Livros, melhor presente não há!

3 12 2018

 

 

 

0c170d0f4c9b442ce9d31876668f0f65Ilustração de Rebecca Campbell.

 

Duas das maiores livrarias do país perigam não sobreviver.  Tudo indica que não se adaptaram ao mundo moderno, além de sofrerem de má gestão.  A rede Saraiva era responsável por 30% das vendas de livros no país.  No ano passado o mercado de livros aumentou em 9,1%.  Como pode uma livraria que responde por quase um terço do mercado brasileiro estar à beira da falência?  Mesmo quando o mercado aumentou?  Má gestão resume-se a manter o negócio com hábitos antigos, sem supervisão e por não entender as mudanças no mercado.  Mas não é isso que me traz às reflexões desta postagem.  No final de novembro Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, fez um apelo para que lembrássemos a nossos amigos, conhecidos, familiares da importância dos livros, de todos os livros para nossas vidas, e que presenteássemos com livros. “Cartas de amor aos livros”, Luiz Schwarcz.

 

0639182eda5cf2e23087dcba64091a6aTintin lê, Hervé.

 

Não me lembro de meus primeiros livros. Tenho certeza de que vieram ao meu encontro antes de eu completar 3 anos.  Há uma foto minha, sentada no degrau da porta de entrada da casa de minha avó, agarrada a um livro. Absorta.  Cabelos soltos não muito longos cobrindo o rosto, porque olhava atentamente para as páginas à minha frente, mãos segurando um livro aberto, no colo, vestidinho de domingo, sapato e meia. Eu tinha 3 anos pela data escrita por papai, no verso da foto. Filha de professores, passei a vida rodeada por livros de todos os assuntos.  Mãe professora de literatura/línguas, pai cientista professor de física e química, um avô, o único que conheci, advogado, professor e jornalista com coluna nos jornais do Rio de Janeiro e de Mato Grosso, onde nascera. Com uma biblioteca com todos os livros encapados, catalogados e protegidos por estantes com portas de vidro de correr onde se refugiava após o jantar, ele se presenteava com a cachimbada da noite. Irmãs de minha mãe, professoras.  Irmão de meu pai também.  Livros formaram a essência do conceito casa, lar, aconchego, segurança, família, conversa, relacionamentos, conhecimento, prazer, entretenimento, valores.  Não consigo dissociar livros de minha vida. Portanto, para mim, é difícil imaginar que tenhamos que falar sobre as benesses da leitura, sobre o quanto ela contribuiu para a formação de  caráter, para a formação de quem somos.  Não sei mais o que aprendi através dos livros. Foram tantos livros, tantos assuntos, tanta informação. Mas sei que aprendi muito mais do que se não os tivesse lido.  Porque eles, amigos de todas as horas, em todos os lugares, são uma janela para o mundo externo e uma porta para o auto conhecimento. Livros nos fazem grandes, maiores do que nossas alturas, mais fortes do que nossos músculos.  Eles nos expõem  a mundos que jamais visitaríamos ou visitaremos, e passamos a entender outras realidades, outros modos de pensar. Livros trazem conhecimento sobre o qual podemos criar, crescer e construir uma realidade melhor para a sociedade em que vivemos.

 

lendo lobãoLobão procura aprender sobre o sucesso de seu competidor urso. Ilust. Walt Disney.

 

