Resenha: Eu vou, tu vais, ele vai, de Jenny Erpenbeck

6 02 2025

Serenidade

Sherree Valentine Daines (Inglaterra, 1959)

óleo sobre placa

 

 

Quando o meu grupo de leitura Papalivros decidiu que o final do ano seria dedicado à leitura de Eu vou, Tu vais, Ele vai, da autora alemã Jenny Erpenbeck, tradução de Sergio Tellaroli [Cia das Letras: 2024] confesso ter tido algum receio. Talvez fosse mais um livro dos tantos que apareceram nos últimos anos com agenda política ostensiva, uma das heranças mais limitantes que recebemos do filósofo francês Sartre, amplamente abraçada por militantes de minorias mundo afora, defendendo que a literatura só tem valor se politicamente comprometida.

Mas que bela surpresa tive: o livro é um escrupuloso relato das dificuldades dos países europeus em aceitarem responsabilidade sobre refugiados de guerra e imigrantes. E da tribulação por que esses refugiados, sem terra, sem emprego, sem conhecimento linguístico passam sem obter resultados positivos para a retomada de uma vida proveitosa.  Aos poucos nos envolvemos com cada um dos personagens pelos olhos de um professor de literatura clássica, que ao se aposentar e por acaso, passa a se interessar por um grupo de homens, a maioria do norte da África, que pede asilo político em Berlim.  Sua adaptação à nova vida sem as obrigações da universidade é lenta. Confronta o final de carreira e a aproximação do final de vida.  A esposa já faleceu, e a morte parece presente, bem próxima mesmo, desde que um homem se afoga no lago próximo à sua casa. Este contraponto é finamente entrelaçado na narrativa que se torna ainda mais rica quando através da perspectiva do professor vemos paralelos entre os refugiados e antigos heróis gregos da Ilíada.

 

 

 

A riqueza das  referências aos clássicos da literatura ocidental, dos gregos aos romanos, Homero, Ovídio,  tecidas junto a referências contemporâneas como “O tempo que passa: ensaio sobre a espera” de  Andrea Köhler ou lendas medievais, como O romance de Tristão e Isolda, toda elas parte do fluxo de consciência contínuo de Richard, o professor que  seguimos em seu novo papel de aposentado e interessado na vida além paredes universitárias, é a cereja do bolo dessa leitura. Entre os bônus dessas associações de ideias estão também os cognomes que ele dá aos asilados para melhor caracterizá-los para si mesmo e para o leitor.  Richard identifica história, personalidade e saga de cada um e os liga a personagens clássicos. Mesmo que o leitor não esteja familiarizado com essas referências, a leitura corre suave, mas se você as conhece, o prazer dos sorrisos de reconhecimento é enorme.

No entanto, o cerne das questões abordadas está no dilema dos países europeus e da Alemanha em especial, em aceitar e introduzir os novos habitantes na cultura do país.  A burocracia impera.  Não só porque são muitos os que procuram asilo fugindo das mais variadas guerras, revoltas, perseguições nos países do continente africano, mas também porque os sistemas europeus, repletos de armadilhas burocráticas herdadas, quer da Alemanha ocidental como da oriental, têm longas raízes na própria história do pensamento europeu.  Richard, está em boa posição para entender e se revoltar simultaneamente com a lenta resolução.  E compara como lhe apetece a experiência antes da unificação da Alemanha em 1990 e a vida que levou depois, observando também, como seus colegas,  já aposentados, reagem ao problema aos que procuram asilo. Paralelamente somos apresentados a Rashid, [Nigéria], Awad [Gana}, Osaboro [Niger e Líbia], Khalil [Chad], e outros doze homens, conhecendo suas histórias, desejos, esperanças e passado. Com eles aprendemos sobre a dificuldade de adaptação.  Falam línguas que ninguém entende quer na Alemanha, na Itália, de onde muitos vieram,  ou na Europa. Não conhecem o alemão. Vêm à procura de algum trabalho qua não existe.  Têm experiências desnecessárias para o país que os abriga.  E passam dias, semanas, meses, anos à espera.  À espera de permissão para ficar, para trabalhar.  Esperam serem vistos e respeitados, mesmo que fazendo trabalhos meniais.  Querem trabalhar e não podem. Presumem poder se adaptar, imaginam um futuro melhor, calculam maneiras de ajudar as famílias deixadas para trás, suspeitam que pode não dar certo, consideram um dia voltar às suas origens, desconfiam, com toda razão, dos europeus e especulam silenciosamente o propósito de suas vidas.

