Leituras de 2022: Herança, de Miguel Bonnefoy, resenha

3 02 2022

Mulher descansada, 2009

Lole Ferrada Sullivan (Chile, 1962)

 

Cheguei ao livro Herança, de Miguel Bonnefoy (tradução de Arnaldo Bloch) com boas expectativas.  Recebeu o Prix des Librairies, em 2021, na França, que já premiara autores que vim a admirar.  Francês, conectado com a América Latina, terra de nascimento de seus pais, e já tendo dois livros premiados, Miguel Bonnefoy parece a voz certa para para abordar cem anos de história de uma família francesa, imigrante para o Chile, como a sinopse relata.  Enredo promissor, que começa e finda na França, nos traz uma variante das histórias de imigrantes. Estamos acostumados a saber daqueles que se estabelecem na França vindos de outras culturas;  pouco se retrata o francês que saiu para novas terras ou antigas colônias.

Miguel Bonnefoy conta as aventuras e valores das gerações de Lonsoniers que sobrevivem e prosperam no Chile de 1873 a 1973. Retrata também a dualidade de identidades que permeia o coração dessas pessoas que herdam culturalmente a identidade europeia, ainda que vivam em outra terra forjando nova identidade ao sul do Equador.  Essa conhecida dualidade de sentimentos vem à tona diversas vezes durante a saga da família, em diferentes gerações, começando com a primeira geração pós imigração, que se vê obrigada a ir lutar no front da Primeira Guerra Mundial. Mais tarde, outras pessoas irão também se ver abraçadas por essa herança cultural que a cidadania francesa lhes traz, ainda que tenham o Chile como lugar onde vivem e prosperam. Através de décadas todos os descendentes dos Lonsoniers mantêm essa dualidade.

 

 

Tenho dois senões quanto à obra.  O primeiro tem a ver com a herança literária deixada por de Gabriel Garcia Márquez para dezenas de escritores latino-americanos que insistem em trabalhar no realismo mágico do autor colombiano e sistematicamente deixam a desejar nas suas narrativas. Só há um Gabo.  Só houve um Gabo, fenomenal, com grande facilidade de nos levar através de sua mágica a Macondo e seus habitantes. Cem anos de solidão é considerado o segundo mais importante livro da literatura hispânica, tendo Don Quixote de La Mancha, em primeiro lugar. Parte de sua importância está justamente no entrelace de realidade e sonho; na habilidade de seduzir o leitor que passa a não questionar o irreal.  Miguel Bonnefoy, claramente admira a escrita de Márquez.  Como sabemos disso?  Graças ao aforismo criado por Charles C. Colton, escritor inglês de temperamento excêntrico que  enunciou: “a imitação é a mais sincera forma de elogio” [Imitation is the sincerest form of flattery]. Esta observação foi mais tarde revista por Oscar Wilde, que a completou, “a imitação é a mais sincera forma de elogio que a mediocridade pode prestar” [Imitation is the sincerest form of flattery that mediocrity can pay to greatness]. Miguel Bonnefoy não é medíocre. É um bom escritor.  Tem ritmo, assunto e ideias que merecem melhor tratamento.  Ele diminui sua escrita e criatividade ao se prender a um estilo que não é seu.  Gostaria de ver a mesma obra, contada à maneira de Bonnefoy e não ao modo de Gabo.

 

Miguel Bonnefoy

 

 

O segundo ponto que ressalto tem a ver com o as duas diferentes narrativas encontradas no livro.  Há a que pode ser mais facilmente chamada de realismo mágico que se desenvolve aos poucos, desde o primeiro capítulo, chegando a um ponto máximo nas gerações seguintes, até a última, a geração de Ilario Da.  Nesta fase, temos personagens com paixões, com idiossincrasias, com excessos, repletas de mistério sobre o que fazem, o que colecionam, o que pensam e seguimos de surpresa em surpresa, sem chegar a maior profundidade sobre o que os leva às ações, aos sentimentos e comportamentos exóticos que os Lonsoniers demonstram.  Mas, subitamente, deixa-se de lado a mágica, o sonho, a poesia para entrar numa narrativa realista extremamente detalhada de todos os males da ditadura chilena de Augusto Pinochet.  É uma virada artificial na voz narrativa do livro, que parece encomendada para ter sucesso nos meios políticos apoiados pelo autor.  Há uma traição, pode-se dizer, daquele leitor que apesar de ter reserva com a imitação a Gabriel Garcia Márquez, a aceita e está próximo de levar a cabo a leitura, para de repente, se ver preso nos abusos realistas, nas torturas, no dia a dia dos subterrâneos que escondem os agravos de governos ditatoriais, de qualquer naipe que sejam, neste caso na ditadura de Pinochet.  Esse novo caminho da história contada, surpreende, desagrada e mostra que Miguel Bonnefoy se rendeu aos ditames do “politicamente correto”  empobrecendo em muito o que até então havia sido uma narrativa charmosa ainda que imitativa.

Pena.  Este tem todo o jeito de ser um livro que cairá no agrado de  muitos leitores.  Não posso recomendar sem essas ressalvas.

 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.