Do tempo de criança, antes de me apegar à coleção de Monteiro Lobato, que li toda, inclusive a História do Mundo para Crianças, me lembro de muitos livros sem necessariamente me lembrar de seus títulos. Pena.  Mas me lembro que, antes de me entregar às obras de Lobato, ao ler Simbad, o marinheiro, que ganhei de aniversário, aos seis anos de idade, corri para mamãe e disse:  “Olha, estou vendo um filme dentro da minha cabeça enquanto leio!”  Foi, acredito, a primeira vez que descobri que ninguém precisava ler para mim para que eu pudesse imaginar as cenas.  Isso poderia acontecer quando eu mesma estivesse encarregada da leitura.  Ou seja, a leitura já estava automática o suficiente para que eu não sofresse com o ato de ler. Podia ler e imaginar com fluência. Tornara-me leitora plena.  Daí para frente preferi que ninguém lesse para mim, isso era coisa que eu queria fazer por mim mesma, dando ênfase ao que eu achava importante.  Neste ano, aos seis anos, meu primeiro ano de escola, nós nos mudamos, no meio do ano letivo.  E fiquei até março do ano seguinte em casa, a conselho das diretoras das escolas, porque já estava mais à frente do que o pessoal que havia entrado comigo. Passei de julho a março lendo.  Li de tudo.  E li uma história que até hoje me acompanha, de um menino chinês, que tinha uma longa trança.  E não sei porque, ele precisava estudar à noite, à luz de um lampião.  E para que não dormisse, amarrou a trança num prego na parede atrás de sua mesa de leitura.  Assim, toda vez que ele cochilava e sua cabeça pendia para frente, levava um puxão da trança, acordava e voltava a estudar. Por que ele se achava nessa circunstância, não sei.  Não me lembro do título, nem do autor da história.  Era ilustrada.  Desenhos em linha preta, como nanquim, aquarelados de verde, num estilo dos anos 60 do século passado.  Muitas vezes que precisei vencer o sono, lembrei-me da trança deste chinesinho amarrada ao prego na parede.  Senti-me reconfortada ao saber que outros, muitos outros já haviam passado por situação semelhante e que cabia a mim achar um prego para minha trança, uma solução para a minha noite em claro.

 

Magali lendo, Monica curiosaMagali lendo, Monica curiosa. Ilust.  Maurício de Sousa.

 

De meu pai, lembro-me principalmente carregando livros.  Eles também faziam parte de sua vida diária. Tínhamos o hábito de conversar à mesa, mesmo que a televisão estivesse ligada.  Conversar era uma coisa de família.  Falávamos de tudo. E papai era a “enciclopédia ambulante” para nós.  Não havia pergunta que ele não respondesse.  e se não soubesse, corria às estantes de seu cubículo (o antigo quarto da empregada) coberto de estantes de cima abaixo, com centenas e centenas de livros de todos os assuntos. Papai adorava aprender.  E passou essa curiosidade do aprendizado para seus três filhos.  Se perguntássemos alguma coisa, se ele precisasse dar uma explicação mais detalhada, ele saía por um momento da sala, para logo depois aparecer carregando dois, três volumes dos mais variados assuntos que pudessem ilustrar ou apontar para as respostas que procurávamos.  Sim, livros sempre foram parte do nosso dia a dia.  Não vamos romantizar esse hábito de papai.  Havia horas em que era muito chato.  Queríamos entender alguma coisa rapidamente, queríamos saber como responder às questões da escola e lá vinha ele prolongando as horas do dever de casa, dando informações muito além das que necessitávamos para a escola. Era um sofrimento, principalmente na adolescência, quando havia tantas outras opções para consumir nosso tempo, mesmo que elas fossem simplesmente divagar sobre as possibilidades.  Por vezes penso que papai teria adorado a Wikipedia.  Mas logo me lembro que não era fã de enciclopédias.  Não daquelas em diversos volumes.  Sempre dizia que o conhecimento da humanidade avançava em maior rapidez do que as edições das enciclopédias.  Papai gostava de livros, sobre um assunto, que se aprofundassem.  Todas as nossas enciclopédias eram em um único volume, lembro-me por exemplo de consultarmos sempre que podíamos a Larousse em um volume.  Era como um dicionário onde encontrávamos o mínimo necessário para depois irmos às bibliotecas procurar o que queríamos saber.

 

lendo, patinhas, noite, livros, mesa,Tio patinhas se diverte lendo, ilust. Walt Disney.

