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Maternidade
Aurélio d’Alincourt (Brasil, 1919-1990)
óleo sobre tela, 46 x 55 cm
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O Dia da Mães é comemorado desde a década de 1930 no Brasil. Há poucos cartões com uma iconografia nossa para o Dia das Mães, cartões fabricados no Brasil especificamente para essa data. Talvez isso se dê porque as crianças em geral fazem seus próprios cartões, auxiliadas nas escolas pelos professores. As mamães devem apreciar muito mais o esforço de seus rebentos, preferindo recebê-los no lugar de cartões que seus filhos tivessem simplesmente comprado na papelaria mais próxima de casa.
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Mãe e filha, s/d
Alfredo Volpi (Itália, 1896- Brasil, 1988)
óleo sobre cartão, 55 x 40 cm
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Quase todos os países têm uma data dedicada às mães, mas elas variam de país para país. Algum tempo atrás, Israel acabou com o Dia das Mães e estabeleceu o Dia da Família no seu lugar. Apesar de países como os Estados Unidos comemorarem o Dia das Mães desde o início do século XX há pouca variedade na iconografia celebrando esse dia em cartões comemorativos, além do buquê de flores, alguns gatinhos, cachorrinhos e outros animais com seus repectivos filhotes. Só depois da Segunda Guerra Mundial e depois década de 1970, talvez pelo próprio aumento da riqueza da sociedade americana, passamos a ver cartões com maior variedade de temas para comemorar o Dia das Mães.
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Mãe e filha, 1955
Jenner Augusto (Brasil, 1924- 2003)
Óleo sobre tela, 61 x 50 cm
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No Brasil a maioria dos cartões é — igual aqueles de Natal — copiada diretamente do exterior, tanto dos EUA, como da Inglaterra e da França. Aparentemente a demanda por esses cartões nunca foi grande suficiente para justificar uma produção caseira. Mesmo assim eles não têm sido muitos. Hoje, eles vêm da China, com desenhos coringas, desenhados com caixas de presentes empilhadas, corações e outras trivialidades. Já chegam por aqui impressos em português, da mesma modo que os cartões de Natal vendidos nas grandes lojas de papelaria, já vêm com votos impressos em português. Os “mais brasileiros” — feitos aqui e com dizeres que refletem o nosso dia a dia — custam 10 a 15 vezes o preço do importado.
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Mãe preta, 1912
Lucílio de Albuquerque (Brasil, 1877 – 1939)
Óleo sobre tela, 180 x 130 cm
Museu de Belas Artes da Bahia, Salvador
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Gosto de refletir sobre a nossa vida diária. Esse trabalho de “antropóloga social” é só baseado na imagem, nas “figurinhas” que preenchem o nosso dia a dia. Elas podem nos dizer muito porque afinal sabemos que “uma imagem vale 1000 palavras”. O que encontramos nos cartões postais e outros cartões comemorativos para esse dia é muito neutro, quase aplicável a qualquer circunstância: uma abundância do verbo amar, conjugada no presente e no futuro. E, como não encontro cartões fabricados no Brasil, com ilustrações que falem dos nossos valores, voltei meu olhar para as representações de maternidade de pintores brasileiros.
A produção artística, figurativa, representando a maternidade tem um longo relacionamento com a iconografia religiosa da Virgem Maria com o Menino Jesus. Mas aqui no Brasil essa associação é muito mais forte e frequente, muito mais óbvia do que as criadas no exterior. Quando observamos as imagens de mães, imagens pintadas no final do século XIX e início do século XX notamos que elas têm muitas semelhanças com imagens religiosas da Virgem Maria com o Menino Jesus, como se a maternidade fosse só compreendida se santificada.
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Mater, 1885
Henrique Bernardelli ( Brasil, 1857-1936)
Óleo sobre tela, 150x 100 cm
Museu Nacional de Belas Artes [MNBA], Rio de Janeiro
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Pode até parecer natural que assim seja, já que a Igreja teve uma influência muito forte no dia a dia da famíllia brasileira, ditando dos mais irrelevantes detalhes até ao que se comprava para ter em casa, para adornar as nossas paredes. Muitas são as residências no Brasil que têm só imaginária religiosa nas paredes ladeando talvez, um retrato de pai e mãe: “A última ceia” deve ter sido a decoração de parede mais comum no Brasil, seguida de alguns santos preferidos de São Jorge a Santo Antônio. Esse foi um país cuja cultura dependeu por mais séculos do que o provável daquilo que era permitido ou visto com bons olhos pelos religiosos ou pelos padres. Tudo só começa a se liberar, para as massas, para a grande e conservadora classe média brasileira, na década de 60 do século XX, quando eventos de revolta social e de costumes se tornam universais e simultaneamente a Igreja Católica adota as Encyclica Pacem in Terris, do papa João XXIII.
