O carnaval carioca, texto de Gastão Cruls

18 02 2012

Carruagens perfiladas na Batalha de Confete do Carnaval de 1907,  organizada pelo jornal Gazeta de Notícias, na  Avenida Beira-Mar, Rio de Janeiro.  Foto sem indicação de autor, Revista Kósmos, fevereiro de 1907.

Carnaval

Gastão Cruls

Embora o entrudo seja da mais remota tradição portuguesa, o carnaval com mascarada de rosto encoberto ou fantasias grotescas ou vistosas, só o tivemos aqui em meados do século passado. [século XIX] O entrudo teria sido trazido dos Açores e outras ilhas, onde essa brincadeira era de hábito, e certamente fora presenciada pelos navegantes que demandavam às Índias.  Apesar de tudo, ainda que tolerado, não era abertamente permitido, e uma vez ou outra lá apareciam alvarás e avisos, condenando-o. Não obstante, praticou-se sempre, a baldes d’água e esguichos, com limões de cera e bisnagas de estanho, e até os nossos imperadores dele gostavam muito.  D. Pedro II, na meninice, jogou-o bastante na Quinta, entre as irmãs e pessoas amigas.

Contra o carnaval, porém, com máscaras e disfarces, muito mais rigorosas eram as autoridades. Ordenações frequentes culminavam castigos severos e multas pesadas aos infratores das suas disposições. Em 1685, o governador Duarte Teixeira Chaves publicava um bando contra os que fossem encontrados emascarados e pela qual se ameaçavam os brancos de degredo na nova colônia do Sacramento e os pretos e mulatos de surra pública de chicote.

Carnaval na Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco no centro da cidade do Rio de Janeiro, 1907.  Sem autoria, em: Kósmos, revista artística, científica e literária, Ano IV, número 2, Fevereiro de 1907, Rio de Janeiro.

Mas o desenvolvimento da metrópole e os hábitos europeus para aqui transplantados no Oitocentos, foram amainando, pouco a pouco, os dispositivos draconianos a esse respeito.   Assim, em 1846, por iniciativa da atriz Clara del Mastro, pode realizar-se, no Teatro S. Januário,  o primeiro baile à fantasia. Sucederam-se outros, como aqueles promovidos pela colônia francesa e por algumas sociedades privadas. Houve também um que inaugurou o Teatro Provisório, em 1852.  Incitando essas festas, alguns anos depois o Alcazar Lyric instituía um valioso prêmio para a modista que fizesse a fantasia mais bonita e original.  E nesse gênero de confecções muito se distinguiu a francesa a Mme Nioby, estabelecida à rua do Ouvidor.

Mais ou menos pelo mesmo tempo, apareceram os primeiros préstitos carnavalescos. Sociedades já existentes, mas que até ali se divertiam de portas pra dentro, resolveram, nos dias consagrados a Momo, trazer para a rua a sua alegria, organizando passeatas com guarda de honra e carros enfeitados. Iniciou-as a que se chamava Sumidades Carnavalescas, que, aliás, reunia a melhor gente. Em 1855, a convite de José de Alencar, Pinheiro Guimarães, Manuel Antônio de Almeida, e outros que dela participavam, D. Pedro II desceu especialmente de S. Cristóvão para assistir-lhe a passagem, das janelas do paço da cidade.  O triunfo alcançado pelas sumidades fomentou novas ambições e sucessivamente foram surgindo e também morrendo, a União Veneziana, os Zuavos, o Congresso das Damas e a Boêmia, precursores das nossas Democráticos, Fenianos e Tenentes do Diabo.

Ilustração, Revista Kosmos, 1907, sem indicação de autor.

Edouard Manet, o grande pintor francês, mas então um modesto rapazinho que em curso de marinhagem em 1849, a bordo do navio escola Hâvre e Guadaloupe, passou algumas semanas entre nós, em carta à mãe, transmite as suas impressões do carnaval no Rio.  Fala nas brasileiras que se postavam à porta ou à janela de suas casas para atirarem nos transeuntes “bombas de cera de todas cores, cheias d’água, e que aqui chamam limons”.  Ele mesmo tomou parte na brincadeira.  Vítima de vários ataques, viu-se na obrigação de revidá-los e, ao fim da tarde, também distribuía limões para um lado e outro. Participou ainda de um baile à fantasia, que lhe lembrou os da Ópera, de Paris.

O carnaval, festa tão de gosto do carioca e durante a qual tanto se expandia a alma coletiva da cidade – falo no passado porque, de uns anos para cá, por uma série de motivos, é patente o seu declínio, pelo menos como manifestação popular –, o carnaval dizemos nós, também sofre os caprichos da moda.  Das fantasia que fizeram época e que pululavam nas nossas ruas durante os três dias de folia, hoje ninguém mais fala.  É verdade que algumas foram condenadas pela polícia.  Outras, porém, morreram de morte natural.  Se temos os diabinhos, os burros-doutores, o Pai-João, o Velho, o Morcego, a Morte, o Princês, o Mandarim e o Rajá.  Os dominós, já não tinham razão de ser, depois que foi vedado o uso das máscaras.  Índios também rarearam, pelo menos aqueles de apito à boca e penas de espanador à cintura, que faziam letras na frente dos cordões. Em compensação a cidade encheu-se de apaches e gigoletes, pierrôs e colombinas, de malandros e de baianas, e muito homem se meteu em saias e muita mulher enfiou calça.

