Mad dogs… [ Loucos…]
Jack Vettriano (Escócia, 1951)
óleo sobre tela
–
–
Fiquei surpresa com a persistência das imagens dançando na minha imaginação dias após a leitura de As Avós de Doris Lessing [Cia das Letras: 2007]. Por um tempo não sabia exatamente o que dizer sobre o livro além de recomendá-lo enfaticamente. Tudo tem seu tempo. Às vezes as idéias precisam amadurecer. De repente, ZÁZ!, veio o ponto de encaixe: uma conversa sem agenda, com uma amiga. Entre um cafezinho e outro ela disse que lia para ser apresentada a mundos e pessoas que jamais conheceria na vida real. Sentia-se assim enriquecida pela leitura. A meta era expandir seu conhecimento sobre outros seres humanos. Nada de extraordinário, mas foi a chave, para a introdução a esta resenha. Sim, isso me aconteceu com a leitura de As avós: uma ligeira mutação da norma comportamental e fiquei intrigada o suficiente para não deixar o tema de lado.
A sinopse do romance, que na verdade não é nada mais do que um conto alongado, ou uma novela, é simples, e reproduzo-a aqui como aparece nos sites de venda para facilitar a resenha. “Roz e Lil são amigas inseparáveis desde a infância. Cresceram, casaram, tiveram filhos, e vivem na paradisíaca bacia de Baxter, um lugar cercado de rochas por todos os lados. O ambiente protegido, “bocejante”, além do qual o “verdadeiro oceano rugia e roncava”, é o cenário ideal para uma relação cada vez mais simbiótica. Morando em casas vizinhas, elas criam os filhos por conta própria – e eles se tornam adolescentes encantadores.Tão encantadores e próximos, que Roz e Lil não tardam a se envolver uma com o filho da outra. Num efeito ambíguo e desconcertante, típico da grande literatura, o que poderia parecer repulsivo é tratado com naturalidade e bom-humor, fazendo a quebra de tabus soar como regra, e não como dramática exceção. Temas como a amizade, maternidade e sexualidade ganham novos contornos enquanto Doris Lessing esmiúça as complexidades e armadilhas da forte ligação entre essas duas mulheres, e retrata a força com que elas confrontam as convenções familiares e sociais de sua época.”
O romance gera perguntas cujas respostas são difíceis de encontrar. Estamos diante de diversos tipos de amor. Há o amor narcisista: Roz e Lil — que até se parecem fisicamente, ainda que, quando adultas, tenham personalidades e profissões diversas — vêem a si mesmas na outra, desde pequenas, desde os bancos da primeira escola. E nos questionamos: estaremos sempre à procura de nós mesmos nos nossos pares? São os pontos em comum que temos com eles o que nos une? É o narcisismo a força vital do amor fraternal? Você gosta de seus amigos pelo que eles refletem de você neles? E na paixão o mesmo acontece?
–
–
–
–
As vidas de Roz e Lil são de um paralelismo impressionante, mas não raro entre amigos. Observo à minha volta: amigos se casaram em datas próximas, tiveram filhos mais ou menos ao mesmo tempo, permaneceram, quando puderam, nos mesmos bairros, trocaram de casa à mesma época e assim por diante. O paralelismo no romance, no entanto, é tão perfeito que de fato as vidas retratadas parecem mais especiais, porque são como imagens refletidas num espelho.
No mundo das artes e das antiguidades, há uma diferença considerável de valor no par de objetos considerados “ par verdadeiro”. Paga-se mais, muito mais, quando, por exemplo, num par de vasos – cada vaso aparece com a decoração invertida (da direita para a esquerda e/ou vice-versa), como se girassem num eixo vertical imaginário. Esses são chamados “pares verdadeiros” , ao contrário de um par simplesmente composto por dois vasos exatamente iguais. Aqui também. O par, formado por Roz e Lil parece muito mais interessante porque elas são diferentes, têm gostos diferentes, maridos diferentes, e até seus filhos têm um comportamento diferente. E no entanto, são iguais, são simbióticas, elas se completam a tal ponto de não considerarem morar longe uma da outra.
Através do romance o tema da homossexualidade permanece palpável, endereçado aqui e ali, sem compromisso, mas latente. Tão forte é a simbiose entre as amigas que um dos maridos se divorcia porque se sente em segundo plano. Mas elas escapam dessa identificação, relacionando-se, ao contrário, com seus respectivos filhos. E de novo, temos o espelho. Narciso mete sua cara… Saturno comendo seus próprios filhos também… Mas não há nada de imoral nesse relacionamento, nada saturnal, no sentido de orgia. Longe disso, a implicação de imoralidade está com o leitor apenas, deparando-se com um comportamento fora dos padrões. Amoral? Não há incesto. Não são seus filhos… E voltamos à questão do amor, de Narciso: será que elas gostam de ver nos rapazes aquilo de que gostam nas amigas?
–
–
Doris Lessing
–
–
O mundo se fecha para eles, ou melhor, eles se fecham para o mundo, como se o amor fosse hermafrodita, auto-devorador, auto-consumido. Vivem numa realidade hermética, como num processo alquímico. Respiram, ganham novas vidas, vicejam no ambiente fechado que criaram, cegos para o mundo exterior. Os quatro se bastam, se saciam, se fartam. Por quanto tempo? Anos. Muitos anos. Mas a natureza é entrópica e os rapazes, quase ao mesmo tempo, se casam… Não se casam com qualquer jovem. Eles, que são melhores amigos, se casam com duas melhores amigas. E o processo parece poder continuar. Parece cheio de possibilidades infinitas… Espelhos refletindo espelhos.
Não há como não se tentar definir o amor depois da leitura de As avós. As experiências extremas retratadas na novela nos são familiares e por isso mesmo têm tanto efeito no leitor. Quem já teve um amigo de infância chegado, aquele ou aquela com quem dividia todos os segredos, pode ter beirado uma situação semelhante à descrita no texto. Quem já se apaixonou, reconhece, no círculo fechado dos amantes alheios ao mundo exterior, a sensação de saciedade que acompanha a paixão consumida. Talvez seja por causa da familiaridade dessas emoções que essas 104 páginas de prosa consigam permanecer vivas por tanto tempo… Consigam parecer tão relevantes. Tenham tanto impacto.