Resenha: “Nadando de volta para casa”, de Deborah Levy

15 02 2015

 

 

magritte-la-clef-des-songesA chave dos sonhos, 1930

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

óleo sobre tela, 81 x 60 cm

Coleção Particular, Paris

 

Nenhum dos peixes à venda, anunciados pelo alto-falante da van na rua em frente de casa, nadou de volta para casa. Todos tinham sido apanhados no caminho, assim reflete o poeta JHJ centro das atenções da protagonista Kitty Finch. É dela o poema que dá nome ao romance de Deborah Levy, Nadando de Volta para Casa. Nele a jovem poetisa abusa dos etcs, e pede para que o leitor entenda que todo etc. esconde algo que não pode ser dito. Na prosa de Levy tudo é dito de maneira oblíqua, envolta na névoa de um sonho.

A história é simples. Joe, Isabel e a filha Nina saem da Inglaterra para passar as férias numa casa alugada nos arredores de Nice, na Côte d’Azur. Levam consigo um casal amigo: Laura e Mitchell. Chegando lá, o inesperado acontece pela presença de Kitty, que se torna hóspede deles. À volta desse núcleo há Jurgen, o caseiro alemão, Claude, o dono do café, Madeleine, a vizinha médica de 80 anos e a dona da casa alugada da qual só ouvimos falar, uma psicanalista. A maior parte do romance se passa em oito dias, em julho de 1994. A narrativa é circular e repleta de enigmas. Não é necessário desvendá-los para entender o romance, mas para mim se tornou um jogo, um quebra-cabeças delicioso, que não consigo deixar de lado.

O livro começa com uma cena de terror psicológico, como em um pesadelo: “Quando Kitty Finch tirou a mão do volante e lhe disse que o amava, ele não soube mais se ela o estava ameaçando ou conversando com ele” (9). Não sabemos quem são Kitty Finch, nem seu companheiro de viagem, mas o alerta para o perigo, para a dualidade dos sentimentos do homem que a acompanha, é sentido e familiar, lembra os perigos dos sonhos que nos acordam em pânico, ansiosos. Esta cena se repete, ligeiramente modificada, através do texto, do mesmo modo que muitas imagens também se repetem, com pequenas alterações, quando sonhamos.

 

 

the-collective-inventionA invenção coletiva, 1934

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

óleo sobre tela, 73 x 97 cm

Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen, Düsseldorf, Germany

 

 

Já no capítulo seguinte ainda sob essa influência da incerteza, somos apresentados à imagem de uma sereia, sedutora mulher de longos cabelos vermelhos, até a cintura. Imersa na água ela atrai os olhos de Jozef Nowogrodzki, também conhecido como Joe Harold Jacobs, ou JHJ, “ou o poeta famoso, o poeta britânico, o poeta babaca, o poeta judeu, o poeta ateu, o poeta modernista, o poeta pós-Holocausto, o poeta mulherengo” (154); um homem de muitos rótulos, no entanto indefinível. Essa pluralidade de personagens reflete um poeta que se metamorfoseia em muitos, aumentando o conteúdo onírico e hermético da narrativa. Kitty Finch é a sereia destinada a seduzir  o poeta. Suas palavras, poesia, escritos são seu canto para Ulisses: tentadora, perigosa, aliciante, antropófaga.

JHJ se prepara para dar uma palestra na Polônia, terra onde nasceu em 1937. Foi abandonado numa floresta por seus pais que alimentavam a esperança de que ele sobrevivesse aos nazistas. Acabou na Inglaterra, aos cinco anos de idade. Quando é perguntado se se sente inglês, por dentro, sua resposta é tão ambígua quanto todos os seus nomes e atitudes: Eu tenho “uma porra de um sentimento engraçado” (48). Na verdade Joe não sabe quem é. Seus etcs são muitos e ele corre o perigo de se afogar no desconhecido.

Ninguém melhor do que Kitty Finch para saber disso. Não só ela sabe tudo sobre Joe, como declara a que veio: “Eu vim para França, para salvar você de seus pensamentos” (32). Ela tem uma simbiose telepática com ele. “A poesia de Joe é, mais do que qualquer outra coisa, uma conversa comigo. Ele diz coisas que eu costumo pensar. Nós temos um contato nervoso” (52). Kitty Finch é uma botânica que admite sofrer de um desequilíbrio mental. Mas deixa de tomar seu remédio, para poder sentir emoções. O problema mental sem controle permite que ela entre e saia livremente de seu inconsciente, desvendando sua fragilidade. É a única personagem que se expõe. Emocionalmente. E fisicamente. Sem pudor. Apesar de estranharem, todos à sua volta aceitam essa nudez, até mesmo Isabel, esposa de Joe, para surpresa da amiga Laura, que percebe desde o início a intenção da jovem de seduzir o marido da amiga. Dos nove personagens Kitty é a mais transparente e a menos compreendida. Diáfana. Quase translúcida. Ela perambula pela propriedade com o descuido de quem não duvida de seu lugar, de sua importância.

 

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No entanto, tendo admitido seu problema mental, Kitty se torna um personagem mais enigmático. Não sabemos se devemos ou não acreditar no que diz. Sua tarefa de seduzir Joe encontra resistência. Não porque ele não queira. Mulherengo, seu casamento com a mulher jornalista que viaja constantemente para os confins do mundo, é repleto de pequenas traições, de muitas namoradas. É um obsessivo Don Juan, mesmo amando sua esposa e seduzindo-a com favos de mel. Mas JHJ resiste porque pressente o perigo: Kitty Finch poderia levá-lo ao reino das sombras em que transita. Amá-la, deixar-se perder em suas profundezas, seria um mergulho no desconhecido; a aceitação do submundo do inconsciente e a percepção do verdadeiro reino das sombras a que pertence.

