Um detalhe: Ingres

4 06 2025

DETALHE

Retrato de Mme Moitessier, 1857

Jean Auguste Dominique Ingres (França, 1780-1867)

Óleo sobre tela, 120 x 92 cm

National Gallery, Londres

 

 

Há pintores e obras de arte que crescem dentro de nós através dos anos.  Jean Auguste Dominique Ingres é um dos pintores que cada vez que observo seu trabalho, mais ele me encanta.  Poucos foram como ele capazes de transmitir a exuberância de uma joia ou a suavidade de um veludo.  Detalhes de seus quadros são quase tão fascinantes quanto a obra inteira.  Ainda que este broche de Mme Moitessier seja exemplar, com o brilho das pedras preciosas bem acentuado, não é o único aspecto que faz dessa obra uma peça que nos extasia.  Por hoje ficamos observando essa riqueza de tons. Observemos o jogo do opaco com o brilhante no brocado da poltrona onde ela está sentada. Olhe só o delicado retratar do estampado de seu vestido e ao fazer isso quase conseguimos ouvir o farfalhar da seda que acompanhava o movimento da bela senhora toda vez que passava de um cômodo ao outro de sua residência. Uma beleza mesmo.  Não é a toa que foi um dos pintores favoritos de Napoleão Bonaparte. 

 

 

 





Um grande português, conto de Fernando Pessoa

4 06 2025
Ilustração anônima do século XIX.

Perdi recentemente cinquenta reais de uma velha maneira, num conto do vigário.  Como o engodo foi no quarteirão em que moro, a cores e viva voz, cheguei ao meu edifício comentando com o porteiro chefe que havia sido lesada por um bom vendedor.  Ele é muito bom, competente, morando no Rio de Janeiro há mais de 25 anos, vindo da Paraíba.  No entanto, a expressão ‘conto do vigário ele desconhecia.  Expliquei. Mas com a explicação, história perde muito da graça. Minha postura estava entre a pessoa que ri de si mesma e a vergonha de considerando-me tão ‘experiente’ que jamais cairia numa bobagem tão óbvia. 

Em casa, procurei a origem da expressão ‘conto do vigário’. Há muitas.  Muitas mesmo.  Minha pesquisa me deixou com uma única certeza a expressão já estava em uso, no Brasil, no inicio do século XIX. Mas aparentemente já estava em existência em Portugal. Nessa aventura literária, conheci o conto de Fernando Pessoa, Um grande português. Eu não conhecia nenhum conto do poeta português. Continuo o considerando um excelente poeta, entre os maiores da nossa língua. Nesse conto Pessoa nos dá outra possibilidade para a expressão.  Aqui está para seu deleite.

 

Um grande português

 

Fernando Pessoa

 

Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.

Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa.

Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar.

O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.». «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.

Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos, negociantes de gado como ele, a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis.

No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem.

Houve então a troca de outro olhar.

O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O Vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho.

Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo,disse, pois queria as cousas todas certas. E ditou o recibo — um recibo de bêbado, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de
fulano, e «estando nós a jantar» (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbado. . .), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.

Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira. . . E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar. Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora  inocente, estivesse perdido.

Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário, «nem eu estava tão bêbado que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça, foi mandado em paz.

O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem. Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que
o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade — nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax.

 

— X —

(1926)





Imagem de leitura: Françoise Collandre

4 06 2025

Intrigante

Françoise Collandre (França, 1939)

óleo sobre tela