Foto: www.muraldenoticias.com.br

Desapareceram os cri-cris e as línguas-de-sogra substituídos pelo reco-reco e a cuíca. O jorro frouxo da bisnaga de cheiro recuou diante do jato fino do lança-perfume, — aquele lança-perfume que no dizer rebuscado de Alberto Faria, o das Aérides, é “etérea língua de Áspide Aromal, a por subtâneos arrepios no colo de sedutoras Cleópatras ou de castas Lindóias”.

O Zé-Pereira já não azucrina mais ou ouvidos de ninguém.  Abafaram-no as marchinhas e os sambas.  Segundo Vieira Fazenda, que ainda o conheceu, quem primeiro trouxe para a rua, em grande algazarra, o zabumba dos bombos e o rufo dos tambores, foi um sapateiro português, que tinha oficina na rua S. José e era um folião de marca.

O nome Zé-Pereira explicar-se-ia de dois modos: ou porque o bombo assim designassem em Portugal; ou porque houvessem alterado de Nogueira para Pereira um dos nomes do inventor.  O homem chamava-se José Nogueira de Azevedo.

Ângelo Agostini, O entrudo, rua do Ouvidor, 1884 [DETALHE]

Até os préstitos das sociedades carnavalescas também muito perderam do seu prestígio. Onde aquelas tardes triunfais de terça-feira gorda em que o sonido ainda apagado dos clarins ou um vago clarão de fogos de bengala ao longe anunciavam a entrada na rua do Ouvidor ou na rua Uruguaiana da fantasmagoria ofuscante que era a passagem dos Democráticos ou dos Tenentes? Sumiram-se, por completo, os carros de crítica.  Provavelmente porque governos perfeitos demais, já não dão motivo a censuras.  Até os carros alegóricos perderam aquele fascínio antigo, quando aos olhos do populacho eram como páramos encantados e jardins edênicos. Templos gregos e pagodes chineses. Divindades olímpicas e sereias do reino de Anfitrite.  Árvore vergando ao peso de mulheres quase nuas.  Rosas que se abriam para mostrar borboletas de peito farto e coxas roliças.  Ninfas bem afrescata que fugiam ao abraço de algum fauno. Bacantes de carnadura provocante equilibradas na borda de uma taça…  Para todas essas criaturas, tiradas quase sempre ao meretrício barato, esse dia do desfile era um dia de glória, o dia da consagração definitiva.  E havia razão para isto.  Ao Zé-povinho que se extasiava à beira das calçadas, dando-lhes palmas em troca dos beijos que elas distribuíam para um lado e outro, todas se afigurariam beldades alucinantes ou huris de um paraíso inaccessível.

Não suponha o leitor que, elogiando esses préstitos de antanho, lhes emprestemos qualquer qualidade artística ou mera manifestação de bom gosto. Longe disso.  Oxalá pudéssemos ter tido aqui alguns carnavais da Florença dos Médicis, quando o próprio Lourenço o Magnífico trabalhava o verso das canções populares e artistas como Andrea del Sarto e Cronaca se encarregavam de planejar os arcos triunfais e modelar a máscara dos foliões. A passeata das nossas Sociedades perdeu muito do seu esplendor fictício – mas ainda assim esplendor – porque outra é a cidade de ruas largas e claras, à noite sob a fulguração dos anúncios a gás neon, e outra é a mentalidade de sua população, agora de olhos permanentemente abertos para o grande mundo, através das visões cinematográficas.

Em: A aparência do Rio de Janeiro, Gastão Cruls, Rio de Janeiro, José Olympio: 1949 [Coleção Documentos Brasileiros], volume 2.pp. 405-410.





Tradições, Mário Pederneiras, texto integral, Revista Kósmos, 1907

8 03 2011
Carnaval na Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco no centro da cidade do Rio de Janeiro, 1907.  Sem autoria, em: Kósmos, revista artística, científica e literária, Ano IV, número 2, Fevereiro de 1907, Rio de Janeiro. [Apesar da autoria não estar registrada na revista, o leitor Felipe P. Rissato, ajudou na identiicação, a foto é de Augusto Malta].

Tradições

Mário Pederneiras

—  Vem daí, meu velho carioca impenitente, vamos dar a perna por esta linda Avenida, na súcia barulhenta dessa desafogada multidão que se diverte;  vem daí.

Ampara-te à suave elegância do meu braço feminino, junta-te à minha alegre companhia de mulher galante, e vamos apreciar o Carnaval nas Avenidas novas e nas novas Ruas largas.  Talvez, temas comprometedoras  apreciações à tua consideração de homem sério e  ponderado, talvez…  Mas, com todos os diabos, não estamos no Carnaval?  Na época da loucura clássica, do disfarce, do riso e da bela pândega?  Vem daí …  Demais, através do lindo disfarce deste pequeno “loup” de seda branca e desta provocadora fantasia guizalhante de “clowness”,  ninguém reconhecerá a incorrigível companheira das tuas antigas troças, nos teus áureos tempos de moço e folgazão.  Vem daí, que te vou mostrar coisas novas e civilizadas, nunca vistas por ti, nunca imaginadas por aqueles que, como tu, emperraram na ferrugem das Tradições e das Saudades incompreensíveis.