 

Jenny Erpenbeck

A meio termo da leitura, depois de conhecer através de Richard cada um dos homens procurando asilo, um após outro, numa corrente infinita de sofrimentos, fugas, guerras, lutas desesperadas pelo sobrevivência duvidei de minha capacidade de chegar ao fim desse volume. Em geral não me emociono muito na leitura, mas temi que qualquer conclusão a que se chegasse no fim desse volume, seria extremamente penosa. Mas a escrita de Jenny Erpenbeck é muito leve, justa, equilibrada. Avancei meticulosamente. E não me arrependi, Eu vou, tu vais, ele vai, – um título significativo para essa obra — traz tênue esperança de um mundo melhor. E isso foi o que bastava para que que eu o considerasse uma excelente e importante leitura. Passadas quatro semanas, posso afirmar, é um livro importante nas considerações que traz à tona, ilibadas. Ele nos faz pensar sobre o problema dos asilados. Não só na Europa. O mundo está cheio deles que fogem dos regimes mais desumanos. É um problema de todos nós, inclusive nosso, aqui no país, que abrigamos tantas famílias vindas da Venezuela. Essa leitura pode nos sensibilizar ainda mais para sua saga.

Recomendo; tornou-se um de meus livros favoritos dos últimos tempos. Sem restrições.

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.





Sublinhando…

2 01 2025

 

 

Na festa de Ano Novo, enquanto os dois, Richard e Peter, detinham-se na sacada da amiga de Marie contemplando a escuridão do ano velho, que logo se tornaria a escuridão de um novo ano, Peter contou-lhe que, para os incas, o centro do universo não era um ponto, e sim uma linha onde as duas metades do universo se encontravam.”

 

 

Em: Eu vou, Tu vais, Ele vai, Jenny Erpenbeck, tradução de Sérgio Tellaroli, Rio de Janeiro, Cia das Letras: 2024, p. 287.





Sincronicidade: lendas arturianas…

26 12 2024

Rei Artur e seus cavaleiros celebrando Pentecostes veem Imagem do Santo Graal,  c. 1475

Manuscrito encomendado por Jacques d’Armagnac, Duque de Nemours (França,1433-1477)

Folio 610v BNF Fr 116

Biblioteca Nacional da França, Paris

 

 

 

Neste Natal dei para meus sobrinhos, a cada um, uma versão diferente, quadrinhos e história para crianças, de um dos cavaleiros da corte do Rei Artur, recentemente redescoberto pelo historiador e escritor Emanuele Arioli, que lançou o livro Segurant: o cavaleiro do dragão, aqui no Rio de Janeiro [Vestígio: 2024] em meados deste ano, cuja palestra assisti encantada na Livraria da Travessa.  Eu havia lido a versão ‘para adultos’ assim que cheguei em casa mas separei em novembro alguns livros para reler nesta semana entre o Natal e o Ano Novo e esse volume foi um dos escolhidos.

