Manhãs de Coimbra

15 03 2025
Coimbra vista do Mondego.

 

 

Ontem a cerração na praia de Copacabana estava densa.  Pouco depois das seis da manhã, não se podia ver nem os sinais de trânsito no meio das pistas quase desertas de carros. Difícil atravessar o asfalto para chegar à calçada junto à areia. Não é muito comum esse tipo de neblina espessa adentrando o calçadão.  Muitas vezes vemos névoa deitada em alto-mar, embaçando o horizonte. Não fica por muito tempo. Logo o sol tropical parece expulsar toda umidade dessas nuvens baixinhas. Mas cobrindo parte da areia, antes do quebra-mar, é incomum. Minha caminhada foi acompanhada pelo som dos longos apitos de embarcações invisíveis, escondidas pelo ruço da manhã, ao saírem da baía de Guanabara em direção sul.  Justamente próximo ao Forte de Copacabana, onde começo minha caminhada diária, os navios aumentavam a frequência e a duração dos apitos.  Esse melancólico som que, para os que moram próximo à praia, é familiar, pareceu mais solitário. Ouvir tão perto o lamento de  naves fantasmas deu ao início da manhã um ar nostálgico.  E os atletas, que se exercitavam na areia ao sol nascer, tornaram-se seres ilusórios, fantasmas de si mesmos a menos de dez metros de distância.  Já não se sabia quem eram. Tudo parecia irreal nessa manhã.

Sou parcial a neblinas. Gosto dessas cortinas de nuvens que insistem em nos rodear em alguns lugares.  Hoje, quando voltei para casa lembrei-me de Coimbra, e dos dois anos em que lá morei. Uma das memórias encantadoras que tenho da cidade são suas manhãs nebulosas. Morávamos próximo à Praça da República, numa ladeira que desembocava na rua Almeida Garrett.  O que não é ladeira nessa cidade? Não fosse pelas casas à frente de nossa janela, de onde, empoleirados no lado mais alto da subida, víamos as telhas vermelhas de seus telhados e mais adiante os telhados de outras construções, talvez tivéssemos podido observar, ainda que de longe, a série de edifícios de dois e três andares que perfilam, unidos uns aos outros, em sentinela, um dos lados da praça.  Como se estivéssemos numa plataforma, numa vigia de viúva, essa peça arquitetônica das casas à beira-mar no nordeste dos Estados Unidos, podíamos ver à nossa frente um vasto horizonte, um mar de telhados, algumas copas de árvores em descida íngreme e ao fundo, elevando-se solitária, a colina central da cidade, em cujo topo, parcialmente descobertas, como se tímidas fossem, reinavam as construções centenárias dos prédios da universidade e a torre do relógio.

No entanto, essa vista esplendorosa de nossa janela só podia ser apreciada, na maioria dos dias do ano, depois das dez da manhã.  Porque antes disso, densa neblina se acomodava à noite,  aninhada por entre os altos e baixos da cidade, entrando pelos jardins, tomando as bordas urbanas, fazendo moradia nos ermos da cidade.  Não podíamos ver nada além de uma barreira branca acinzentada, algodão doce gigantesco, que insistia em se dissipar lentamente, sugado aos poucos pelos raios de sol matinais. Por causa dessa névoa espessa, cobertor orvalhado, que penetrava cada esquina, beco, ruela pitoresca, tínhamos a impressão de que os primeiros sons da manhã também se sobressaíam, assim como no meu passeio na praia de Copacabana ouvi, com mais atenção, o lamento dos apitos dos navios em alto mar.  Em Coimbra, na nossa rua, percebíamos da janela do quarto, com a cidade ainda em silêncio às oito horas da manhã, os passos de pedestres ressoando alto no asfalto; pareciam passar por dentro de nossa habitação. Os numerosos gatos de rua, miavam com mais sofrer, esperando pelo sol.  Queriam voltar a esquentar-se encarapitados nos lugares mais altos dos telhados. Alimentados por moradores atenciosos, esses bichanos quase selvagens, ocupavam também a esquina à nossa frente, passando horas e horas no calorzinho aconchegante das telhas de barro.  A vida em Coimbra, para nós, que vínhamos de cidade grande, era mais indolente, com inúmeros momentos a serem degustados lentamente. Sempre tive para mim, que a névoa da manhã ritmava o dia e deixava que acordássemos vagarosamente, para depois também juntarmos o som dos nossos passos no caminho, aos dos demais habitantes: nosso destino, no entanto, era um café na praça e a leitura do jornal matutino. Esses anos em que moramos lá, ainda têm para mim um quê de mágicos e as manhãs enevoadas vestem de encantamento nostálgico essa estadia.

 

©Ladyce West, Rio de Janeiro, março de 2025





Vestígios de comunidade judaica em Coimbra, c. 1370

10 07 2015

MArc Chagall, jewish wedding 1910Noite, 1910

[O casamento judeu]

Marc Chagall (Bielorússia/França, 1887-1985)

óleo sobre tela

 

Há certas notícias que não têm hora para serem publicadas.  Esta é uma delas.  Não sei porque não cheguei a saber dessa descoberta há um ano e meio, quando foi publicada, logo após o Natal de 2013.  Mas não importa, vejam que interessante: um bombeiro, ao fazer um conserto em uma casa na cidade de Coimbra descobriu uma estrutura no subsolo da residência, que depois de examinada pelo arqueólogo Jorge Alarcão, parece ter sido uma mikvá, datando do século XIV.   Há uma boa possibilidade desse ser um dos mais antigos banhos rituais judaicos descobertos na Europa. E mais raro ainda por se destinar a banhos rituais femininos.

978 - inf 43.537 - RVL_21.13xDescoberta em Coimbra, foto O Público.

Sabe-se que a comunidade judaica já existia em Coimbra antes mesmo da existência de Portugal.  E que havia uma parte da cidade dedicada à velha judiaria, que foi desativada durante o reinado de D. Fernando I, por volta de 1370. É por isso que se acredita que os banhos descobertos não podem ser posteriores a essa data.

Fonte: O Público