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Maternidade, 1906
Eliseu Visconti ( Itália, 1866 – Brasil, 1944),
óleo sobre tela
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Diferente do que aconteceu no século XIX nas artes visuais na Europa e nos Estados Unidos, é só no século XX, no Brasil, com Eliseu Visconti que os costumes da vida urbana, do dia a dia começam a aparecer na pintura regularmente. Não, que não houvesse antes um ou outro pintor que aderira à pintura de gênero, mas não havia esse tipo de representação na quantidade que um país do nosso porte, com as centenas e centenas de fortunas nobiliárquicas, agrícolas e industriais pudesse sugerir. A pintura de gênero teve muita dificuldade de se estabelecer não só por causa dos freios culturais dos compradores mas também por sofrer de preconceito dos pintores que, como os clássicos treinados na Europa, consideravam a pintura histórica o topo de linha na pintura européia. E certamente as representações de maternidade seguem um destino semelhante.
A relação entre a maternidade e a iconografia religiosa parece se afrouxar quando a imigração de artistas de outros países, com outra cultura e outros pontos de vista começa a se fazer sentir, ainda que timidamente. Eliseu Visconti é o primeiro grande artista e por muito tempo o único a sistematicamente quebrar essa associação da iconografia da Virgem Maria com a da maternidade. Ele adotou em seu lugar a temática bastante difundida na pintura de gênero da Belle Époque. Ele traz essa modernidade para o Brasil retratando muitas cenas de mães no dia a dia, como em Maternidade. Mas poucos seguem o seu exemplo. Em geral, isso só acontecerá com artistas imigrantes que já chegavam ao Brasil de outras partes do mundo.
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Maternidade, 1931
Lasar Segall (Rússia, 1891- Brasil, 1957)
Óleo sobre tela, 54 x 73 cm
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Mesmo assim, a tradição de associar a maternidade à religiosidade continuou forte através do século XX, com alguns pouquíssimos rasgos de independência, vindos de pintoras mulheres. Mesmo quando parece que alguém está quebrando as regras culturais, não escritas, representando o amor de mãe de uma maneira diferente, o substrato religioso persiste, como vemos no exemplo de Cícero Dias.
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Maternidade, s/d
Cícero Dias ( Brasil, 1907-2003)
Serigrafia, 63 x 52 cm
Galeria Alphaville, São Paulo
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Vamos observar a temática em Cícero Dias: mãe e filho juntos. A mãe parece ter um lenço na cabeça lembrando os véus das madonas. O menino, já grandinho, de pé, solta uma pipa. No entanto, de braços abertos, ele forma tanto uma estrela quanto uma cruz. Esta última é um tema que se repete na pipa no lado direito da tela, que parece sair por uma janela. As referências estão aí e são claras.
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Maternidade, 1966
Orlando Teruz (Brasil, 1902-1984)
óleo sobre tela, 90 x 70 cm
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Orlando Teruz, que se dedicou algumas vezes ao tema, continua a tradição de associar maternidade ao tema religioso, mesmo trabalhando na segunda parte do século XX, como é o caso da tela acima.
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Maternidade,1950
Gerson Pompeu Pinheiro (Brasil, 1910-1978)
óleo sobre tela
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Gerson Pompeu Pinheiro parecia em 1950 querer se soltar um pouco da rígida associação quando colocou uma mãe com ombros nus e cabelos soltos e um tênue véu, no centro da tela. Mas duas outras características permanecem: o bebê parece estar sendo apresentado ao público como acontecia em muitos quadros da Madona com Jesus bebê durante o século XVI na Renascença. Além disso, a dupla nessa tela está circundada por uma construção que lembra, por arcos e pilastras, o interior de um templo, de uma igreja, com um pequeno altar no lado direito onde vemos uma imagem provavelmente de uma santa [Santa Teresa?] e um faixa de pano de altar ou uma estola sacerdotal.
