Villa-Lobos, texto de Murilo Mendes

4 03 2012

Banda, s/d

J. Roybal (Brasil, contemp)

acrílica sobre tela, 20 x 120 cm

Amanhã, dia 5 de março, comemora-se o Dia Nacional da Música Clássica.  Esta data foi escolhida por ser a data de nascimento de Heitor Villa-Lobos.  Selecionei aqui um poema-prosa, uma crônica de Murilo Mendes para comemorar.

Villa-Lobos

Murilo Mendes

Nasceu para a grandeza e variedade do trabalho-festa; para fazer explodir os ritmos do, segundo Oswald de Andrade, grandioso e desordeiro povo brasileiro .

*

Mais de uma vez fui com ele e outros, homens maduros e mulheres moças, tascar balão lá para os lados de Vila Isabel. Recordas-te, Dantinho, recordas-te, Di?  Ai Jaime Ovalle e Evandro, ai Germaninha, Elsie!   De charuto aceso nosso amigo integrava-se no brinquedo, ria, veloce, recebendo nas mãos, ao cair, enormes flores  juninas de papel  de seda.  Saltava-lhe logo na ponta dos dedos uma melodia criança, dançante.  Pois não escreveu Suzanne K. Langer que toda música é pura dança?  Correndo Villa para o piano, recriava mais uma página do nosso cancioneiro: bem ambientada, dizia ele.  Era na rua Dídimo e dispúnhamos então do farniente.  Gostaríamos de perder muito mais tempo ainda.  Ai Lucília!

*

Villa desponta do morro e da rua, de um corta-jaca de Chquinha Gonzaga, um tango de Ernesto Nazareth, uma polca de Anacleto Medeiros.  Mas quantos outros o instruem: Artidouro da Costa, Calut, Eduardo das Neves, Catulo Cearense.  E os anônimos, os bem-aventurados anônimos fazedores de música não oficial fluindo perene do populário: chorões, seresteiros, sambistas, marchistas que se ocultam na dobra dos tempos legendários da Tia Ciata.

*

Uai gente!  A flauta, o cavaquinho, o violão.  A modinha, a embolada, a serenata.  O carioca passava a vida musicando.  A cada um seu ritmo particular.  Domina tudo a larga faixa do povo, uma categoria!  Pelo menos uma categoria musical.  Viva o carnaval que nos compensava do resto do ano inútil.  Naquele tempo inexistia a máxima desafinação: a bomba atômica.  Pessoas pré-industriais, quase prolongávamos a Arcádia, mal comparando.

*

Villa segundo Murici emprega todos estes instumentos: o camisão, a tartaruga, o tambu, o tambi, o pio, o agogó.  Ritmo nova.  Percute.  Sincopa.

*

O Rudepoema.  Uirapuru. As Cirandas. Mandu-Sarará.  A época dos Choros.  Aparecem os Parecis: Nozaniná. Canide-Ioune. Ualalocê. Kamalalô. As Bachianas, com a participação de Bach e outros, assimilados ao modo brasileiro, “ambientados”. As Três Marias: Alnitah. Anilam. Mintika.  O Guia-Prático de se conhecer o Brasil.  Os jogos da nossa infância: Gude. Diabolô. Bilboquê. Peteca. Pião. Futebol. Soldadinhos de chumbo.  Jogo de bolas.  Capoeiragem. Uma duas angolinhas.  Vai abóbora! O cravo brigou com a rosa. Carneirinho carneirão. A maré encheu. Na Bahia tem. Vamos atrás da serra calunga.  Vamos ver a mula-sem-cabeça briga de galos briga de navalhas a lua dourada sua benção.

*

Tudo o que nós nascemos, crescemos, cantamos, amamos, dançamos, respiramos, comemos, passa pelas ruas de Villa-Lobos. Pelas ruas de Villa-Lobos passa o passo do nosso desafinado, atormentado Brasil.  Todo mundo passa. Quem dera que “bem ambientado” e sem Bomba.

Em:  Transistor: antologia de prosa, Murilo Mendes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1980

Murilo Rodrigues Mendes (1901 —1975) poeta, cronista, jornalista, professor.  Nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais.  Mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro em 1920.  Formou-se em medicina.   Percorreu o mundo divulgando a cultura brasileira.  Na década de 1950 estabeleceu-se na Itália onde ensinou literatura brasileira na Universidade de Pisa.  Faleceu em Lisboa em 1975.

Obra:

Poemas, 1930

Bumba-meu-poeta, 1930

História do Brasil, 1933

Tempo e eternidade – com Jorge de Lima, 1935

A poesia em pânico, 1937

O Visionário, 1941

As metamorfoses, 1944

Mundo enigma, 1945

O discípulo de Emaús, 1945

Poesia liberdade, 1947

Janela do caos, [França] 1949

Contemplação de Ouro Preto, 1954

Office humain [França], 1954

Poesias [Obra completa até esta data], 1959

Tempo espanhol [Portugal], 1959

Siciliana [Itália], 1959

Poesie [Itália], 1961

Finestra del caos [Itália], 1961

Siete poemas inéditos [Espanha], 1961

Poemas [Espanha],1962

Antologia Poética [Portugal], 1964

Le Metamorfosi [Itália], 1964

Italianíssima (7 Murilogrami) [Itália],1965

Poemas inéditos de Murilo Mendes [Espanha], 1965

A idade do serrote, 1968

Convergência, 1970

Poesia libertá [Itália], 1971

Poliedro, 1972

Retratos-relâmpagos, 1ª série, 1973

Antologia Poética, 1976

Poesia Completa e Prosa, 1994


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4 responses

4 03 2012
Avatar de Regina Regina

Tão bom saber que houve quem levasse outras coisas que não futebol e escola de samba para retratar o país!!
Abraço.

4 03 2012
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Mas não é Regina. Eu também estou cansada dessa ultra-simplificação da nossa cultura tão rica, tornada tão pobre pela redução às imagens de samba e futebol. Beijinhos,

4 03 2012
Avatar de Ricardo António Alves Ricardo António Alves

Magnífico.

4 03 2012
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Ricardo, Murilo Mendes sempre me surpreende na sua prosa: é em geral mais poesia do que prosa. Um abraço,

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