Daqui deste ponto extremo, junto do Mar, ao lado da tradição encantadora do teu lindo Passeio Público, sob a esquisita exclamação invertida deste obelisco, rola o teu olhar, eternamente saudoso, tristonhamente contemplativo, por toda a larga extensão de toda a linda Avenida e repara, repara bem, na delícia dessa perspectiva.

Que coisa linda já viste, que este povo em festa, feliz e despreocupado, percorrendo esta encantadora rua larga e iluminada?

O ar não sufoca; circula livre e fartamente de Mar a Mar, de extremo a extremo, e a multidão não se comprime, não se esmaga, não se fere, como nos detestáveis apertos da tua celebrada rua do Ouvidor, quente da luz asfixiante daqueles celebérrimos arcos de gás, embaciada da poeira imunda da rua e dos confetes.

Era assim, no teu tempo, o Carnaval?  Não, não era.  Tinha sempre a nota desagradável dos apertos, a tristeza lúgubre das iluminações incompletas e o incômodo detestável das ruas estreitas.

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Batalha de Confete na Avenida Beira-Mar, no Rio de Janeiro, em 1907.  Foto sem autoria, em: Kósmos, revista artística, científica e literária, Ano IV, número 2, Fevereiro de 1907, Rio de Janeiro.

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Dos confins do Distrito, dos extremos pitorescos da Gávea, dos limites rurais de Inhaúma, todo uma festiva massa de povo, abalava para os suadores inevitáveis das nossas velhas ruas.

Lembras-te, meu velho carioca, da tristeza tormentosa desse espetáculo?  Era um povo inteiro que se martirizava, que se machucava, que se feria, que brigava para se divertir, apertado e sufocado entre as altas paredes rijas do nosso detestável casario.

E do meio da voz estrídula dos cornetins carnavalescos, dos falsetes dos mascarados, quantas e quantas vezes, partiam gritos de dor, guinchos nervosos de faniquitos femininos, trovões de vozerio paterno em ralho à troça garota dos mal educados…

E hoje?  Repara; é toda uma enorme Multidão festiva que se estende desafogadamente pelo vasto caminho da Avenida, que se espraia pelas ruas largas, sem apertos, sem incômodos, sem suor.

Tudo mudou, tudo.  Na rajada destruidora da nossa Civilização rápida, lá se foram os velhos hábitos do teu imundo Rio aldeão e primitivo.  Há roupas claras, cassas leves e transparentes, escondendo carnações alarmantes.  Os “Panamás” triunfam e os leves chapéus de palha ganharam, vitoriosamente, todo o terreno.

As manhãs não vestem mais a seda custosa dos grandes dias e os papás no comando supremo das legiões familiares, não têm mais a temer a insolência das vaias, o ataque agressivo às “jacas” e à integridade moral de sua venerável figura de funcionário.

Nem uma sobrecasaca, repara, nem uma cartola.  Ficaram ambas no descanso feliz das moradias, prontas apenas para as solenidades das missas fúnebres e dos enterros dos considerados e dos medalhões; e em breve, tu mesmo, hás de ver, sem espanto, sem mágoa, que esses dois elementos supremos da estética burguesa dos vestuários, passarão para o rol das coisas fantásticas, e, talvez, quem sabe, tu mesmo, à noite, no descanso caseiro, a acalentar teus filhos, hás de acrescentar às lendas encantadoras da família, as histórias espantosas de homens que andavam, em pleno Sol, sob o mais lindo Céu azul, “envoltos na tristeza venerável de uma sobrecasaca preta, cobertos pelo cilindro lustroso de uma cartola espelhante”.  E os teus pequenos hão de arregalar os olhos, trêmulos de medo, e de espanto, diante daquele horror, e daquele… tormento.

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E como tudo muda, meu velho carioca, também mudou o Carnaval e a própria alegria de hoje, nestes três dias loucos, é mais franca, mais sonora, mais sadia.

Bem sei.  Não temos hoje o luzimento fantástico daqueles préstitos custosos das nossas Sociedades carnavalescas.  Não temos, bem sei; mas temos a alegria no Povo e o bom humor de toda uma População desafogada e feliz.  Sentes a falta daquele luxo oriental, daquele desperdício fabuloso de lantejoulas e fogos de bengala, daquela luxuriosa exposição de Carne, da luxúria tentadora dos “maillots”, das largas pinceladas de bistre daquelas olheiras profundas, e da profusa orgia dos carmins.   Tens razão, tens razão.  O Carnaval mudou, mas tu ganhaste, na comodidade, no bom calçamento e na boa iluminação.  Aqui estamos, a palestrar, vai para uma hora, comodamente, sem encontrões e sem apertos, sem suor e sem rolos.  Pois, não é tão bom?  No íntimo, na intimidade do teu velho sentimento, das tuas recordações arcaicas, eu percebo, meu velho, a tua grande e imorredoura das apoteoses frenéticas de aplausos, com que tu, e os teus camaradas d’antanho, saudavam os “Democráticos”, os “Fenianos”, os “Tenentes”, a “Peruana”, a “Phrynéa”, afogados num delírio de um entusiasmo vermelho, bufando de calor e pó, grupados, apertadamente, às portas estreitas do “Castelões” e do “Londres”, ou às esquinas tortuosas de Gonçalves Dias e Uruguaiana.