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Maternidade, s/d
Elsa OS [Elza de Oliveira Souza] (Brasil, 1928)
óleo sobre eucatex, 49 x 34 cm
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Até mesmo a pintora naïf Elsa Os [Elza de Oliveira Souza] usa o cabelo da mãe como um véu e o vestido decorado como um manto bordado a ouro. E pintores como José Moraes, que usam de uma linguagem pós cubista, mesmo assim insistem na fórmula iconográfica de uma senhora, sentada (como se estivesse em um trono) com uma criança no regaço.
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Maternidade, 1964
José Moraes (Brasil, 1921-2003)
Guache sobre papel, 64 x 44cm
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Di Cavalcanti, dentre o pintores brasileiros que cruzam o século XX, parece ser aquele que mais deseja se liberar dos grilhões impostos por essa iconografia. Ele trava frequentemente uma batalha para uma nova imagem. Ocasionalmente consegue, como na tela reproduzida abaixo. Mas nem sempre.
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Maternidade, 1937
Emiliano Di Cavalcanti (Brasil, 1897-1976)
óleo sobre tela
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Mãe e filha, 2009
Reynaldo Fonseca (Brasil, 1925)
óleo sobre tela
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Na obra de Reynaldo Fonseca, pintor de intrigante iconografia própria e conhecido pela subversão de textos, continuamos a ter a frontalidade semelhante à das madonas entronadas da Renascença assim como a ausência de profundidade no espaço em que suas figuras se encontram, típico em seu trabalho. Isso aumenta a semelhança aos ícones bizantinos que retratam a Virgem Maria com Jesus, sobre fundos em dourado, achatando a profundidade. Efeito semelhante é conseguido na pintura de Vicente do Rego Monteiro, mesmo com a estilização das formas que caracterizou sua preferência pelo Art Deco.
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Maternidade, 1924
Vicente do Rego Monteiro (Brasil, 1899-1970)
óleo
Palácio dos Bandeirantes, SP
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O que caracteriza essas semelhanças é a predisposição brasileira, o favoritismo cultural, de fazermos mãe e filho um ícone, um emblema de maternidade. Tudo leva a crer que consideramos a maternidade uma missão “santificada”, única e não uma parte normal, corriqueira do dia a dia de qualquer mulher.
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Maternidade, 1981
Gilberto Gomes (Brasil, 1955)
[técnica não especificada]
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Correndo paralelamente a essa visão temos a representação através do século XX do que se poderia denominar responsabilidadde social: a representação de mulheres com bebês, em estado de absoluta pobreza, revelando o desepero quieto, calado, sofrido com dignidade e abnegação. Essas mulheres continuam em geral sentadas e abraçadas a um filho bebê, imagens semelhantes às das madonas. Os exemplos de Gilberto Gomes, Volpi e de Lucílio de Albuquerque acima ilustrados, ou os quadros abaixo ilustram este fenômeno. É a confluência de dois temas: da mãe, sagrada e da mãe sofredora. Também nessas representações temos principalmente a imagem de mãe e filho em primeiro plano, com um fundo esquematizado, neutro que simplesmente realça o sofrimento implícito. Na imagem de Tomás Santa Rosa abaixo, que a princípio poderia ser mais alegre já que dispõe de mais detalhada paisagem, ao contrário, parece chorar sofrimento, a mãe parece até ter uma coroa de espinhos desmoronada. Tudo parece um grande sofrimento, um calvário, uma tristeza só.
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Maternidade, 1946
Cândido Portinari (Brasil, 1903 – 1962)
Técnica mista, sépia e pincel seco 65 x 49 cm
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Maternidade
Tomás Santa Rosa (Brasil, 1909-1956)
óleo sobre tela, 81 x 65 cm
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Onde está então a alegria de ser mãe? Onde está a senhora brincando com seu bebê, quando até mesmo em altares da Renascença vemos as Virgens Marias brincando com Jesus Cristo, com um pardalzinho, com um gatinho? Por que os pintores brasileiros parecem ter-se limitado a um único tipo de representação de maternidade? Por que se negaram a tratar a pintura de gênero com seriedade? Por que o dia a dia de ser mãe. de brincar com o bebê, de dar banho, de passar a toalha, de levar ao parquinho, à praia, de colocá-lo para dormir, de desfrutar de sua companhia debaixo da sombra de uma árvore, de ler um conto de fadas, por que essas pequenas mas incrivelmente importantes alegrias da maternidade não chegaram a fazer parte do imaginário artístico?
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