LIVRO CURTO QUE FAZ A DIFERENÇA
O ÚLTIMO AMIGO
Tahar Ben Jelloun
Editora Bertrand Brasil
Publicado em 2006 – 128 páginas
“Não gosto de férias. Devo dizer que não sinto necessidade delas, já que não trabalho com as mãos. Nem mesmo sei o que é tirar férias. Parece que é descansar, mudar de ritmo e de hábitos. Não tenho vontade disso. Meu ritmo é o que é. Lento e sem surpresas. Maus hábitos estão mais para manias, e tenho medo de perdê-los se, como todo mundo, sair de férias no mês de agosto. Meus hábitos me suportam e me ajudam a me suportar. Eles são simples e eu só peço uma coisa: que não os perturbem, que me deixem com eles do jeito como são.
Todos os que partem pelas estradas ao mesmo dia e na mesma hora têm também suas manias: ser como todo mundo, agir como os outros, não perder nada da empolgação coletiva, um modo de se tranquilizarem, de garantir que não vão morrer sozinhos ou idiotas. Não é o meu caso. Morrer idiota ou inteligente tanto faz!
Não gosto de férias porque não gosto de viajar. Correr para uma estação carregando uma mala pesada numa das mãos, uma bolsa na outra, as passagens entre os dentes, fazer fila num aeroporto para despachar a bagagem, suportar o nervosismo dos veranistas que têm medo de avião ou que se sentem obrigados a levar consigo a avó, que está perdendo a memória e adoraria ficar em casa com suas pequenas manias, ser acotovelado por um grupo de desportistas descuidados, partir atrasado, chegar exausto numa hora impossível, procurar um táxi… tudo isso eu deixo para vocês e prefiro me recolher num canto da casa, para escutar o silêncio e sonhar com os amores cruéis…”
Em: O primeiro amor é sempre o último — contos, Tahar Ben Jelloum, tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo, Rio de Janeiro, Editora Vieira Lent: 2002, pp 60-1
Vista de Tânger pela janela, 1912
Henri Matisse (França, 1869-1954)
óleo sobre tela, 115 x 80 cm
Museu Pushkin, Moscou
“Cidade enfeitiçadora, ela amarra qualquer um contra um eucalipto com velhas cordas que marinheiros distraídos esqueceram no cais do porto; ela segue como uma perseguição; fica-se obcecado por ela como em uma paixão para sempre inacabada; fala-se dela; acredita-se que sem ela toda vida é enfadonha; tem-se necessidade de se saber o que está acontecendo, persuadido de que nada de essencial acontece.
Tânger é como um encontro ambíguo, inquieto, clandestino, uma história que esconde outras histórias, uma revelação que não diz toda verdade, um ar de família que envenena a sua existência desde que você se afasta; e você sente, então, que tem necessidade dela sem jamais conseguir saber por quê.”
Em:O último amigo, Tahar Ben Jelloun, Rio de Janeiro, Bertrand:2006, p.43
Dois amigos, com texto de Cícero sobre amizade, c. 1522
Jacopo Pontormo (Itália, 1494-1557)
óleo sobre madeira, 88 x 68 cm
Fondazione Giorgio Cini, Veneza, Itália
Aviso aos leitores: nem sempre o tema de um livro é aquele abertamente citado pelo autor ou sugerido pelo título. O último amigo é uma joia, uma obra prima, de narrativa em espiral, um quase ensaio sobre a ilusão, sobre a autoilusão, sobre amizade, traição, ciúme e inveja. É um livro muito mais complexo do que suas poucas 120 páginas poderiam sugerir.
Trata-se do retrato de uma dessas amizades que nasce nos anos de escola, que se desenvolve através da juventude, que assim como seus componentes ela também amadurece, sobrevive a percalços, casamentos, exílio, e nos re-encontros através do anos parece se fortalecer, se solidificar. Sua base está na franqueza, na compreensão do outro, no conhecimento do passado em comum, no desejo generoso de que o outro seja bem sucedido, que desfrute do melhor.
Tahar Ben Jelloun divide sua obra em três partes. Começa com uma longa e detalhada descrição de Ali, que na primeira pessoa relata o caminho percorrido pela amizade dele por Mamed. Nossa identificação com o narrador é imediata. Sentimos que o conhecemos e por isso mesmo nos chocamos tanto quanto ele, quando seu amigo de infância o surpreende com um corte irremediável na amizade de vida inteira. Na segunda parte, temos a versão de Mamed sobre essa mesma amizade. Também descrita na primeira pessoa e curiosamente mostrando outros fatos outro enfoque nos eventos que marcaram o relacionamento desses dois amigos. É aí que sabemos de sua decisão de cortar os vínculos fraternais entre ele e Ali. Na terceira parte temos o testemunho de Ramon, uma amigo dos dois protagonistas, mas não tão chegado a eles.
A amizade é o tema. Tanto Ali quanto Mamed professam profundos sentimentos um pelo outro. Nas narrativas de ambos sabemos dos gestos magnânimos e sacrifícios que cada um fez em nome dessa amizade. Mas no tecido do texto, no forro desse longo relacionamento encontra-se outro sentimento: a inveja. Inveja que Mamed chama ciúmes. E é ela que acaba por corroer o laço entre eles. Mamed não esconde esses sentimentos rasteiros em seu depoimento: “Acontecia de eu ficar com ciúmes de Ali também, porque ele era mais culto do que eu, porque vinha de uma família quase aristocrática, porque era mais bonito e que, graças a seu casamento, tinha ficado rico.” [96-7]. E mesmo que ao cortar os laços de amizade que tem com Ali imagine, ou diga tratar-se de generosidade, essa ação não esconde a fraude de seus próprios sentimentos. Pois só a ilusão de uma boa ação poderia justificar para si mesmo a traição que comete, interferindo na amizade de longa data. A desculpa é fraca.
Tahar Ben Jelloun
Jean Cocteau é conhecido por ter dito que “A felicidade de um amigo deleita-nos. Enriquece-nos. Não nos tira nada. Caso a amizade sofra com isso, é porque não existe.” Acredito que este seja o retrato do que se passa aqui. Mamed tinha emocionalmente uma estatura pequena e não conseguiu honrar os sentimentos de seu único e exclusivo amigo.
Este é um grande livro numa pequena aparência. Tornou-se um de meus favoritos, e por isso recomendo a todos que gostam de pensar um pouco, de explorar a natureza humana, de se envolver num debate interno e julgar se o ato de Mamed é um gesto de amizade ou de traição. Aqui esta a minha opinião. Talvez você tenha uma opinião diversa. Leia-o.