Ladyce West, a Peregrina Cultural, escolhe as melhores leituras do ano!

30 12 2024

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Este foi um ano de sessenta e quatro livros lidos. Esse número inclui ficção e não ficção assim como livros relidos.

Ficção tem pela primeira vez desde que faço essa lista, dois autores brasileiros no pódio. E entre eles o ganhador de melhor do ano.

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1º lugar

 

OJIICHAN, Oscar Nakasato

SINOPSE – Terceiro livro do escritor paranaense e vencedor do Jabuti Oscar Nakasato, Ojiichan, que em japonês significa “vovô”, retrata a vida de Satoshi a partir do seu aniversário de setenta anos.

A aposentadoria compulsória do colégio onde ele lecionou por décadas é o primeiro dos eventos que o obrigam a confrontar as muitas faces da velhice. Seus colegas preparam uma festa de despedida e os alunos, que carinhosamente o apelidaram de Satossauro, prestam homenagem ao professor. Preocupados em celebrar o merecido descanso após uma vida de trabalho, ninguém ao redor parece enxergar a dor de Satoshi em deixar a rotina e dar início a uma nova fase.

Em casa, as coisas não estão muito melhores. A perda de memória de Kimiko, sua esposa, vai se agravando, e os cuidados com ela recaem sobre ele, sobretudo depois que uma tragédia acomete a filha do casal. Com o outro filho vivendo no Japão e o neto ausente, Satoshi experimenta, de modo estoico, os primeiros sinais da solidão, que só pioram quando ele é obrigado a se mudar para um apartamento menor e se despedir de Peri, seu cachorro. No novo prédio onde passa a morar, a solidão de Satoshi dá as mãos à de d. Estela e Altair, seus vizinhos, cuja história de vida o protagonista descobre aos poucos.

Com a coragem de representar o desamparo em toda sua crueldade, porém avesso a melodramas, Oscar Nakasato toca em pontos sensíveis da sociedade brasileira e provoca a reflexão ao desafiar o final trágico que parece se anunciar: quando Satoshi contrata Akemi como cuidadora de sua esposa, sua vida particular ganha novos contornos e a configuração do cotidiano e da família se alteram de modo inusitado.

Em sua prosa a um só tempo austera e atenta aos detalhes, tão característica da cultura japonesa na qual Nakasato cresceu, Ojiichan mostra que a terceira idade não é a linha de chegada, mas um caminho a ser trilhado, e transborda a beleza e a serenidade necessárias a um mundo ocidental de supervalorização da juventude e da velocidade.

2º lugar

OS ENAMORAMENTOS, Javier Marías

SINOPSE — O assassinato de um empresário madrilenho é o ponto de partida do romance de Javier Marías, que traz uma reflexão literária sobre o estado de enamoramento.

María Dolz, uma solitária editora de livros, admira à distância, todas as manhãs, aquele que lhe parece ser o “casal perfeito”: o empresário Miguel Desvern e sua bela esposa Luisa. Esse ritual cotidiano lhe permite acreditar na existência do amor e enfrentar seu dia de trabalho.

Mas um dia Desvern é morto por um flanelinha mentalmente perturbado e María se aproxima da viúva para conhecer melhor a história. Passa então de espectadora a personagem, vendo-se cada vez mais envolvida numa trama em que nada é o que parecia ser, e em que cada afeto pode se converter em seu contrário: o amor em ódio, a amizade em traição, a compaixão em egoísmo.

A história, narrada em primeira pessoa por María, sofre as oscilações de seus estados de espírito, de seus “enamoramentos”, evidenciando que todo relato é tingido pela subjetividade de quem conta.

Ao mesmo tempo, a presença incômoda dos mortos na vida dos que ficam é o tema que perpassa este romance, à maneira de um motivo musical com suas variações. Para desdobrar e reverberar esse mote, Javier Marías entrelaça a seu enredo referências a obras clássicas da literatura, como Os três mosqueteiros, de Dumas, Macbeth, de Shakespeare, e, sobretudo, o romance O coronel Chabert, de Honoré de Balzac.

Sustentando com maestria uma voz narrativa feminina, o autor eleva aqui a um novo patamar sua habilidade em nos envolver no mundo interior de seus personagens. Com Os enamoramentos, obra de plena maturidade literária, Javier Marías se reafirma como um dos maiores ficcionistas de nossa época.

