Dr. Louis Martinet, 1826
Jean-Marie-Joseph Ingres (França, 1780-1967)
desenho a lápis sobre papel, 25 x 32 cm
National Gallery of Art, Washington DC
Dr. Louis Martinet, 1826
Jean-Marie-Joseph Ingres (França, 1780-1967)
desenho a lápis sobre papel, 25 x 32 cm
National Gallery of Art, Washington DC

DETALHE
Retrato de Mme Moitessier, 1857
Jean Auguste Dominique Ingres (França, 1780-1867)
Óleo sobre tela, 120 x 92 cm
National Gallery, Londres
Há pintores e obras de arte que crescem dentro de nós através dos anos. Jean Auguste Dominique Ingres é um dos pintores que cada vez que observo seu trabalho, mais ele me encanta. Poucos foram como ele capazes de transmitir a exuberância de uma joia ou a suavidade de um veludo. Detalhes de seus quadros são quase tão fascinantes quanto a obra inteira. Ainda que este broche de Mme Moitessier seja exemplar, com o brilho das pedras preciosas bem acentuado, não é o único aspecto que faz dessa obra uma peça que nos extasia. Por hoje ficamos observando essa riqueza de tons. Observemos o jogo do opaco com o brilhante no brocado da poltrona onde ela está sentada. Olhe só o delicado retratar do estampado de seu vestido e ao fazer isso quase conseguimos ouvir o farfalhar da seda que acompanhava o movimento da bela senhora toda vez que passava de um cômodo ao outro de sua residência. Uma beleza mesmo. Não é a toa que foi um dos pintores favoritos de Napoleão Bonaparte.

As fotografias de Lalla Essaydi andam falando comigo. São fotos cuidadas, abordando de maneira delicada, artística, dentro de tradições tanto da cultura ocidental como da região do Magreb, a condição feminina. Elas têm me perseguido como fantasmas poderosos de vidas passadas.
Comecei com a foto acima, porque ela para mim representa uma completa junção de referências. Primeiro veio a imagem da Grande Odalisca, de Ingres, que vemos abaixo. A tela, da coleção do Museu do Louvre, foi pintada em 1814, para a irmã mais nova de Napoleão Bonaparte, Caroline Bonaparte, Rainha Consorte de Nápoles.
A grande odalisca, 1814
Jean-Auguste-Dominique Ingres (França, 1780-1967)
óleo sobre tela, 91 x 162 cm
LOUVRE
Há aceno óbvio à obra de Ingres que representa justamente a influência francesa na região do Magreb, iniciada no final do século XVIII como parte da Grand Tour das classes mais abastadas da Europa e acentuadas depois das façanhas napoleônicas nas primeiras décadas do século XIX, assim como local para descobertas do exótico tão finamente cultivado pelas sociedades europeias da época.
Ainda que A grande odalisca de Ingres não seja uma obra abertamente sexual, a ideia de uma mulher em um harém, disponível, mesmo com o olhar frio e distante como nesta tela, atiçava a imaginação dos observadores do século XIX, aumentando a curiosidade sensual sobre as possibilidades aventurescas facultativas no Norte da África. A mulher nua, em uma alcova, rodeada por cortinas de seda bordadas, joias de ouro no braço, lenço bordado a ouro no turbã, cabelos adornados por cabuchon de pérolas e pedra preciosa, com o exótico abano de plumas de pavão e cabo de marfim, narguilé em laca vermelha, anunciando o uso do tabaco ou ópio, apoiado em caixa de joias e ainda o cinto com grande fivela coberta de pérolas e pedras preciosas, displicentemente largado por sobre lençóis de linho, tudo isso, esse luxo e a sugestão de encontros fáceis se insinuavam marcando os discretos prazeres de um harém, exploravam a aventura sensorial do observador, desabrochando numa sedutora expectativa de deleite.





Quando comparamos a obra de Lalla Essaydi com a de Ingres, lado a lado, temos finalmente a certeza inabalável da citação visual feita pela fotógrafa marroquina.
Basta olharmos para as posições das cabeças, os turbãs, deixando aparecer, com descuido, um pouco dos cabelos na testa e frontes; os braços, os de apoio à esquerda assim como os que delineiam languidamente as linhas do corpo da mulher no harém, são igualmente paralelos. Os pés nas mesmas posições traem as culturas que representam. Enquanto a obra de Ingres mostra uma mulher com pele lisa, branca sem manchas, como porcelana, até mesmo nos pés, a fotografia de Essaydi exibe os pés com solas cobertas por henna como é de uso típico das mulheres no Magreb, para proteção e bençãos. Ambas as obras também sugerem o aprisionamento inescapável deste lugar, dessa alcova, onde não há espaço para fuga; onde ambas mulheres. colocadas do lado oposto ao espectador, se acham na vitrine, digamos assim, de encontro a uma parede fechada, sem abertura, sem ar para respirar. Na obra de Ingres há um fundo escuro, com algumas nuances tonais. Será madeira, será azulejo, lajota, pedra? Não sabemos. No horizonte da mulher do harém de Essaydi temos um desenho na parede cega. Parecem tijolos, chapisco ou papelão corrugado. De qualquer maneira, ela assim como sua companheira francesa de mais de um século de idade, tampouco tem escapatória.
Enquanto a Grande Odalisca trabalha na imaginação sensual do espectador, a jovem no harém marroquino não apresenta qualquer traço de sedução, de prazer carnal. Muito pelo contrário, ela olha, quase com desconfiança, para quem a observa e seu corpo se mescla com os lençóis, coberto por palavras que poderia usar e com elas distinguir sua existência. Em escrita cursiva as mensagens, o próprio discurso feminino, ultrapassam os limites das cobertas. Elas tomam conta do corpo da mulher, espalhando-se como os males liberados por Pandora, sem esperança de contenção. Elas transformam as costas, os braços, o rosto da odalisca moderna na mesma substância da coberta, insinuando que este corpo é mais um dos objetos presentes no harém.
Mas as associações culturais não param por aí. O corpo da mulher na obra marroquina lembrou-me também do documentário que Ayaan Hirsi Ali e seu sócio o cineasta Theo Van Gogh produziram que levou ao assassinato de Theo e à perseguição de Ayaan Hirsi Ali, escritora do livro Infiel. Neste documentário (que pode ser visto no YouTube) os corpos filmados, também aparecem cobertos de dizeres, que refletem em tudo aquilo que as mulheres pensam e calam, por não terem permissão de se manifestar. São submetidas à vida que levam sem o direito a objetarem.
Portanto, é natural que a belíssima obra de Essaydi tenha me movido e a todos que tiveram oportunidade de observá-la. Não é só uma obra de grande finesse no tratamento da fotografia e uma de revolta quieta, de denúncia, como só uma mulher que cresceu, viveu ou recebeu essa cultura de herança poderia fazer. Vale a pena considerar a obra de Lalla Essaydi. Procure por ela na internet. Você ficará encantado com a beleza e a força de suas imagens.
NOTA:
Este texto é um trabalho em andamento…. parte de futura publicação — Notas da história da arte: observações aleatórias das salas de aula
©Ladyce West, Rio de Janeiro, 2024
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Ladyce West é uma historiadora da arte. Em sua vida acadêmica, antes de abrir uma galeria de arte e antiquário, dedicou-se ao estudo do surrealismo belga. Seu livro: Humor, Wit and Irony in the Works of Belgian Surrealists, baseado em tese da Universidade de Maryland, está em processo de tradução para o português.

Cupido e Psiquê
Jean-Auguste-Dominique Ingres (França, 1780–1867)
Carvão com giz branco em destaques sobre papel, 19 x 26 cm