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O crítico de arte, 1935
Norman Rockwell (EUA, 1894-1978)
[Capa da revista Saturday Evening Post, de 16 de abril de 1935]
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Neste fim de semana estive envolvida com o livro O Intocável de John Banville. É extremamente bem escrito, fala de espionagem, fala de arte e da Inglaterra. Baseia-se na história real do agente secreto britânico e simultaneamente agente para a Rússia, Anthony Blunt, conhecidíssimo historiador e crítico de arte. O caso só veio ao conhecimento do público no final dos anos 80. E a história, aqui contada como uma quase-memória é fascinante. Selecionei um trecho para postagem hoje, porque mostra além do conhecimento da arte, os valores que eram a elas atribuídos e as metáforas que dela se usava. A cena se passa na Inglaterra, em 1935 antes do início da Segunda Guerra Mundial.
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“Fêz-se uma fração de segundo de silêncio, e a atmosfera adensou-se por um breve instante. Eu olhava de um para o outro, parecendo detectar uma coisa invisível a passar entre eles, não tanto um sinal como um símbolo mudo, como um desses quase impalpáveis reconhecimentos que trocam os adúlteros quando têm companhia. O fenômeno ainda me era estranho, mas ia tornar-se cada vez mais conhecido quanto mais fundo eu penetrava no mundo secreto. Assinala aquele momento em que um grupo de iniciados, no meio da tagarelice habitual, começa a trabalhar num candidato potencial: era sempre o mesmo: a pausa, o breve intumescimento no ar, depois a tranqüila retomada do tema fora irrecuperavelmente mudado. Mais tarde, quando eu mesmo já era um iniciado, essa pequena agitação especulativa me emocionava profundamente. Nada muito tentador, nada muito emocionante, a não ser, claro, algumas manobras na caçada sexual.
Eu sabia o que estava acontecendo; sabia que estava sendo recrutado. Era emocionante, assustador e ligeiramente ridículo, como ser chamado das laterais para jogar no time titular da escola. Era divertido. Essa palavra não traz mais o peso que tinha para nós. Diversão não era diversão, mas o teste de autenticidade de uma coisa, uma verificação do seu valor. As coisas mais sérias nos divertiam. As coisas mais sérias nos divertiam. Isso é algo que os Felix Hartmans jamais entenderam.
— Sim – falei, é verdade que eu antes defendia o primado da forma pura. Uma parte muito grande da arte é apenas anedótica, que é o que atrai o sentimentalista burguês. Eu queria uma coisa rude e estudada, realmente fiel à vida: Poussin, Cézanne, Picasso. Mas esses novos movimentos… esse surrealismo, essas áridas abstrações… que têm eles a ver com o mundo real, em que os homens vivem, trabalham e morrem?
Alastair bateu palmas lentas e silenciosas. Hatman, franzindo pensativamente a testa para meu tornozelo, ignorou-o.
— Bonnard – disse. Bonnard fazia furor naquele momento.
— Felicidade doméstica. Sexo sábado à noite.
— Matisse.
— Postais pintados a mão.
–Diego Rivera.
— Um verdadeiro pintor do povo, claro. Um grande pintor.
Ele ignorou o sorrisinho de lábio preso que não pude evitar; lembro-me de que surpreendi Bernard Berenson sorrindo assim uma vez, quando fazia uma atribuição gritantemente falaz de uma falsificação barata que um infeliz americano ia comprar por um preço fabuloso.
— Tão grande quanto … Poussin? – perguntou.
Encolhi os ombros. Então ele conhecia meus interesses. Alguém andara falando-lhe. Olhei para Alastair, mas ele se achava absorvido examinando o polegar machucado.
— Essa questão não se coloca – disse eu – A crítica comparativa é em essência fascista. Nossa tarefa – como apliquei delicadamente a pressão nesse nosso – é enfatizar os elementos progressistas na arte. Em tempos como estes, certamente é esse o primeiro e mais importante dever do crítico.
Seguiu-se outro silêncio significativo, Alastair chupando o polegar, Hartman balançando a cabeça e eu olhando para o lado, a exibir meu perfil, a própria modesta e a firme decisão proletárias, como, tinha certeza, uma daquelas figuras em relevo, em leque, no pedestal e um monumento do realismo socialista. É curioso como as pequenas desonestidades são as que se grudam na seda da mente. Diego Rivera – Deus do céu! Alastair observava-me agora com um sorriso matreiro”.
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Em: O Intocável, John Banville, Rio de Janeiro, Record: 1999, pp-114-115, tradução de Marcos Santarrita.