 

 

 

 

 

Há dezesseis anos escrevo neste blog.  Os leitores sabem de minhas preferências, até mesmo da leitura de história medieval como passatempo para o momento em que me canso da ficção.  Com frequência digo a meus alunos que apesar de amar minha especialidade, arte europeia moderna [1863-1945] é possível, que se tivesse que fazer tudo de novo, me tornasse medievalista.  Mas eles também já me ouviram mencionar outras opções que igualmente me fascinam, como o século XVII na França, com Luís XIV,  o século de ouro na Holanda…. e provavelmente não me levam mais a sério! Tudo pode me encantar.  A gente ama aquilo que conhece.   Ai, ai, são tantas fases, tanto que ler, aprender, absorver até que se torne um conhecimento que respiro e transpiro… difícil escolha! Mas a época medieval também é problemática, mesmo que se divida em Alta e Baixa Idades Médias. Há séculos e séculos de intrincadas briguinhas, arrufos, compromissos de casamento quebrados,  mortes, assassinatos, traições entre herdeiros, centenas de cidades-estado cada uma do tamanho de um botão de camisa, com regras de comportamento para diferentes classes sociais, para cidadãos ou não cidadãos, leis que variam em poucos quilômetros de distância, restrições religiosas fora e dentro da própria Igreja,  enfim, um mapa do ocidente como uma colcha de fuxicos em que cada retalho representa um domínio com regras próprias. Esse mundaréu sempre me intimidou pela quantidade de informação a ser guardada.

Minha sedução pela Idade Média começou quando cheguei aos Estados Unidos ainda muito jovem. Apesar de ter tido sólida base gramatical da língua inglesa, essa não tinha sido minha língua estrangeira preferencial.  Francês, adquirido através de uma sequência de anos na Aliança Francesa, poderia até ser considerada uma quase segunda língua, porque comecei a aprendê-la aos dez-onze anos. E como meus pais eram daquela geração que lia francês fluentemente, não era raro esbarrarmos em livros franceses em casa.  Em inglês eu não tinha fluência e precisava aumentar o vocabulário urgentemente se quisesse passar no Toefl para completar meus estudos.  Poucos meses depois de chegar a Baltimore, entrei para um grupo de leitura em que a maioria das pessoas era ligada à universidade Johns Hopkins.  Foi uma grande batalha ler os livros escolhidos. Mas enfrentei e ainda li mais do que os que eram pedidos. Desse primeiro ano de experiências em um grupo de leitura, algo que eu não conhecia nem havia ouvido falar dessa maneira de encontrar amigos leitores, dessa época de adaptação à força ao país — e depois disso, sempre frequentei grupos de leitura não importava em que estado ou cidade eu morasse –, três livros,  desse primeiro ano, me marcaram profundamente: Of Mice and Men, de Steinbeck,  The French Lieutenant’s Woman, de John Fowles (que depois me levou a ler The Magus), e The Once and Future King de T.H. White.

 

 

 

 

A imensa fantasia de The Once and Future King sobre o Rei Artur, Merlin e demais personagens da Távola Redonda me seduziu com grande facilidade.  Lembremos que a essa altura eu ainda não era uma historiadora, e havia deixado no Brasil um curso de letras em Literatura Francesa na UFF e dois anos de história da arte com ênfase em semiótica, percepção, filosofia da arte e afins.  Reli The Once and Future King ainda uma vez no mesmo ano em que o conheci.  Daí por diante li diversas lendas medievais. Mas a lenda do Rei Artur sempre terá para mim esse gostinho especial, de achado miraculoso.  E isso foi muito antes de qualquer versão no cinema.

Eis que estou lendo também, o livro Eu vou, Tu vais, Ele vai de Jenny Erpenbeck, que está sendo uma leitura maravilhosa e devo ainda acabá-la antes do final do ano oficial, apesar de tê-la começado no dia de Natal.  Uma das coisas que me encanta nesse livro de Erpenbeck são as referências literárias e musicais que encontramos logo no início da obra: alusões a leituras clássicas e a composições musicais.  Se eu já era uma leitora curiosa, no tempo em que fazia uma lista para depois procurar na enciclopédia ou quando munida do Petit Larousse, que sempre tive ao meu lado nas leitura, procurava um mínimo de informação sobre lugares, personagens históricos ou literários; depois da internet sou compulsiva em consultar dados às vezes até mesmo para verificar se minha memória não me trai.  E diga-se de passagem as leituras no Kindle, onde no momento preciso em que encontramos uma palavra, um fato, menção de um livro,  um local, podemos colocar o dedinho em cima da palavra e imediatamente obter naquele mesmo minuto, alguma informação sobre o que não se conhece, é uma das grandes contribuições ao conhecimento de todos nós, à educação, ao alargamento de nossas visões.

