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Banda, s/d
J. Roybal (Brasil, contemp)
acrílica sobre tela, 20 x 120 cm
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Amanhã, dia 5 de março, comemora-se o Dia Nacional da Música Clássica. Esta data foi escolhida por ser a data de nascimento de Heitor Villa-Lobos. Selecionei aqui um poema-prosa, uma crônica de Murilo Mendes para comemorar. –
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Villa-Lobos
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Murilo Mendes
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Nasceu para a grandeza e variedade do trabalho-festa; para fazer explodir os ritmos do, segundo Oswald de Andrade, grandioso e desordeiro povo brasileiro .
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Mais de uma vez fui com ele e outros, homens maduros e mulheres moças, tascar balão lá para os lados de Vila Isabel. Recordas-te, Dantinho, recordas-te, Di? Ai Jaime Ovalle e Evandro, ai Germaninha, Elsie! De charuto aceso nosso amigo integrava-se no brinquedo, ria, veloce, recebendo nas mãos, ao cair, enormes flores juninas de papel de seda. Saltava-lhe logo na ponta dos dedos uma melodia criança, dançante. Pois não escreveu Suzanne K. Langer que toda música é pura dança? Correndo Villa para o piano, recriava mais uma página do nosso cancioneiro: bem ambientada, dizia ele. Era na rua Dídimo e dispúnhamos então do farniente. Gostaríamos de perder muito mais tempo ainda. Ai Lucília!
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Villa desponta do morro e da rua, de um corta-jaca de Chquinha Gonzaga, um tango de Ernesto Nazareth, uma polca de Anacleto Medeiros. Mas quantos outros o instruem: Artidouro da Costa, Calut, Eduardo das Neves, Catulo Cearense. E os anônimos, os bem-aventurados anônimos fazedores de música não oficial fluindo perene do populário: chorões, seresteiros, sambistas, marchistas que se ocultam na dobra dos tempos legendários da Tia Ciata.
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Uai gente! A flauta, o cavaquinho, o violão. A modinha, a embolada, a serenata. O carioca passava a vida musicando. A cada um seu ritmo particular. Domina tudo a larga faixa do povo, uma categoria! Pelo menos uma categoria musical. Viva o carnaval que nos compensava do resto do ano inútil. Naquele tempo inexistia a máxima desafinação: a bomba atômica. Pessoas pré-industriais, quase prolongávamos a Arcádia, mal comparando.
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Villa segundo Murici emprega todos estes instumentos: o camisão, a tartaruga, o tambu, o tambi, o pio, o agogó. Ritmo nova. Percute. Sincopa.
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O Rudepoema. Uirapuru. As Cirandas. Mandu-Sarará. A época dos Choros. Aparecem os Parecis: Nozaniná. Canide-Ioune. Ualalocê. Kamalalô. As Bachianas, com a participação de Bach e outros, assimilados ao modo brasileiro, “ambientados”. As Três Marias: Alnitah. Anilam. Mintika. O Guia-Prático de se conhecer o Brasil. Os jogos da nossa infância: Gude. Diabolô. Bilboquê. Peteca. Pião. Futebol. Soldadinhos de chumbo. Jogo de bolas. Capoeiragem. Uma duas angolinhas. Vai abóbora! O cravo brigou com a rosa. Carneirinho carneirão. A maré encheu. Na Bahia tem. Vamos atrás da serra calunga. Vamos ver a mula-sem-cabeça briga de galos briga de navalhas a lua dourada sua benção.
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Tudo o que nós nascemos, crescemos, cantamos, amamos, dançamos, respiramos, comemos, passa pelas ruas de Villa-Lobos. Pelas ruas de Villa-Lobos passa o passo do nosso desafinado, atormentado Brasil. Todo mundo passa. Quem dera que “bem ambientado” e sem Bomba.
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Em: Transistor: antologia de prosa, Murilo Mendes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1980
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Murilo Rodrigues Mendes (1901 —1975) poeta, cronista, jornalista, professor. Nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. Mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro em 1920. Formou-se em medicina. Percorreu o mundo divulgando a cultura brasileira. Na década de 1950 estabeleceu-se na Itália onde ensinou literatura brasileira na Universidade de Pisa. Faleceu em Lisboa em 1975.
Obra:
Poemas, 1930
Bumba-meu-poeta, 1930
História do Brasil, 1933
Tempo e eternidade – com Jorge de Lima, 1935
A poesia em pânico, 1937
O Visionário, 1941
As metamorfoses, 1944
Mundo enigma, 1945
O discípulo de Emaús, 1945
Poesia liberdade, 1947
Janela do caos, [França] 1949
Contemplação de Ouro Preto, 1954
Office humain [França], 1954
Poesias [Obra completa até esta data], 1959
Tempo espanhol [Portugal], 1959
Siciliana [Itália], 1959
Poesie [Itália], 1961
Finestra del caos [Itália], 1961
Siete poemas inéditos [Espanha], 1961
Poemas [Espanha],1962
Antologia Poética [Portugal], 1964
Le Metamorfosi [Itália], 1964
Italianíssima (7 Murilogrami) [Itália],1965
Poemas inéditos de Murilo Mendes [Espanha], 1965
A idade do serrote, 1968
Convergência, 1970
Poesia libertá [Itália], 1971
Poliedro, 1972
Retratos-relâmpagos, 1ª série, 1973
Antologia Poética, 1976
Poesia Completa e Prosa, 1994