O mundo solar e o mundo das sombras se entrelaçam na narrativa, desde a lembrança da alegoria da caverna de Platão, quando Kitty vê um jovem desaparecer na parede, levando uma braçada de cicuta; ao capítulo em que Jurgen explica para Claude, como o alienígena ET e seu amigo terrestre se espelhavam. Kitty Finch é a sereia de JHJ, sua chave de entrada para esse outro mundo que o comerá vivo, como aconteceu no conto O pescador e a alma de Oscar Wilde. Em seu desespero, Jozef tenta passar para outro essa oportunidade e sugere que ela peça a Jurgen que leia o seu poema. Mas ela declara peremptoriamente: “Meu poema é uma conversa com você e com ninguém mais.” (90) Jozef Nowogrodzki sabe do mundo desconhecido, do mundo das profundezas do sonho, das emoções e do inconsciente. Seu desespero é palpável na reflexão durante o encontro que tem com Kitty para conversar sobre a poesia dela (91). Ele tenta desesperadamente resistir ao sedutor mergulho que vê inevitável: o mergulho no desconhecido dos etcs de sua vida.

Quando o movimento surrealista foi fundado por André Breton em 1924, tinha como espinha dorsal as obras de Sigmund Freud sobre o inconsciente. A meta era trazer à tona, através da escrita automática, imagens oníricas. A libertação das imagens do inconsciente vinha, segundo Freud, através do humor, do trocadilho, da ironia. O pintor surrealista René Magritte usou e abusou desses métodos para trazer aos lábios do espectador o sorriso do absurdo. Sua enorme série La clef de songes [a chave dos sonhos] em que imagens são aparentemente rotuladas por palavras ao acaso, é uma das representações visuais do humor corriqueiras na obra do pintor usadas como porta de entrada para o inconsciente.

 

LevyDeborah Levy

 

A metáfora como a usada por Magritte em A invenção coletiva, — uma inversão da imagem da sereia, já tão bem estabelecida no inconsciente coletivo — ilustra o método que Freud acreditava ser o meio de solucionar os conflitos no inconsciente, por ser um enigma em disfarce. Daí, a abundante panóplia de imagens ambivalentes, de polaridades e duplicidades, dualismos e híbridos nas produções surrealistas na literatura e nas artes visuais. É bom lembrar que o Surrealismo foi, sobretudo, um movimento literário. Deborah Levy está bastante ciente dessas diretrizes, pois na epígrafe do romance Nadando de volta para casa, reproduz uma citação encontrada no primeiro número da revista Révolution Surréaliste, de dezembro de 1924: “De manhã, em todas as famílias, homens, mulheres e crianças, se não tiverem nada melhor para fazer, contam seus sonhos uns para os outros. Nós estamos todos à mercê dos sonhos e temos obrigação para conosco de testar sua força no estado de vigília.” É, portanto a partir dessa perspectiva que essa pequena obra de grande impacto, se descortina por 160 páginas.

O humor aludido acima é intermitente na narrativa. Há muitos momentos de sorrisos com as justaposições que Deborah Levy nos coloca. A médica vizinha é fonte de muita ironia, assim como são Mitchell e até mesmo Isabel. Com essas janelas de abertura para o subtexto da narrativa, chegamos ao nosso sonho coletivo, só restando saber o que realmente acontece quando Josef se encontra com seus etcs. Extraordinário. Uma pequena obra-prima.

 





Domingo, um passeio no campo!

15 02 2015

 

JOSÉ PAULO Moreira da Fonseca (1922 - 2004) Náufrago do sol, o.s.t - 20 x 27 cm.Náufrago do sol, s.d.

José Paulo Moreira da Fonseca (Brasil, 1922-2004)

óleo sobre tela, 20 x 27 cm





As máscaras, poema de Menotti del Picchia

15 02 2015

 

 

George Barbier, 1919Pierrot, Colombina e Arlequim, 1919

[ilustração para o Balé Carnaval)

George Barbier (França, 1882-1932)

Litogravura policromada

 

As Máscaras

 

 

Menotti del Picchia

 

— O teu beijo é tão quente, Arlequim
— O teu sonho é tão manso, Pierrot

Pudesse eu repartir-me
encontrar minha calma
dando a Arlequim meu corpo…
e a Pierrot a minh’alma!

Quando tenho Arlequim,
quero Pierrot tristonho,
pois um dá-me o prazer,
o outro dá-me o sonho!

Nessa duplicidade o amor todo se encerra:
um me fala do céu… outro fala da terra!

Eu amo, porque amar é variar,
e em verdade, toda a razão do amor
está na variedade…

Penso que morreria o desejo da gente
se Arlequim e Pierrot fossem um ser somente.

Porque a história do amor
só pode escrever-se assim:
um sonho de Pierrot…
e um beijo de Arlequim!

 

 

Este poema é baseado na fala final de Colombina em Máscaras, (1920)de Menotti del Picchia.





Imagem de leitura — Margaret Pappas

15 02 2015

 

Palhaço lendo Wall street journal, margaret-pappas,(EUA, contemp)ost, 90 x 60 cmPalhaço lendo Wall Street Journal

Margaret Pappas (EUA, contemporânea)

óleo sobre tela,  90 x 60 cm