Deves também sentir a falta incompreensível do teu saudoso Zé Pereira, atordoando os ares com aquele incansável  zabumbar alegre e forte.  O Zé Pereira era a sinfonia do Carnaval.  Punha formigueiros às pernas trêfegas dos cariocas, remexia-lhes o corpo em desengonço e bamboleios e acendia-lhes no olhar a chama rubra do prazer.

Meses antes, tu já o ouvias, a maior parte das vezes, pelos morros em passeatas de ensaio, e o rufo miúdo daquelas caixas, o bater compassado e seco daqueles bombos, era o sinal da alegria que vinha, da loucura que se aproximava, da florescência vermelha das festas clássicas de Momo.

Hoje, tens a te consolar a infindável série dos nossos melancólicos  “cordões”, de todas as cores, de todos os nomes.

Sim.  Deves achá-los tristes, com a eterna melopéia da suas toadas, a primitividade das suas danças, a Musa desengonçada dos seus Versos e a incompreensível fantasia dos seus vestuários.

Pois, meu caro, são os dominadores do Carnaval e o torneio dos Poetas.

Contenta-te com a alegria do Povo, que é mais franca, mais sadia do que nos teus chorados tempos que lá vão.

Vês?  Há máscaras pelas ruas, tétricos e aborrecidos, como se estivessem a cumprir a mais solene das obrigações.  Mas isso sempre foi assim; o máscara avulso foi sempre em todos os tempos, a expressão mais exata da insipidez e do desalento.

Bem sei, que a figura rubra dos travessos “diabinhos” antigos, tinha mais graça, mais vida, do que a palhaçada grotesca desses “clowns” de agora, repisando pilhérias de circo de lona.

E os teus “velhos”, os mestres inigualáveis da agilidade das letras, com seus “carões” enormes fantasticamente enrugados e feios, o luxo das suas vestes de veludo e lantejoulas e o seu longo bastão de papel dourado?

E o “pai João”, imundamente ridículo, pintado a piche, falando no arreveso da linguagem africana, agarrado à vassoura tradicional.

São tipos que passaram para o domínio da Tradição, para o esbatimento saudoso das boas recordações.

Em compensação, tu hoje tens…, tu tens… tens o… tens a Avenida, o fon-fon dos automóveis, a luz elétrica, o bom calçamento, as ruas largas, enfim, todo este suntuoso Carnaval que estamos apreciando.

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Vem daí.  Faz-se tarde e ambos devemos estar cansados .  Vem daí, que por hoje já nos divertimos regaladamente e eu, com franqueza, sinto-me cheia de Sono e de insipidez.

E aflautando a voz, a linda companheira de troças e loucuras do meu tempo de moço e folgazão, perguntou, num falsete desembidamente carnavalesco e cansado:  “Você me conhece?  Eu sou a Folia”.

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A Cidade começava a repousar, exausta das loucuras do dia.

De longe, por aquela hora calada de noite alta, vinha o rumor sonolento e sentimental do reco-reco de um “cordão” em retardo.

— Que coisa lúgubre!  — E abalei para casa.

2 – 907

[Texto integral, mas com grafia atualizada para facilitar a leitura.  A ilustração inicial, seguia o texto de Mário Pederneiras sem, no entanto,  estar ligada ao texto.  Foto em preto branco, sem autoria.  As outras fotos são do mesmo número da Revista Kósmos, mas pertencem a outros ensaios fotográficos, que tampouco aludem a um fotógrafo O espaçamento irregular dos parágrafos está de acordo com o texto original.]

Em:  Kósmos, revista artística, científica e literária, Ano IV, número 2, Fevereiro de 1907, Rio de Janeiro.

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Mário Veloso Paranhos Pederneiras (Rio de Janeiro, 1867 — Rio de Janeiro, 1915), conhecido com Mário Pederneiras, escritor, ensaista, poeta e teatrólogo.  Sua obra sempre chegada às situações da vida diária, o colocam próximo dos cronistas de época, ainda que seu verso tenha proximidade do simbolismo.  Estreou na imprensa por volta de 1878, como colaborador  do jornal (estudantil)  O Imparcial, do Grêmio Literário Artur de Oliveira, no Rio de Janeiro.  Foi fundador, com Gonzaga Duque e Lima Campos, diretor e redator das revistas:  Rio Revista, Galáxia, Mercúrio e Fon-Fon.

Obras:

Agonias, poesia, 1900

Rondas noturnas, 1901

Histórias do meu Casal, 1906

Ao léu do sonho e à mercê da vida, 1912

Outono, 1914 (póstuma)





Álbum de família: Carnaval de 1936 e de 1940

8 03 2011

Carnaval 1936 — Três irmãs marinheiras… A mais velha e mais alta tem 10 anos.