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3º lugar

TERRA ÚMIDA, Myriam Scotti

SINOPSE —  Ganhador do Prêmio Literário de Manaus 2020, na Categoria Regional, tem como tema central a diáspora Judaico-Marroquina no começo do século 20, quando muitos imigrantes, vindos do Oriente, atracavam no Porto de Manaus.

A paisagem escurecia, sem que pudéssemos fugir de toda a chuva que estava para irromper, num prenúncio de desafio a quem ousava por ali navegar. O verão amazônico se anunciava violento, inserto em sua própria selvageria e ainda faltavam três dias para chegarmos a Manaus. Estávamos em meio ao nada. Apenas o infinito de águas nos cercava. Inimaginável que uma tarde bonita como aquela pudesse se transformar, trovões começariam a rimbombar e uma chuva torrencial cairia sobre nós. Ventos fortes e atípicos sacudiam a embarcação, como se fôssemos um barquinho de papel. Um dos marinheiros chamou a nossa atenção para uma mancha que lembrava um grande disco e se formava na superfície do rio, a certa distância. Curiosos, corremos todos para saber do que se tratava e então vimos surgir um anel de água, que logo ganhou força formando uma imensa tromba. Mesmo percorrendo rios há alguns anos, só tinha ouvido falar do fenômeno e até duvidava de sua veracidade.

Aqui a lista dos sete livros restantes que considerei os melhores do ano:

Todas as manhãs do mundo, Pascal Quignard

Uma hora de fervor, Muriel Barbery

A outra filha, Annie Ernaux

Não é um rio, Selva Almada

Cora do Cerrado, Tana Moreano

Novembro, 1963, Stephen King

Uma rosa só, Muriel Barbery

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MENÇÃO HONROSA

Kentukis, Samanta Schweblin

Segurant: o cavaleiro do dragão, Emanuele Arioli

Crônicas minhas, Nancy de Souza  – crônicas

As filhas moravam com ele, André Giusti — contos

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RELIDOS — só releio o que já considerei muito bom.

Olhai os lírios do campo, Érico Veríssimo

Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis

Kafka à beira-mar, Haruki Murakami

A ridícula ideia de nunca mais te ver, Rosa Montero

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NÃO FICÇÃO, só os que recomendo.

O lado bom das expectativas, David Robson

Diálogos sobre a natureza humana: perfectibilidade e imperfectibilidade, Luiz Felipe Pondé

2030: How Today’s Biggest Trends Will Collide and Reshape the Future of Everything, Mauro F. Guillén

Writers and their notebooks, Diana Raab

The two Eleanors of Henry III, Darren Baker

No enxame, Byung-Shul Han

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FICÇÃO em inglês

The Anthropologists, Aysegul Savas

The Hammock: A novel based on the true story of French painter James Tissot, Lucy Paquette





Trabalhando em todas as frentes…

12 12 2024
Escritora Lenah Oswaldo Cruz, eu, Ladyce West, advogada Jairene Camilo, escritora Nancy de Souza, leitora e jornalista Thereza Pessanha e escritora Nadyr Carvalho.  Ausente, escritora Tana Moreano.





Dia a dia…

24 08 2024

Ontem foi dia de encontro memorável: nós quatro, escritoras cariocas, que nem sempre moramos no Rio de Janeiro, nos encontramos para um excelente bate-papo, muito esperado e inspirador que durou um pouco mais de quatro horas.  Que venham mais.





Resenha: Crônicas minhas, de Nancy de Souza

11 08 2024

A modelo, 2023

Jean-Claude Götting (França, 1963)

acrílica sobre tela, 100 x 100 cm

 

 

 

Crônicas minhas de Nancy de Souza é para ser lido e degustado aos pouquinhos.  Porque depois de cada crônica a tendência do leitor é refletir sobre a vida, as mudanças que testemunhamos no do dia a dia; as emoções que algumas memórias nos trazem.  Essas crônicas são pequenas, mas acordam uma infinidade de considerações sobre o que é viver, como se transformar, e as consequências dessas transformações.

