Tchick, de Wolfgang Herrndorf, montes de aventuras e grande humor

17 09 2011
Ilustração Ben Swift, in The Daily Mail, Inglaterra.

Na capa de trás de Tchick de Wolfgang Herrndorf, [Tordesilhas:2011] está impresso o comentário de Ijoma Mangold do Süddeutsche Zeitung, “Então está provado: dá para escrever histórias inteligentes e, ao mesmo tempo, muito engraçadas em alemão”.  Exatamente o que pensei ao terminar a leitura dessa deliciosa aventura de dois meninos de quatorze anos em férias, no verão de 2010.

Wolfgang Herrndorf consegue captar exatamente como adolescentes pensam e em que tipo de aventuras conseguem se meter, nessa idade em que não se acham mais crianças, mas ainda não conhecem bem o mundo.   Dá para entender porque este romance se tornou um best-seller na Alemanha, onde vendeu mais de 120.000 exemplares: é uma aventura pra lá de gostosa, que sabemos que vai acabar mal – na verdade o livro começa pela fim — de modo que sabemos desde o início que as aventuras desses dois meninos vão acabar na polícia; é narrada com um humor delicioso, contagiante e é repleto de personagens com boas qualidades, com boas intenções.  No final é uma história que nos dá grande fé nos seres humanos, na sociedade e no futuro.

Acompanhamos dois meninos que, depois de não terem sido convidados para a festa da gatíssima Tatjana, se encontram sozinhos.  Mike Klingenberg e Tchick, colegas de escola,  embarcam, então, numa série de aventuras, num carro “emprestado”, um velho e quase indestrutível Lada.  Partem à procura de Valáquia  [região sul da România], onde Tchick diz ter familiares.  Mas sem mapas e sem meios seguros de navegação, parece difícil chegarem lá.  É justamente o trajeto, a viagem, que se torna a própria aventura, e abre algumas janelas do mundo para ambos os adolescentes.  Uma amizade inesperada se desenvolve entre esses dois rapazes que até o início das férias de verão não conseguiam se ver como amigos.  Uma deliciosa série de aventuras, contadas com muito humor, sem pieguismos.

Wolfgang Herrndorf

Recomendo sem hesitação Tchick para jovens e adultos.  Qualquer leitor terá garantidas muitas horas de prazer e entretenimento.  E para os adultos esse texto  trará de volta a lembrança de como pensa um jovem adolescente.  Dois detalhes enriquecem esse volume: a excelente tradução de  Cláudia Abeling, e a dinâmica capa de Kiko Farkas e Adriano Guarnieri/ Máquina Estúdio.  Uma publicação esmerada que vale ouro!





Uma visão adolescente dos turistas, em Tchick, de Wolfgang Herrndorf

13 09 2011

Turistas, s/d

Charles Hawes ( EUA, 1909)

aquarela

www.charleshawes.org

Estou lendo Tchick, de Wolfgang Herrndorf, e me divertindo muito com o nosso adolescente narrador.  Perspicaz e intrépido ele tem observações muito boas e frequentemente hilárias.  Posto hoje uma passagem em que ele observa alguns turistas numa pequena cidade da Alemanha.  Ele está na companhia de seu amigo Tchick.  É verão e eles se aventuram por pequeninas estradas à procura do que der e vier…

A cada meia hora, um ônibus com turistas aparecia na praça do mercado.  Em algum lugar alto da cidade havia um pequeno castelo.  Tchick estava sentado de costas para o ponto de ônibus, mas eu ficava o tempo todo olhando para os aposentados que saíam aos borbotões do ônibus.  Pois eram exclusivamente aposentados.  Todos eles usavam roupas marrons ou beges e um chapeuzinho ridículo, e quando passavam pela gente, onde havia uma pequena subida, eles bufavam com se tivessem corrido uma maratona.

Eu ainda não conseguia me convencer de que algum dia eu mesmo seria um aposentado bege.  Mas todos os homens velhos que eu conhecia eram aposentados beges.  E todo as aposentadas eram assim também.  Todos beges.  Era incrivelmente difícil imaginar que essas mulheres velhas algum dia foram, necessariamente,  jovens.  Que tiveram a idade da Tatjana e que à noite se arrumavam e que freqüentavam salões de dança, onde é provável que tenham sido chamadas de belezinhas ou algo parecido, há cinqüenta ou cem anos.  Não todas, claro.  Algumas delas também deviam ser insípidas e feias já naquela época.  Mas também as insípidas e feias provavelmente tinham objetivos, elas com certeza fizeram planos para o futuro.  E as bem normais também tinham planos para o futuro, e era garantido que nesses planos não havia nada se tornarem aposentadas beges.  Quanto mais eu pensava sobre esses aposentados que desciam dos ônibus, mais me deprimia.  E o que mais me deprimia era pensar que entre essas aposentadas devia haver algumas que não tinham sido insípidas e chatas na juventude.  Que tinham sido bonitas, as mais bonitas do seu tempo, aquelas pelas quais todos tinham se apaixonado, e havia setenta anos, alguém sentado em sua torre de índio, ficou ansioso apenas vendo a luz do quarto delas se acender.  Essas garotas agora eram aposentadas beges também, mas não dava mais para distingui-las das outras aposentadas bege.  Todas tinham a mesma pele cinza, orelhas e narizes oleosos, e isso me deixava tão deprimido a ponto de eu quase passar mal.