Hoje coloco a título de curiosidade, para  história dos costumes e para a história dos Carnavais cariocas, duas fotos de família.  Nelas estão minha mãe e suas irmãs.  Aproveito para comemorar com elas, o DIA INTERNACIONAL DAS MULHERES.  Todas três mereceriam serem lembradas com muito carinho nesta data.  Foram guerreiras, cada qual à sua maneira.  Posso mesmo dizer, foram minhas 3 mães.  Uma saudação a elas, às minhas amigas e a todas as outras mulheres…

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Carnaval de 1940, de volta com as três irmãs: duas baianas e uma cigana.

NOTA:  Uma lembrança especial para: Christiane, Matheus,  Anna Paula, Lucinha, Ricardo-Celso,  Claudine, Heitor Gessner, Rubens, Caroline, Thaís, Marcelo, Eliane e ainda para  Lúcia, Andréa, Gisela, Júlia, Cecília, Cristina, Suzana, Vera Regina, Fabiana, Daniela, Tânia, Marina e todos os outros membros da família.





O Carnaval no Rio, de Américo Fluminense, texto integral, Revista KÓSMOS, 1907

21 02 2011

O entrudo no Rio de Janeiro, 1823

Jean-Baptiste Debret ( França 1768-1848)

Aquarela sobre papel

Museu da Chácara do Céu

Rio de Janeiro

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O carnaval no Rio

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(NOTAS LIGEIRAS PARA UMA CRÔNICA)

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O Carnaval dos nossos antepassados era o entrudo.

Já nos tempos coloniais jogavam-no desembaraçadamente.  As máscaras eram tidas como prejudiciais à ordem pública, serviam para ciladas, para os levantes e crimes.   Em 1720, quando em Minas Gerais, o bando do mestre do campo Pascoal Guimarães desceu, alta noite, do Morro Velho sobre a moradia do prepotente ouvidor Martinho Vieira, os que o guiavam vinham mascarados.  Dizem também que foi um mascarado quem assassinou o prisioneiro Almirante Du Clerc, em 1710, na casa que o governador desta cidade lhe dera por prisão na rua Direita…  Outros crimes misteriosos são atribuídos a embuçados com máscaras.  E certo é que a máscara foi tida como traiçoeira e criminosa, por quanto, em diversas épocas os governadores desta cidade mandavam fazer públicos vários alvarás proibindo o seu uso.

Por essas proibições o entrudo constituiu-se o mais apreciável folguedo carnavalesco.

Havia grande prazer nesse jogo brutal.  Em algumas ruas grupos entrudescos agarravam os transeuntes a pulso, violentado-os, metiam-nos dentro de uma tina e, por sobre carga, toda a família do folgação despejava sobre a vítima jarros e barris d’água.   Visitar alguém nesses três dias era uma temeridade.  Só se animava a fazê-lo os que achavam graça no banho à força…ou não tinham escravos para abastecer a sua casa do precioso líquido.  Assim o banho chegava a ser providencial.

O processo mais delicado dessa terrível pagodeira consistia no arremesso de limões de cera cheios d’água simples ou perfumada com essência de benjoim e canela, e jatos de seringas de irrigação.  O fabrico desses limões tornou0se uma pequena indústria que ocupava por longos meses as famílias cariocas.  Durante dezembro e janeiro muitas casas no Rio de Janeiro viviam em verdadeira azáfama, a fabricar esses projéteis, mas nem sempre com a cautela necessária à integridade física do próximo, porque alguns limões excediam a espessura de seus invólucros o quanto deveriam ter de bem aferido para não esborrachar narizes nem amachucar o rosto das vítimas.  As seringas menos mal faziam contrapunham, porém, maior banho.  Colaborando com a seringa apareciam frequentemente o moringue, o jarro, o alguidar e o barril.

A água não bastava, porque se era limpa poderia, quando muito, provocar bronquites, plurises, pneumonias, o que era preciso, o que era necessário, era ridicularizar a vítima, fazê-la irrisória, escorraçá-la com a vaia, e o obrigá-la a arrastar o seu ridículo por onde passasse.

Assim, como banho cobriam-na de farinha de trigo ou polvilho, algumas vezes de pós de sapato ou vermelhão.  Este hábito esteve muito em voga entre a gente do povo, mormente os negros.  A estampa de Debret que reproduzimos adiante, é um quadro de costumes.  Aí está a pagodeira em todas as suas minúcias.  Aí estão a seringa em ação, a tina preparada, os limões para a batalha e o polvilho posto  ao serviço da folia. Nada lhe falta, nem mesmo a assuada dos que assistiam o ataque à crioula de anágua curta e cabeção rendado.

A introdução dos bailes carnavalescos populares sem corrigir logo este estúpido folguedo, veio indiretamente modificá-lo.  Foi em 1847 que eles estavam em maior voga.  Um hotel que aqui existiu, com o título de Hotel di Itália, dava-os como alguma animação e a Sociedade Constante Polka aumentava-lhes o brilho com a assistência dos seus associados.    Ao mesmo tempo o Tívoli, que era um estabelecimento de recreio, na chácara n. 9 do Campo d’Aclamação (Campo de Sant’Anna, em nossos dias Praça da República) engalanava-se para a alegria das quatro noites de Carnaval.  Em 1849 o Tívoli transformou-se, sob o título de Paraíso, num aprazível botequim campestre com salas de jogos e pavilhão para danças, então os seus bailes tornaram-se famosos, tal o preparo, o brilhantismo, a concorrência que tiveram.  O Teatro S. Francisco e o Salão da Floresta também deram bailes devendo-se notar que por causa perdida pela negligência das crônicas da época,  o empresário do Salão da Floresta arrepiou carreira publicando na quarta-feira de cinzas daquele ano, solene protesto de não mais dar bailes carnavalescos….  A partir desse tempo os bailes públicos carnavalescos entraram nos nossos costumes e com eles veio o atrativo das fantasias e o prazer da máscara em tal desenvolvimento, que em 1851, foram organizadas duas sociedades carnavalescas: o Congresso das Sumidades e a União Veneziana.

