Flores para um sábado perfeito!

1 03 2014

Antonio Helio Cabral, Flores e Paisagem,ost, 30 x 30 cmFlores e paisagem, s/d

Antonio Hélio Cabral (Brasil,1948)

óleo sobre tela, 30 x 30 cm





A Rua do Ouvidor, descrição de Gastão Cruls

1 03 2014

rua do ouvidorRua do Ouvidor, 1844

Eduard Hildebrandt (Alemanha, 1817-1868)

aquarela e lápis sobre papel 36 x 25

Homenagem aos 449 anos da Cidade do Rio de Janeiro

A Rua do Ouvidor

Gastão Cruls

A cada passo, sempre que escrevemos sobre acontecimentos ocorridos no centro urbano, o nome da Rua do Ouvidor pinga-nos da pena. Na verdade, vem de longe o prestígio que essa rua assumiu na vida da cidade e não foi sem razão que ocorreu a Koseritz dizer que o Rio de Janeiro era o Brasil e a Rua do Ouvidor, o Rio de Janeiro.

Todavia, bem poucas artérias terão tido origens tão modestas. A princípio, simples Desvio do Mar, ângulo que fazia a rua Direita, foi por muito tempo apenas uma trilha por onde desciam os carros de bois vindos das freguesias de fora. De 1590 a 1600, chamou-se rua de Aleixo Manuel, um barbeiro português, que também se desdobrava em cirurgião. Assim mesmo, tal designação só pegava o percurso que se fazia da rua Direita à rua da Vala (Uruguaiana). O pequeno trecho que a continuava na parte de baixo, até a praia, era a rua da Cruz, da Santa Cruz ou da Vera Cruz, devido à capela aí inaugurada em 1628, no lugar em que existira um forte e onde está hoje a Igreja Santa Cruz dos Militares. Posteriormente, a partir de 1750, quando nele se inaugurou a Igreja da Lapa dos Mercadores, esse mesmo trecho também foi conhecido por Beco dos Mercadores, Beco da Capela e Beco da Carne Seca.

Vista da Igreja de Santa Cruz dos Militares, Rio de Janeiro RJ. Aquarela de Richard Bates, século 19Vista da Igreja de Santa Cruz dos Militares, RJ, s/d

Richard Bate (Inglaterra, 1775 — 1856)

aquarela

Não tardou, também, que o nome de Aleixo Manuel caísse em esquecimento. É que naquele trato assim designado foi residir um sacerdote, e a rua passou a ser do Padre Homem da Costa. Houve tempo, porém, a partir de 1659, em que a distância entre Quitanda e Ourives foi sucessivamente rua do Gadelha, rua da Quitanda do Pedro da Costa e rua do Barbalho. Concomitantemente, à esquina com a rua Direita cabia denominação especial: Canto de Tomé Dias. Quanto à parte final, que de Uruguaiana vai ao Largo de S. Francisco, só logrou ser batizada depois que, em 1742, foi lançada nesse mesmo largo a pedra fundamental da Igreja da Sé. Era a rua da Sé Nova. E precisamos chegar ao último quartel do século XVIII para que toda a rua, desde o mar até aquele Largo, depois de ter passado por uma toponímia tão variada e fragmentada, se fixasse finalmente no nome que conserva ainda hoje, malgrado uma tentativa frustrada, em 1897, com que se procurou homenagear o Coronel Moreira César, tombado em Canudos. Foi rua do Ouvidor e ficou rua do Ouvidor porque em 1780 nela veio morar o ouvidor Francisco Berquó da Silveira.

Não tornaremos ao comércio de modas e de luxo que poucos anos após a trasladação da corte portuguesa para o Rio e subsequente imigração dos primeiros colonos franceses, pôs logo essa rua em situação de relevância entre as suas vizinhas e dela enxotou, de uma vez para todas, as últimas quitandas que lhe afeiavam o aspecto. Esse comércio de fausto e de elegância, já não só de modas mas dos melhores artigos de todos os gêneros, sempre muito bem valorizados nas suas vitrinas, levou Machado de Assis a chamá-la, muitos anos mais tarde, a “via dolorosa dos maridos pobres”.

Rua-do-Ouvidor-Centro-RjRua do Ouvidor, 2011

Renato Salles (Brasil, )

www.renatosalles.com

Mas não foi só por esse lado que a rua do Ouvidor se distinguiu. Hotéis, confeitarias, cafés também a preferiram e isso muito lhe aumentou a frequência, tornando-a o ponto obrigatória da melhor sociedade carioca. Vários jornais escolheram-na para a sede das suas redações, a começar pelo velho Jornal do Comércio, o Diário do Rio de Janeiro, órgão dos conservadores, A Reforma, de Silveira da Mota, O País, fundado em 1884, e tendo à frente Rui, Quintino e Joaquim Serra, a Gazeta de Notícias, de Ferreira de Araújo, a Cidade do Rio, de José do Patrocínio, O Combate, de Pardal Mallet, Luís Murat e Manuel da Rocha, O Globo, também de Quintino, o Diário de Notícias, de Rui e Antônio de Azeredo, A Notícia, de Alcindo Guanabara e Glicério, O Século, de Medeiros e Albuquerque, e muitos outros, que fastidioso fora enumerar.

