
Nas madrugadas fagueiras
Dá testemunho aos ateus
De que toda essa grandeza
É a própria Natureza
Cantando a glória de Deus.
NOTA: Espinharas, nome de um rio no estado da Paraíba.
Em: Panorama da poesia norte-riograndense, Rômulo C. Wanderley, Rio de Janeiro, Edições do Val: 1965, prefácio de Luís da Câmara Cascudo.

Menino, caju e Recife ao fundo, década de 1970
Cícero Dias ( Brasil 1907-2003)
Óleo sobre tela, 70 x 63 cm
Meus Oito Anos
Casimiro de Abreu
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar – é lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!
—-
José Lucas de Barros, (original da PB, registrado em Serra Negra do Norte, RN, 1934) professor, advogado, poeta, trovador e pesquisador da literatura popular. Vice- presidente da Academia de Trovas do Rio Grande do Norte, presidente da Associação Estadual de Poetas Populares – RN e membro da União Brasileira de Trovadores, seção de Natal/RN.
Obras:
Cantigas de meu destino, trovas
Repentes e desafios, ensaio e pesquisa
Caminhada, poesias
—
Casimiro José Marques de Abreu (Barra de São João, 4 de janeiro de 1839 — Nova Friburgo, 18 de outubro de 1860) poeta brasileiro da segunda geração romântica. Foi a Portugal com seu pai em 1853, onde permaneceu até 1857. Morreu aos 21 anos de idade de tuberculose. Deixou um único livro de poesias publicado em 1859, Primaveras, mas foi o suficiente para se tornar um dos mais populares poetas brasileiros de todos os tempos.
Obras:
Teatro:
Camões e o Jaú , 1856
Poesia:
Primaveras, 1859
Romances:
Carolina, 1856
Camila, romance inacabado, 1856
A virgem loura,
Páginas do coração, prosa poética,1857