Sonhos, Capa da Revista Saturday Evening Post, 15 de agosto de1959, ilustração de Constantin Alajalov.
Muitas vezes, embebido
em cismas tenho sonhado
que a vida é um sonho comprido
que a gente sonha acordado!
(Ferreira Gullar)
Muitas vezes, embebido
em cismas tenho sonhado
que a vida é um sonho comprido
que a gente sonha acordado!
(Ferreira Gullar)
Galvão Queiroz
Mamãe lavava a gilete
que o Papai vinha de usar,
na pia junto ao toalete,
para, depois, ir guardar.
Chacuca que observava
tudo o que a mamãe fazia,
muito pensativo olhava
a água jorrando na pia.
De repente diz: Mãezinha,
quando eu crescer, vou usar,
como o Pai, essa enxadinha
pra meu queixo capinar?
Em: Almanaque Tiquinho, 1955, página 61
A leitura
Bernard Charoy (França, 1931-2024)
óleo sobre tela, 74 x 61cm
Meu grupo de leitura, Ao Pé da Letra, escolheu para leitura longa — aquele livro que é votado no final de novembro para ser debatido no encontro de janeiro — Água fresca para as flores, de Valérie Perrin, traduzido por Carolina Selvatici [Intrínseca:2022]. Grande sucesso mundial. Para mim, não funcionou muito bem. Raramente resenho alguma coisa de que não gosto. Talvez tenha havido falta de empatia pela história do jeito que foi contada. No entanto, faço uma exceção hoje para algumas observações que se aplicam aqui e que podem ser levadas a outros casos.
A história se passa no finalzinho dos anos 90 e na primeira década do século XXI, na França. Ela se concentra na vida cotidiana de Violette Toussaint, uma mulher que na abertura do livro beira os cinquenta anos. Ela é zeladora do cemitério numa pequena cidade francesa. Teve infância difícil, órfã, mal sabe compreender um texto escrito. Jovem, casa-se com Philippe Toussaint. Ele é um conquistador de mulheres, não gosta de trabalhar e vem de uma família com alguma aspiração social. Violette não se importa de trabalhar e manter esse bon-vivant em sua vida. Para seguir as peripécias deste casal, a autora entrelaça a vida deles com a de outro casal mais velho que conhecemos através de um diário deixado para trás, depois que ela morre. Esse diário traz, por sua vez, outras tantas informações, relatos de aventuras, decisões acertadas ou não da pessoa que escreve, que são desnecessárias para a trama. Além disso, conhecemos, fora deste diário, na narrativa principal diversos outros personagens tangenciais que nada têm a ver com o eixo da trama. A narrativa não linear é usada para introduzir pormenores da vida destes coadjuvantes e contribui para inserir incerteza ao leitor na ordem dos acontecimentos. Há um terceiro personagem importante: o cemitério. Este é um jardim, calmo, cuidado pela protagonista, lugar de reflexões dos visitantes e dela, que serve de contraponto ao caos das vidas na cidade, fora dos portões que o resguardam. É um lugar mágico que também tem alguns personagens invulgares além dos onze gatos que o habitam.
Há através dessas páginas também o escancarado desejo de prover o leitor com frases de efeito, passando por poéticas, na maioria inconsequentes, mas que aparentam profundidade. Muitas delas dão nome aos capítulos do livro, mas podem estar também distribuídas através do texto. A mais popular delas, de acordo com a Amazon, até o dia de hoje, 1370 pessoas, marcaram a seguinte: “Temos que aprender a oferecer nossa ausência àqueles que não entenderam a importância da nossa presença.” E, segundo lugar, com 1062 pessoas ressaltando no texto: “Ninguém nunca diz que podemos morrer de tantas vezes que nos sentimos chegar ao nosso limite.” Ou como as que marquei que iniciam capítulos: “O tempo aniquila a vida. O tempo aniquila a morte.“; “Uma lembrança nunca morre, apenas adormece.” Elas me lembraram frases feitas que encontramos em postagens das redes sociais como guias do bem viver e que muitas vezes, passam por poesia.
Há tempos imagino como seria bom termos editores, à moda antiga, ao estilo de Robert Gottlieb ou conhecidos por darem forma, interferindo no texto, sugerindo mudanças para escritores que ficaram famosos. Gottlieb foi editor de Joseph Heller, John Le Carré; enquanto Maxwell Perkins ficou famoso por sugerir mudanças em mais de um livro de Scott Fitzgerald, trabalhando também com Ernest Hemingway. Outros editores, contribuindo proativamente nos textos, tiveram sucesso em transformar alguns escritores em início de carreira, em clássicos. Com o aumento de pessoas escrevendo e a diminuição de editoras publicando desconhecidos, tendência mundial hoje, há mais escritores autopublicando aqui e no resto do mundo. Com isso surgiu a profissão do ‘leitor crítico’ que, por uma quantia previamente estipulada, procura melhorar os textos, mostrando falhas na coerência ou plausibilidade, na estrutura ou demais problemas. Mas seus conselhos, sempre bons, se forem profissionais competentes, não têm a força daqueles que investidos monetariamente nas obras, querem o sucesso do que publicam. Água fresca para as flores poderia ter-se beneficiado de um bom editor à moda antiga. Com uma escrita verborrágica, suas 480 páginas poderiam ser reduzidas a um pouco mais da metade. Por que? Porque há muita informação desnecessária. Se alguém sai de férias, por exemplo, somos expostos à lista de todos os itens colocados nas malas de viagem; se acompanhamos o dia a dia no cemitério, somos expostos a aulas de jardinagem que não têm qualquer importância para a trama. Tudo isso para quê? Realismo? Ambientação? Para mim, perda de tempo.