 

 

 

Pois dentre as dezenas de alusões literárias em Eu vou, Tu vais, Ele vai esbarrei numa referência a Tristão do romance medieval  Tristão e Isolda, lenda, que até o renascer da fantasia como uma fatia das obras de ficção contemporânea, andava um tantinho esquecida.  A menção é breve, pelo menos por enquanto; ainda não terminei a leitura, mas aparece assim: “Como Brancaflor, Richard pensa, a mãe de Tristão.” [84] Parei para pensar Brancaflor, não me lembrava que esse era o nome da mãe de Tristão.  Mas cheguei a saber o nome da mãe dele? Deveria saber?  Fui atrás.  A mente da gente é estranha.  Associações às vezes são esdrúxulas.  A primeira coisa que me veio à mente, quando li o nome dessa senhora, foi: “Brancaflor, bonito nome, todo junto, quando poderia e deveria ser escrito separado.  Como o nome daquela mulher aqui do Rio de Janeiro, que mandou matar o marido, que tinha muitos filhos adotivos, mais de dez,  e que esteve nas manchetes da televisão aqui no Rio de Janeiro: Flordelis.” Vai entender a cabeça da gente.  Enfim o romance de Tristão e Isolda é uma lenda medieval, também do ciclo Arturiano. Isolda uma princesa da Irlanda. Para mim, esse romance e mais dois romances famosos, também fizeram parte do meu dia a dia, de outra forma: foram um conjunto de três gravuras do século XIX que decorava na minha casa, na Carolina do Norte, uma pequena parede na entrada de nossos aposentos, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta e Paulo e Virgínia: uma lenda medieval, um romance renascentista e um casal francês do final do século XVIII.   Essa trinca foi a leilão antes de nos mudarmos para o Rio de Janeiro.  Isso é outra história, curiosa, mas para outro momento. 

 

 

 

Tristão e Isolda, 1902

Edmund Blair Leighton (Inglaterra, 1852-1922)

Óleo sobre tela, 128 x 147 cm

Coleção Particular

 

 

Houve uma grande volta às lendas medievais nas artes do século XIX, principalmente na Inglaterra, iniciada com o grupo de poetas e pintores Pré-Rafaelitas em meados do século.  Eles exploraram bastante o passado folclórico e contos medievais.  Mais tarde, no final, do século XIX,  já por toda Europa, a pintura histórica abraçou temas românticos com ardor.  Mas esse também é um assunto para outras conversas, pontuações soltas, papo jogado fora, no final de um ano que se encerra.  Certamente voltarei a alguns desses temas. 

O que me levou a pensar em sincronicidade foi perceber e rememorar tantas histórias arturianas à minha volta, em tão pouco tempo.  Referências: dos presentes de Natal que dei, às minhas primeiras leituras no Estados Unidos, à menção de Tristão e Isolda no livro de Erpenbeck, às gravuras no recluso hall de entrada, tudo parece me manter nesse passeio literário circular.  Não estou conseguindo deixar a Idade Média de lado. O tema está no que leio e relembro. Ah, sim, esqueci de mencionar, um fac-símile da lenda de Tristão e Isolda, de uma publicação inglesa do século XVI,  ilustrada por xilogravuras, foi o primeiro presente que meu marido me deu.  Ele certamente conhecia meus interesses e soube me conquistar.

Boas leituras!