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Ilustração original do texto, revista Kosmos, 1907, sem indicação de autor.

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O aparecimento das sociedades carnavalescas não foi o bastante para por cobro ao entrudo brutal,  grande parte da população sentia prazer em se molhar e entregar-se delirantemente às suas violências, das quais, uma vez por outra, resultavam conflitos mais ou menos graves; outra parte, porém, propendia para a alegria do Carnaval mascarado e fantasiada e essa queixava-se da dificuldade em sair à rua formar bandos, organizar passeatas por causa dos vexames, contrariedades e prejuízos a que ficaria exposta com o desbragamento do entrudo.

Fizeram, então uma persistente campanha contra o entrudo.  A polícia empregou energia, perseguindo os entusiastas desse divertimento.  Os primeiros resultados dessa perseguição apareceram em 1854, cujo carnaval correu animadíssimo, vendo-se pelas ruazinhas cariocas carruagens com famílias fantasiadas, muitos máscaras avulsos e alguns montando cavalos azaejados.  Dois anos depois, em 1856, o chefe de Polícia Dr. Alexandre Joaquim de Sequeira conseguia reprimir o entrudo.  Datam desse tempo as vitórias do Carnaval do Rio.  O Congresso das Sumidades Carnavalescas obtinha grande sucesso com as suas passeatas, que ficaram memoráveis.  Em 58, a União Veneziana, estimulada pela vitória das Sumidades, organizou um suntuoso préstito, em que figuravam Felipe I de Castela, o duque de Buille, um Montmoroncy, o conde de Charnay,  capitão das guardas de Maria Antonieta, o marquês de Salures , o conde d’Arcos, o cavalheiro Ruy Lopes de Villa Lobos… em suma,  numeroso conjunto de reis, príncipes, duques, marqueses, condes, barões, cavalheiros e pajens.  Apesar da mistura das idades históricas e dos personagens, a marcha da União Veneziana assumiu a importância de um acontecimento social.  A população prestou-lhe ovações atirando-lhe flores e confeitos, saudando-a com palmas e bravos. Durante muitos anos essa passeata foi narrada e comentada e os nossos bisavós arregalando os olhos, suspendendo a pitada, murmuravam ainda cheios de assombro: Que luxo! que dinheirão!

Apareceram por esse tempo, os Zuavos, com o título: banda marcial da Sociedade Euterpe, e, segundo cremos, o celebérrimo Zé Pereira, o tremendo rompe-rasga do charivari pagodeiro.

O infatigável cronista de nosso passado, o sr. Vieira Fazenda, em um dos seus interessantes folhentins da Notícia, o de 15 de fevereiro de 1904, conta-nos o aparecimento desse barulhento e alegre estúrdio carnavalesco, mas esqueceu-se de nos dizer o ano em que isso foi.  É de crer que fosse por essa ocasião ou mais um ano depois ou menos um ano antes, que o incansável Zé Pereira zabumbou pelas ruazitas lôbregas da populosa sebastianópolis.  A data precisa escapou à pena, senão à memória do narrador dos nossos costumes e modos d’antanho;  em compensação tivemos o nome do seu primeiro zabumbador, que o cronista lega à posteridade.

Chamava-se José Nóbrega de Azevedo Paredes, tinha a profissão de sapateiro e era de origem portuguesa.  Foi o José Nóbrega quem, por uma tarde de nostalgias, numa segunda-feira de carnaval na Corte do império do Brasil, sob o reinado do sr. D. Pedro II, o formidável Zé P´reira das folias minhotas.   E teve êxito completo, foi um sucesso!

Toda a suja cidadezinha,  esconsa e fedorenta, estremeceu ao ruído ritmado da estrondosa pandorga; e se o Nóbrega tinha pulso capaz de vencer um touro, melhor teve-o para zabumbar galhardamente no couro curtido dum boi.  O sapateiro da rua São José, sem calcular o resultado da sua pândega nem prever a celebridade que o esperava, fez mais rápida escola com alegre barulhada dos bombos do que com a perícia da sua sovela.

De então em diante os Zé Pereiras surgiram às dúzias, aos centos.  As sociedades agarraram-se-lhe com fervor e toda a doidice do Carnaval e animou-se com esse retumbante bater de tambores e bombos.   No sábado do Momo, após o badalar das 10 horas do Aragão de S. Francisco de Paula, a barulhada começava.  Parecia que  um sopro de loucura passara sobre a cidade.  Em diversas ruas o Zé Pereira estrugia.  Ajuntavam-lhe buzinas, cornetins, campainhas.  Era o seu domínio.  Mas esse útil ao Carnaval porque distraiu o povo das brutalidades do entrudo.  Começou, então, o Carnaval das ruas.  Os princezes passeavam a sua capa de belbutina e os seus calções de cetim; ao arremedo de falsificados pajens medievais traziam cabeleiras de cachos frisados, e pregavam obreias pequeninas e multicores no rosto.