Tudo isso, excelente comércio, redação de jornais, escritórios de médicos, engenheiros e advogados, fez com que a estreita via pública, de manhã à noite, se enchesse de gente. Aliás, por ser assim estreita, e também longa, era um verdadeiro corredor, sempre sombreado, e onde, mesmo nos dias mais quentes, havia sempre algum ar a respirar. Por outro lado, desde 1867, ela gozou do privilégio, não concedido a nenhuma outra, de só ser trafegada por veículos e cavaleiros até as 9 horas da manhã. Daí por diante, era mesmo do povo, do pedestre, que nela podia andar à vontade, desatento, e desembaraçado. Andar, e também parar, para ver o que se apresentava nos mostruários, ou dar dois dedos de prosa com algum amigo ou conhecido, encontrados eventualmente.  Daí, devido aquelas condições, os grupos que se formavam em plena rua, mesmo ao maior empino do sol. Estava-se ali como num salão. Havia senhoras que só se avistavam quando vinham ao cabeleireiro ou iam experimentar um par de sapatos no Fonseca. Outras que iam juntas ao Wallenstein e, depois, à Notre Dame, ou ao Grão Turco, e acabavam tomando sorvete na Deroche, no Castelões ou no Cailteau. Moças que vinham ao dentista e catavam os namorados pela porta das lojas ou dos cafés.

???????????????????????????????Rua Primeiro de Março, 1907

Gustavo Dall’Ara (Itália, 1865 — Brasil, 1923)

óleo sobre tela, 117 x 98 cm

Museu Nacional de Belas Artes, RJ

Já disse alguém que dois ingleses quando se encontram formam um clube. Entre nós, dois brasileiros, quando se juntavam, iam para um café. Falamos no passado, porque os cafés-expressos vão acabando com o hábito da gostosa conversa fiada que se fazia à volta das mesas do Café de Londres, do Java, do Café do Rio ou do Brito, e do Cascata. O Café de Londres era dos mais procurados e nele trocavam ideia Fagundes Varela, Luís Guimarães Júnior, Adelino Fontoura e Lopes Trovão. Conforme os gostos e as profissões, outros grupos eram certos nesse ou naquele ponto. À porta do joalheiro Farani, fornecedor da alta aristocracia rural, dos Breves, dos Roxo, dos Vargem-Alegre, discutiam políticos, entre os quais Abrantes, Paulino e Cotegipe eram dos mais assíduos. Já a Tipografia Leuzinger atraía os intelectuais estrangeiros, os Taunay, Debret, Grandjean e outros apenas de passagem, como o príncipe Maximiliano, Saint-Hilaire, Agassiz, Rochet. Quanto aos literatos, como era natural, pouco a pouco foram-se encaminhando para a Garnier, onde mais tarde, saindo do Ministério e antes de tomar o bonde para Laranjeiras, assinaria ponto Machado de Assis, cercado de José Veríssimo, Graça Aranha, Alberto de Oliveira, Bilac… Quase defronte ficava o Laemmert, menos visitado, mas que , em 1902, teve a honra de lançar Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Ceatas depois do teatro, e nem sempre em boa companhia, sobretudo para os que saíam do Alcazar ou do Teatro Lírico Fluminense, que ficavam próximos, realizavam-se no Carceller que, já ao tempo de Pedro I, tinha entre os seus habituados a figura do Chalaça, Francisco Gomes da Silva, o indispensável onze-letras do Primeiro Imperador.

Uma estatística de 1862 informa que na rua do Ouvidor existiam 265 estabelecimentos comerciais, assim distribuídos de acordo com a nacionalidade dos seus donos: 91 franceses, 68 portugueses, 35 brasileiros, 4 suíços, 2 norte-americanos, 2 italianos, 1 alemão, 1 inglês e 1 espanhol.

Mas a rua do Ouvidor foi também rua residencial. Aí moraram José Clemente Pereira, Luís José de Carvalho e Melo, depois Visconde de Cachoeira, Gonçalves Ledo. No sobrado em que, ocupando a loja, desde 1870, está estabelecida a Casa América e China, no início do século morava um português, Francisco Saturnino da Veiga, com um colégio onde deve ter aprendido as primeiras letras seu filho Evaristo Ferreira da Veiga. Nesse mesmo sobradão, quando no seu andar térreo ficava a Confeitaria Carceller, nas dependências superiores moravam as irmãs Paracatu, mineiras que se recomendavam pelos seus deliciosos doces secos e em calda e pelas suas inigualáveis desmamadas.

Sylvio Pinto,Vista do Rio de Janeiro,Parte antiga, 1952,OSM, 38 x 30,1.800Vista do Rio de Janeiro, parte antiga, 1952

Sylvio Pinto (Brasil, 1918-1997)

óleo sobre tela, 38 x 30cm

Não houve também acontecimento público de relevância em que a rua do Ouvidor não tomasse parte ativa, fosse festa ou revolta. Por ela passavam as procissões e as sociedades carnavalescas. Vibrou, em 1870, apinhada de gente, ao desfile da brigada do Coronel Francisco Pinheiro Guimarães, tornando dos campos do Paraguai. Formigou, de ponta a ponta, em apoteose a Osório, o herói do Tuiuti e Avaí, quando em 1877, vinha tomar posse de sua cadeira no Senado.

Mas teve também os seus dias de desalento e indignação, de diz-que-diz, ansioso e boataria alarmante, de motim e chinfrineira.  A “Noite das Garrafadas”, a questão Christie, o “Imposto do Vintém”, certos malogros em Canudos, a revolta de Custódio…

Nela,na redação dos jornais, quer pelas suas colunas, quer nos discursos que se faziam das suas sacadas, antes de todos por Patrocínio, na Cidade do Rio, foi que se robusteceu, em grande parte, a campanha abolicionista. Nela, ainda nesses mesmos jornais, ou nas conversas de rua ou de café, encontrou bom eco a campanha republicana.

Em: Aparência do Rio de Janeiro (Notícia histórica e descritiva da cidade), Gastão Cruls, Rio de Janeiro, José Olympio: 1949, 2º volume, pp 420-425. Prefácio de Gilberto Freyre, Desenhos de Luís Jardim.