Em: Tchick, de Wolfgang Herrndorf, tradução de Cláudia Abeling, São Paulo, Tordesilhas:2011, p. 110.





A medida do mundo, de Daniel Kehlmann

2 08 2011

Vista das cordilheiras e dos monumentos dos povos indígenas da América, Paris, 1810, Alexandre von Humboldt.

Férias são para se fazer o que não se faz no cotidiano, para alargar horizontes, experimentar novos caminhos.  Apesar de não ter tirado férias, formalmente, passei o mês de julho brincando fora da caixa.  Minhas pseudo-férias incluíram uma vida repleta de  exposições de arte, festival do cinema feminino, mesas-redondas literárias e científicas, concertos, visitas com amigos que há tempos não via.  Um julho delicioso,  cheio de atividades que me tiraram da rotina, alimentaram o descanso, aliviaram a tensão.  Foi assim que encontrei e acabei me deliciando com o romance de Daniel Kehlmann,  A medida do mundo, [Cia das Letras: 2007].

Talvez tenha sido sincronicidade ler esse romance alemão um dia depois de ter assistido ao arrebatador filme de Woody Allen, Meia-noite em Paris [2011].  O que une estas duas obras é justamente a visita que se faz a uma época passada [cada qual num século e em países diferentes], a um específico local que borbulha com novas idéias, teorias.  Em ambas as obras sentimos a eletricidade dos principais pensadores que se interconectam, trocam idéias, se referem uns aos outros e nos fazem desejar que tivéssemos sido contemporâneos de seus protagonistas: Kant, Daguerre, Goethe, entram e saem das páginas desse romance com a facilidade com que uma limusine leva Gil [Owen Wilson] das ruas de Paris contemporânea aos encontros com os mais famosos escritores e artistas radicados naquela cidade nas primeiras décadas do século XX.

A medida do mundo é um romance baseado nas biografias de dois dos maiores cientistas que por razões diferentes saem de suas zonas de conforto e medem o mundo:  Humboldt vem para a América do Sul e mede tudo o que vê, das montanhas às margens dos rios.  Sua procura é incessante.  Ambientada no Novo Mundo a narrativa assume característica de uma aventura exacerbada por um realismo fantástico.  Gauss, por outro lado, nunca saiu de seu torrão natal: mede o mundo através de equações matemáticas ancoradas nas estrelas e por indução.  Assim como a narrativa de Humboldt parece espelhar a aventura sul-americana, o estilo literário que envolve a vida de Gauss reflete sua vida mais precisamente dimensionada. Suas vidas aparecem em capítulos intercalados, com uma narrativa bem-humorada e cativante, não se tem em nenhum momento a sensação de estranheza, mesmo tendo o autor deliberadamente diferenciado a maneira de retratá-los.

Daniel Kehlmann

Daniel Kehlmann trata todo o texto com cativante ironia e humor, além de fazer com poucas e precisas pinceladas, um retrato da efervescência intelectual da época.  Acabamos percebendo que mentes brilhantes podem vir em qualquer formato. As vidas de Gauss e Humboldt são comparadas e contrastadas dando-nos uma visão generosa das diferentes maneiras de se atingir objetivos pessoais. Esse não é um livro em que descobrimos detalhes biográficos da vida de cada cientista: essa não é a proposta.  Temos sim, ao final do romance, uma percepção rica das dificuldades corriqueiras da época, fartamente adubadas pela extraordinária imaginação do autor que nos lembra de cheiros e sons; do desconforto das viagens em carruagens, das dores de noites dormidas em desconfortáveis colchões;  da arrogância da nobreza e de sua filantropia.  Tudo retratado com leveza e ironia.  Uma leitura deliciosa diferente do que se poderia esperar de um romance histórico, de uma biografia ou até mesmo de um livro sobre cientistas.  Invista nessa leitura, não se arrependerá.