Fazia-se espírito.  Dominós impiedosos troçavam e intrigavam.  Alguns tornaram-se notáveis, e se os designava pela cor, porque guardavam rigoroso incógnito.

Dessa alegria, dessa animação surgiu a Boêmia, que, dizia França Júnior num folhetim da Gazeta de Notícias, de 7 de março de 1878, “marcou uma era memorável no Carnaval.  Foi o império do Chicard do espírito”.

Essa sociedade era composta dos mais elegante leões do tempo e foi ela que introduziu aqui o vestuário chicard, de gavarni, dando à Madame Niobey, costureira parisiense domiciliada no Rio, uma larga e longa celebridade por ter sido a confeccionadora da maior parte dessas fantasias.

Com a Boêmia, vieram os Estudantes da  Heidelberg, a Internacional, o Clube X, e outras mas já sem o caráter familiar dos primeiros, exceção do Clube X que afinal, teve de desistir de suas pretensões e ceder ao carnaval licencioso que Paris criava.

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Ilustração original do texto, revista Kosmos, 1907, sem indicação do autor.

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Apareceram também os diabinhos vermelhos, os velhos, cabeçudos, de enormes casacas com pães da rala por botões e báculos; o ás-de-copas, em camisas de mulher e trazendo por capacete um vaso,  que não é de sala…   E, pouco a pouco, os estalos fizeram a sua entrada; ao princípio alegremente atirados, dando uma nota ruidosa mas inofensiva aos folguedos; depois ultrapassando os limites d’alegria para entrar nos impulsos da perversidade, queimando roupas, chamuscando braços e colos.  E, sorrateiramente, sob maneiras de elegância e galanteios, surgiu a bisnaga, discreta, esguichando finamente, à guisa de um pulverizador, produtos das retortas de Lubin e Pinaud, conceituados perfumistas da época.

Não obstante os males provocados pelos estalos e a vulgarização das bisnagas, as sociedades folgavam e divertiam o povo.  O Carnaval do Rio de Janeiro ganhara foros de grande festa.  Arredadas, como foram, as famílias, os préstitos carnavalescos ostentavam um luxo que o maillot fazia deslumbrante.

Os bailes nos teatros iam perdendo a sua animação de outrora, porque as sociedades deixaram de os frequentar para se precaverem contra os contínuos conflitos que neles se davam, conflitos em que um pobre francês de nome Cosenave perdeu a vida.

Todos os anos surgiam novos clubes.  Eram os Fenianos, os Acadêmicos do Koenigcher, os Inimitáveis,  a Paulicéia Vagabunda, os Estudantes de Salamanca, que cantavam à guitarra peteneras e malaguenhas,  e grupos mais ou menos numerosos e efêmeros, como os das Sabichonas, Fragata Fraca, Corveta Terrível, Parasitas de Casacas, aos quais se reuniam clubes musicais, na sua maioria franceses…

Desapareciam uns, surgiam outros.

O Congresso das Sumidades desorganizou-se, em 63 já não existia; dez anos depois pretenderam reorganizá-lo com o título de Novas Sumidades; mas a sua existência não logrou duração.  Os Zuavos (Isto é, a Euterpe) passaram a ser Tenentes do Diabo, os Democráticos formaram-se com dissidentes de outras sociedades.

À proporção que se formavam novas sociedades, que seus préstitos atingiam a um luxo extraordinário, para cujas alegorias eram disputadas a ouro as mais bonitas alcasarinas, as mais moças e vistosas mundanas e os espirituosos máscaras da rua cediam lugar aos capoeiras vestidos de diabo, trazendo as caudas de rabo de velame, aos princezes armados para o que desse e viesse de porta-voz colossal, e mortes e macacos que escondiam nos cintos as navalhas assassinas.  E com isso o entrudo ressurgia.  As delicadas bisnagas, de fino jato de pulverizadores,  passaram a bisnagões que jorravam esguichos de repuxos; os limões não só de cera, também de borracha re-entravam na cena.   As mulheres, que faziam parte dos préstitos das sociedades, viam-se obrigadas a se munirem de chicotinhos de montaria para castigar os que as molhavam brutalmente.

Demais, parece que o entrudo, apesar da sua bruteza, das moléstias que provocava e dos conflitos que despertava, afinava-se perfeitamente com a nossa educação, porque muita gente boa tinha-lhe queda.  O Sr. Vieira Fazenda conta-nos que o Sr. D. Pedro II, quando em Petrópolis, não passava incólume sob a saraivada dos limões e esguichos das bisnagas.  Sua majestade achava-lhes graça e ao retornar a palácio, molhadinho como qualquer mortal, ria-se a bom rir dos desrespeitos das lindas veranistas petropolitanas.  Um jornalista houve, e dos mais célebres em nosso tempo, que comprava limões de cheiro aos milheiros.  E a pequenina redação do seu jornal, na rua do Ouvidor, transformava-se num verdadeiro arsenal, num depósito bélico de entrudo.  Dizem que, d’uma feita, andando a polícia a reprimir o entrudo, o alegre e gordo jornalista pediu ao delegado Macedo de Aguiar que subisse à sala da redação para intimar o numeroso grupo de damas e senhoritas a abandonar o divertimento.  Era um ardil.  O delegado subiu e mal punha o pé na sala uma legião de moças acometia-o de tal modo que, para sair, teve necessidade de mandar o seu ordenança buscar outras roupas em sua casa.