Água fresca para as flores parece ter sido escrito para a categoria jovem adulto. Foi um grande sucesso na Europa, e pelo que consegui perceber por minhas companheiras no grupo, um livro agradável, de que gostaram, ainda que longo. Nem todas essas leitoras dariam a nota baixa [duas estrelas de cinco] que dei. Sei que é um livro popular. Afinal ganhou dois prêmios na França: Maison de la Presse, 2018 (um prêmio dedicado a jovens autores) e no ano seguinte, 2019, ganhou o Les Livres de Poche Reader’s Prize, que é dado pelos leitores. Então agradou muito. Se você está querendo simplesmente passar o tempo, investir numa leitura inconsequente mas agradável, esse livro deve estar na medida. Mas se você gostaria de uma leitura mais complexa, inesquecível, este não é o seu livro.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.
Fausto Guedes Teixeira
Negro o cabelo, a fronte iluminada,
O nariz curvo, a boca pequenina,
Nos olhos escuríssimos cravada
Uma estrela no fundo da retina.
Nas faces uma rosa desmaiada
E outra rosa nos lábios purpurina,
Seus pequeninos pés os duma fada
E o seu corpo um corpinho de menina.
Todos os traços cheios de expressão,
Nas mãos um fogo estranho que lhas beija,
Porque eu lhe pus nas mãos o coração.
Eis o esboço rápido daquela
Que, sempre que na vida alguém a veja,
Nunca mais vê ninguém senão a ela!
Quando há pedras nos caminhos,
não fujo rumo aos atalhos,
sou daqueles passarinhos
que não temem espantalhos.
(Ney Damasceno)
O velho violonista, 1903-04
Pablo Picasso (Espanha, 1881-1973)
óleo sobre tela
The Art Institute of Chicago
Em: Água fresca para as flores, Valérie Perrin, Rio de Janeiro, Intrínseca: 2022, p. 60
Leitura matutina, 2010
Roberto Ploeg (Holanda,Brasil, 1955)
óleo sobre tela
Cecília Meireles
Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.
Em: Cânticos, Cecília Meireles, São Paulo, Moderna: 1981
O canal do YouTube Leitura com Chocolate, elegeu À meia voz como o melhor livro de poesias lido em 2024. Muitíssimo obrigada!
O conselho vem dos juízes do Booker Prize de 2024, que recebi na newsletter do Booker. Todos são escritores e tiveram um ano dedicado à leitura de outros escritores para votar nos melhores do ano. A tradução é minha, e informal
Aconselho você encontrar alguém que leia com você, um amigo. Falar sobre livros é uma atividade que faz a leitura uma parte mais natural do dia a dia. Aquelas perguntas: até onde você chegou, com o livro tal? Que mais você vai ler, depois deste? É uma estratégia perfeita para ler mais e mais. E, leve um livro onde quer que você vá. Você encontrará momentos escondidos em que você poderá ler.
Uma coisa que ajuda é manter disciplina na leitura, tratando a leitura como um trabalho a ser feito em horas específicas e dar prioridade à ela. Mas devo dizer, que sei que estou diante de um vencedor em potencial quando encontro um livro que não posso deixar de lado. Houve alguns que acabei colocando apoiados à minha frente enquanto eu lavava pratos ou enquanto estava na Stair-Master, ou que me fizeram perder meus horários diversas vezes. Estou louca para contar para as pessoas quais foram esses livros. Quando um livro tem esse efeito, não é nunca uma guerra arranjar um tempo para ler, é uma luta organizar todas as outras coisas à volta daquela leitura. Qualquer um que goste de ler saberá a que me refiro.
Sempre defendi a ideia de leitura vagarosa e sempre. Não acho que vivemos num mundo mais atarefado do que as pessoas do passado, mas vivemos num momento com muitas outras distrações. Sempre digo a meus alunos que no lugar de ir para a internet ou abrir o telefone nos primeiros minutos da manhã, nesse mesmo período, eles podem ler por 15 ou 20 minutos de Guerra e Paz. Se fizerem isso ai fim de 12 semanas eles podem acabar de ler o livro inteiro. Para leitores que queiram aumentar o tempo de leitura em suas vidas, talvez pudessem arranjar um canto de leitura onde telas, de todo tipo (telefones, tablets e computadores) sejam proibidos.
Leitura e concentração andam cada vez mais difíceis. Li um listinha a respeito. Dica um, coloque seu telefone em outro aposento, e troque o rolar das telas por um livro enquanto come, usa o transporte público ou quando seu amigo não aparece para um encontro. Nadamos num mar de palavras, hoje, então eu também recomendo voltar-se para os clássicos — uma voz de outro tempo pode ser mais eficiente do que a verborreia contemporânea. Mas principalmente, lembre-se do telefone.
Acho que aderir a um horário para a leitura é a melhor maneira de planejar a leitura de muitos livros. No meu caso, gosto de ler entre 5 e 9 da manhã, quando tenho a mente clara, antes de começar meu dia verdadeiramente. É importante se aproximar de cada livro, página por página até que você se encontre incapaz de deixá-lo de lado. Um ótimo livro força o leitor a continuar lendo até o fim.