 

Lembro-me de livros serem um assunto entre os familiares, irmãos e cunhados de meus pais.  Era tão comum conversar sobre o que se lia, quanto falar sobre filmes vistos no cinema ou na televisão. Meus tios e meus pais passavam livros que liam por entre o resto da família. Eram livros de ficção que todos da família liam.  Autores brasileiros tinham preferência, mas lembro-me de livros de todo gênero Fernando Sabino,  Érico Veríssimo, Morris West, Françoise Sagan, Jorge Amado, Mário Palmério, Pearl S. Buck, Antônio Callado, Nabokov entre outros, passados de meus tios a meus pais e vice-versa e que só bem mais tarde viemos a ler. Havia também alguns livros que traziam muita conversa nos encontros familiares, nos aniversários Eram os deuses astronautas? de Erich von Däniken, O macaco nu de Desmond Morris, e Os dragões do Éden, de Carl Sagan, estes livros iam e vinham a berlinda nas conversas em família, ano após ano.  A ficção de suspense foi uma descoberta tardia de meus pais e tios (com exceção de Agatha Christie, que me lembro bem de terem lido) mas um gênero mais relacionado à política mundial da guerra fria, O dossiê de Odessa e os livros de John Le Carré,  fazem parte de um gosto tardio, mas a essa altura eu já não morava com eles.

Não era porque gostávamos de ler, que deixamos de ter nossas brincadeiras, nossas horas de criança.  Meus irmãos jogaram futebol, fizeram karatê, nós todos nadávamos, íamos à praia (morávamos próximo).  E continuamos leitores, como adultos.  Mas cada qual com suas preferências.  Marcus gostava de ler sobre ciências, música, e tinha gosto por alguns escritores de ficção, Camus entre eles.  Meu irmão Ricardo também gosta de ler e se dedica com prazer principalmente a biografias. Ambos se formaram em  engenharia.  Talvez por ter tido tanto contato com livros inicialmente pensei em fazer letras.  Mas depois a história da arte me levou por outros caminhos.  No entanto, a leitura sempre fez parte do meu dia a dia.

 

lendo, histórias, contando histórias, contos de fadas, dormir,Ilustração de Maurício de Sousa.

 

Dizem que o mundo digital está acabando com o livro como nós conhecemos, em papel.  Impresso.  Acredito que ambos irão viver lado a lado.  Leio tanto livros digitais quanto livros de papel.  E muitas vezes, mas muitas vezes mesmo, depois de ler a versão digital, compro o livro para poder ter comigo, emprestar, rever sua capa, seu dorso, sua maneira de ser.  O livro digital tem uma vantagem sobre o livro físico:  posso levar muitos livros para um fim de semana fora, sem que me pese um grama mais.  Mas o livro físico tem um encanto próprio e acredito que acabo usando as versões digitais como uma peneira para saber exatamente que livro gostaria de ter me acompanhando na vida.  Acredito que a leitura seja essencial para o crescimento emocional sadio de uma criança, de um adolescente e de um adulto.  A leitura nos dá companheiros de dramas familiares e muitas vezes ela nos dá respostas sem que saibamos onde aprendemos.  A leitura expande a mente e nos torna mais flexíveis e mais generosos com os outros que diferem de nós.

Sempre dou livros de presente.  Passo muito tempo imaginando que livro dar para quem.  E espero que tenham, na sua maioria, sido bons presentes.  Dar um livro bem escolhido mostra que pensamos nessa pessoa. E ao mesmo tempo, por nossas escolhas, nos mostramos também a ela.  É um ato de dar e de dar-se.  É um modo de aproximação, de carinho. É um gesto que diz: isso é uma das maneiras que penso em você.  Dar livros é libertar a imaginação do outro e respeitá-la ao mesmo tempo. Não pense duas vezes, dê um livro de presente aos seus amigos, parentes, filhos e netos.  Dar um livro é dar o mundo. Dar um livro é um gesto de amor.

 

© Ladyce West, Rio de Janeiro, 2018