Contudo o Carnaval resistia, brilhava com a riqueza dos seus préstitos, atraía à cidade uma grande massa da população.

O Club X exibia uma caravana oriental montada em camelos, que mandara vir da Ásia, propositalmente para esse fim; os Tenentes, Fenianos, Inimitáveis e Democráticos, rivalizavam em riqueza de vestuários e espírito nas críticas, porque as sociedades tendiam ao aproveitamento jocoso dos fatos, mais salientes do ano.  Apareceram os Carbonários, Pingas, Filantes, Cínicos, Femmes Parisiennes, Badanas, Regresso do Rocambole, Tagarelas do Diabo ou Velhos Esponjas e, antes de todos os clubes de curta duração, os Cucumbis, que faziam suas danças selvagens nas ruas.

A pouco e pouco as sociedades mais dinheirosas desfaleciam, liquidavam seus últimos recursos.  Em 1878 só estavam em campo os Fenianos, Tenentes e Democráticos; os demais, mesmo o novo Club X, sucumbiu.  E aquelas três entravam num grave período de rivalidades que teve por desfecho uma tremenda luta, porfiada a cacete e pedradas, em um terça-feira, no momento em que Fenianos e Tenentes se cruzaram na rua do Hospício, esquina dos Ourives ou Quitanda.

Daí por diante, ou melhor dizendo, durante dois a três anos foi o entrudo quem fez o carnaval.

A seringa volveu a participar ativamente dos folguedos, não já a seringa de irrigação, mas a de borracha, destinada a outros usos; os limões atingiram as proporções disformes, deixaram de ser limões, transformaram-se em bananas, laranjas, abacaxis, jacas, melancias, pelo tamanho e pela forma: quem os levasse pela cara apanhava um banho completo e uma tapona de ver estrelas…entre chuva; as bisnagas pesavam litros e pareciam mangueiras de bombeiros, o polvilho e o pó de sapato entraram em atividade.

Não satisfeitos com isso os entrudistas voltaram às bombas de jardim e aos baldes d’água, e a perversidade, que é quem tira partido dos desregramentos, entrou a encher bisnagas com água suja e líquidos corrosivos e a fabricar limões que rivalizavam com cathaos na dureza e poder ofensivo. Para coroamento dessa obra de feios costumes e relaxamento policial não faltou a bordoada.  Quem descesse à cidade para assistir o carnaval, deveria dar graças a Deus quando voltasse sem chapéu e com as roupas em frangalhos, porque muitos voltavam com os olhos queimados, a cabeça em pontos falsos e o braço numa tipóia!…

Enquanto assim corria o Carnaval, os Cucumbis, como o Zé-Pereira n’outro tempo, mudavam o aspecto dos folguedos, comunicando a sua selvageria aos instintos rudes do povo.  Dir-se-ia uma afinidade.  Deles nasciam os cordões, esses horríveis, fétidos, bárbaros cordões, que dão ao nosso Carnaval de hoje algo de boçal e selvagem com a sua imutável melopéia de adufes e pandeiros e a babugem desbocada de suas cantilenas.  Quanto o Zé-Pereira, apesar de sua pobreza de ritmo, tem de ruidosamente alegre, esses tantãs e bufe-bufe dos cordões possuem de bruto, atroador, irritante e estúpido.

Já não há alegria nem espírito, há berreiro de taba, de mistura com uivos de africanos em samba.  E para completar a insipidez de um carnaval de cabindas e botocudos o lança-perfume vai abrindo caminho ao entrudo como outrora a bisnaga, pequenina, discreta e perfumada.

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[Texto integral, mas com grafia atualizada para facilitar a leitura.  As duas ilustrações em preto branco são as ilustrações originais do texto que também tinha a reprodução de O Entrudo de Debret, em preto e branco.  Troquei-a para uma reprodução colorida.]

Em:  Kósmos, revista artística, científica e literária, Ano IV, número 2, Fevereiro de 1907, Rio de Janeiro.

NOTA:

Américo Fluminense foi um dos pseudônimos do escritor  Gonzaga Duque.

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Retrato de Gonzaga Duque [pseudônimo:  Américo Fluminense], 1908

Eliseu Visconti ( Brasil, 1866-1944)

óleo sobre tela, 52 x 91 cm

Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro

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Luiz Gonzaga Duque Estrada (RJ 1863 — RJ, 1911) foi um jornalista, crítico de arte, pintor e escritor.   Atuou na imprensa carioca escrevendo em jornais e revistas importantes da cidade: O Paiz, A Semana, Diário de Notícias, Folha Popular, Kósmos e Fonfon, entre outros.

Obras:

A Arte Brasileira,  1888

Mocidade Morta, 1899

Graves e frívolos,  1910

Horto de Máguas, contos, 1914 – póstuma

Contemporâneos, s/d