Houve momentos em que parei emocionada, como em “Carta ao meu tataraneto”, de onde trago o seguinte parágrafo:

Tente, meu tataraneto, me descobrir registrada no seu código genético e, falando com a sua voz, te dizer segredos de família que não conseguirá ouvir. Sinto, aqui e agora, uma tristeza enorme de me perder assim sem te ver, dentro de você, presa num emaranhado, dito DNA. Liberte-me sendo você mesmo, sorrindo alto como sorriam os meus e com sonhos ousados como foram os meus. Encontre-se comigo num mundo melhor, desvenda-me, desvendando-se a si próprio. [103]

 

 

 

 

E outras em que cheguei a dar um risinho divertido, como em “O sofá, os urubus e as termais”:

Depois de um ano fora, fazendo intercâmbio pela faculdade, minha filha responde ao meu questionamento: ‘Do que você sentiu mais falta aqui do Brasil?’. Sua resposta saltou ligeira, sem dificuldades, como que descoberta antiga e fascinante: ‘Do sofá.’ [41]

Todas essas crônicas, sem exceção, nos levam a ponderar sobre nossas experiências e trazem à tona memórias, algumas bem escondidas na sobreposição de eventos mais recentes.  Mas ter alguém narrando e comentando sobre a vida, ocorrências diárias, quase sempre começadas por gesto ou objeto banal, é muito prazeroso. Porque Nancy de Souza tem e teve uma vida, igual a de todos nós, repleta de pequenos incidentes, de decisões acertadas e outras não tão bem-sucedidas, de momentos que sabia serem importantes. O que a difere do resto de nós todos?  Excelente memória emotiva e factual, bom senso de humor, vários aprendizados adquiridos do mar ao piano, da artista plástica à escritora. Experiências, que transformou em pepitas de ouro para reflexão, como na emotiva despedida, no se desprender das cinzas de seu cão e companheiro, Benjamin James, em “Pó de estrela”.

A cada passo, me dava conta de que todo nosso corpo, ideias e lembranças, podem caber num pequenino saquinho plástico, pois somos pó, pó de estrela. Em explosões cósmicas colocamos os pés no mundo, caminhamos para cá e para lá, estudamos, aprendemos, lemos, nos esforçamos, com a ilusão de que seremos “sempre”. No entanto, aquele saquinho plástico balouçante em minhas mãos me dizia, sem dizer nada, que somos pó, pó de estrelas. [86]

 

 

Nancy de Souza

 

 

Há ainda uma característica dessas crônicas que gostaria de ressaltar.  Há tempos sinto falta na literatura brasileira contemporânea das histórias das pessoas comuns, de uma classe média que trabalha, estuda, quer avançar, quer se melhorar e melhorar o mundo à sua volta.  Tanto da nossa escrita se detém naquilo que é diferente, que é cruel, absurdo, no comportamento limítrofe, nas diferenças, no ódio! Tanta ênfase tem sido dada a extremos que a pessoa comum, que é assolada por dúvidas e decisões que a afetam e a outros também, parece ter desaparecido do nosso horizonte literário.  Nancy de Souza traz a ‘normalidade’ de volta ao palco e nos convida a esquadrinhar o que estamos fazendo com nossos hábitos cotidianos.

Crônicas minhas terá, por algum tempo ainda, um lugar na minha mesa de cabeceira, porque quero voltar a ler, ali e acolá, e ponderar.  Recomendo sem restrições.

 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.





Um mundo cheio de mundos, texto de Nancy de Souza

27 06 2024

Jovem lendo com suéter roxa

Rick Beerhorst (EUA, 1960)

óleo sobre tela, 76 x 76 cm

 

 

 

 

“Meu pai era um oficial da Marinha cheio de restrições com respeito à nossa criação, mas a pior delas era o fato de que não podíamos  sair do perímetro de nossa casa. Até para irmos à varanda tínhamos que ter permissão e supervisão. Passeios de escola, nem pensar! Viagens para nós eram, simplesmente, algo impensável.

A saída que encontramos foi a nossa imaginação, com ela íamos a todos os lugares. Uma árvore era uma nave espacial, na qual visitávamos outras galáxias; com um giz desenhávamos circuitos no chão de terra do nosso quintal, que nos levavam a outros mundos; com cadernos e lápis construíamos escolas e, se olhássemos bem dentro de uma bolinha de gude, podíamos ver universos repletos de vias lácteas. Nos dias de chuva, construíamos labirintos com as almofadas ou imaginávamos teatros de terror, que no final nos davam tanto medo, que a brincadeira logo acabava. Nosso mundo era cheio de mundos, um dentro do outro como aquela bonequinha russa. E tínhamos também outra chave mágica: os livros.”

 

 

Em: Aventuras e Desventuras de Benjamin James, Nancy de Souza, Campo Grande, MS, Editorial Eirele: 2019, p.103