Minotauro, de Benjamin Tammuz, resenha

24 07 2015

 

labyrinthminatoaur2Teseu e a viagem a Creta: o Labirinto e o Minotauro, c. 1500-1525

[DETALHE]

Mestre dos Cassoni Campana

(pintor francês ou italiano, ativo em Florença)

óleo sobre painel de madeira, 69 x 155 cm

Museu Petit Palais, Avignon, França

 

 

Minotauro de Benjamin Tammuz não chega a ser um romance. São quatro histórias levemente interconectadas. A última, que leva o nome de Alexander Abramov é a mais completa, mais detalhada e interessante. E as que a antecedem revelam aspectos da trama nela retratada. Só aí, no final, é que encontramos o personagem que reconhecemos eventualmente como pertencendo à primeira história e conectado com as outras duas anteriores. Enfim, parece um romance inacabado, com um espaço oco no meio.

Esse livro me foi apresentado com dois perfis: uma história de amor e uma história de espionagem. Mas não é uma história de amor, nem uma história de espionagem. Em lugar do amor, temos uma obsessão, uma condição psicológica que tenta, e nesse caso é bem sucedida, captar uma presa, possuí-la e por ela ser possuído. O próprio autor nos avisa dos complexos sentimentos explorados por ele, quando declara que “a vítima apega-se ao seu assassino e se apaixona por ele” [95].

benjamin tammuz minotauro

Alexander Abramov, o Minotauro, era filho do judeu Abram Alexandrovich que partiu da Ucrânia, “sólido e saudável como um touro jovem” [115] e da alemã não-judia, Ingeborg Von Hase. Muito rico, o casal Alexandrovich se estabelece em terras que no futuro formarão parte do Estado de Israel. Como Minotauro, Abramov se encontrará prisioneiro de um labirinto musical na sua imaginação [146]. Ele imagina que poderá ser salvo de sua vida agonizante pela mão de uma donzela, como ele observou na gravura que decorava o seu quarto de criança [125]. E essa donzela, ele decide, no dia de seu 41º aniversário é Téa, uma jovem adolescente que não desconfia do destino que Abramov moldará para ela.

Téa é vítima de uma obsessão que cerceará sua vida cotidiana e seu destino. Testemunhamos o controle obcecado de Abramov sobre os movimentos de Téa. Aprendemos também a maneira como ele consegue interferir na vida da jovem, eliminando sistematicamente qualquer competição que possa ter de outros homens. Seu comportamento é tão fora da norma quanto havia sido o comportamento de sua mãe que sofria de um profundo desequilíbrio emocional, razão de sua morte prematura.

 

Benjamin-Tammuz1Benjamin Tammuz

 

A espionagem, a que esse romance alude tem duas facetas: é a última profissão de Abramov, e é também o modo pelo qual ele resolve viver seu grande amor, o amor de uma pessoa doentia, insana. Existe uma expressão em inglês que melhor descreve essa ação, “to stalk someone”, como um lobo caça uma lebre, ação, é bom lembrar, considerada crime nos Estados Unidos. Talvez seja por isso que a primeira das quatro partes deste romance, titulada Agente Secreto, tenha sido de leitura fascinante, mas desconfortável. Abramov faz uma escolha aleatória ao focar o seu amor. A presa, Téa, uma moça que ele vê por acaso em um ônibus, mais de vinte anos mais nova, será daí em diante, fruto de sua obsessão. Cartas e mais cartas anônimas estabelecem contato entre os dois. Ela inicialmente curiosa, ingênua, lisonjeada responde inocentemente ao interlocutor, sem perceber que entreabria assim a porta para o assédio. Daí por diante ela não terá paz. Envolve-se emocionalmente, e será incapaz de se esquivar do futuro que Abramov projeta para os dois. É uma luta desequilibrada, perversa, saturniana, antropófaga.

O desfecho é inevitável e anunciado. Paralelos com tragédias gregas são inevitáveis, ainda mais porque elas são citadas através do texto. Mas no final esse foi um romance que não se resolveu completamente, que não passou de quatro excelentes partes sem grande contextualização que as envolvesse.





Amigos e inimigos, texto de Benjamin Tammuz

23 07 2015

 

 

MarktJaffaGustavBauernfeind1887Porto de Jafa, 1888

Gustav Bauernfeind (Alemanha, 1848-1904)

óleo sobre tela, 148 x 281 cm

 

 

“Aqueles árabes que eu, na prática, maltrato, porque caíram nas minhas mãos algemados e derrotados, quem são eles se não aqueles árabes que foram trabalhadores no pátio de nossa casa, aqueles mesmos árabes com os quais persegui lebres; aqueles árabes cujas mães trabalhadoras me seguravam secretamente sob a sombra do galpão e cobriam o meu rosto de beijos; as primeiras mulheres de quem ouvi, quando estava com cinco anos, que eu era bonito, que queriam me raptar e me levar para casa delas. E agora eu coloco os filhos delas sentados sob uma lâmpada elétrica e, em troca das alegrias da infância que conheci com elas e do amor de suas mães, os retribuo com medos mortais.

Não estou pedindo desculpa. Eles nos odeiam mortalmente e eu faço exatamente o que é possível e é preciso fazer. Mas isso não altera o fato de que, pela amizade de um árabe, eu daria dez amigos norte-americanos, ingleses ou franceses. Com um homem europeu eu posso tomar uísque, fazer negócios e chegar a um acordo de que o Estado de Israel é na prática uma extensão da Europa no Oriente. Mas com um árabe posso voltar a rolar na poeira no meio da plantação, respirar o cheiro de esterco queimado de bodes, colher e mascar segurelha, correr em direção ao horizonte e encontrar ali a minha infância e talvez encontrar também um sentido na vida — que agora quase não tem propósito — no local em que se encontra também a colina dos dias da minha infância.”

 

Em: Minotauro, Benjamin Tammuz, tradução de Nancy Rozenchan, Rio de Janeiro, Rádio Londres: 2015, pp, 179-180.