Um tesouro, a biblioteca Valmadona, ainda errante e sem destino final

13 05 2011

Dois intelectuais judeus lendo as notícias, 1998

Maher Morcos (Egito, 1952)

Em dezembro de 2010 o patrimônio da Biblioteca Valmadona foi a leilão na Southeby´s de Nova York.  O arrematante, anônimo, pagou bem mais do que os USD $25.000.000,00 – vinte e cinco milhões de dólares de reserva — para adquirir uma das mais espetaculares bibliotecas judaicas.  Intelectuais do mundo inteiro e principalmente aqueles cujas especialidades requerem o conhecimento de textos judaicos incomuns sofreram até hoje por não saber onde foi parar essa coleção assombrosa que havia  tomado as estantes – montadas para este evento – nas paredes dos salões de 220m² da exposição pré-venda da casa de leilões.  Nessas estantes estavam alinhados aproximadamente 13.000 livros e manuscritos colecionados por um só homem: Jack V. Lunzer.  Nascido na Antuérpia em 1924, Lunzer, que hoje vive em Londres, enriqueceu no comércio dos diamantes industriais.  Mas ao longo dos anos foi também colecionando textos escritos e impressos em hebraico.

A coleção que leva o nome de Valmadona – em homenagem à cidade na Itália dos antepassados de Lunzer – é considerada uma mais completas coleções do mundo de textos em hebraico.  Dentre suas curiosidades estão uma Bíblia Hebraica, escrita à mão do ano de 1189 – o único texto inglês em hebraico de antes de 1290, quando o rei Eduardo I expulsou os judeus.  Cabe lembrar que em 1190 os judeus da cidade de York foram massacrados, e seus pertences – entre eles muitos livros, manuscritos – foram roubados e vendidos fora da Inglaterra, onde este texto foi encontrado pelo colecionador.

Exposição pré-venda da Biblioteca Valmadona, Foto: The New York Times.

Outra curiosidade não só pelo volume, mas também pela história de sua aquisição é  uma edição do Talmude da Babilônia, datando de 1519-1523, impresso em Veneza, pelo editor cristão Daniel Bomberg.   O primeiro contato de Lunzer com este volume, foi na Abadia de Westminster, em Londres, onde o achou cheio de poeira, de alguns séculos provavelmente.  Eventualmente veio a adquiri-lo por uma permuta com a abadia, oferecendo em troca uma velha cópia do Registro Original da abadia , um documento com mais de 900 anos de idade.

Surpresas parecem estar escondidas em muitos desses livros.  Quem poderia acreditar, por exemplo, que máximas tais como:  Faça dos seus livros seus companheiros, ou Deixe sua estante de livros ser o seu jardim, já eram conselhos pertinentes no século XII, como está gravado no manuscrito judeu-espanhol do estudioso Judah Ibn Tibbon, em um volume dessa coleção?

Para se ter noção de quão abrangente é a coleção da Biblioteca de Valmadona, talvez valha lembrar, que apesar de a prensa móvel ter sido inventada na Alemanha por Gutenberg, por volta de 1439, e de sua primeira publicação ter sido a Bíblia – hoje chamada a Bíblia de Gutenberg — , judeus  no século XV não podiam ser membros das guildas de imprensa, na Alemanha.  Por causa disso, os livros publicados em hebreu através da prensa móvel apareceram primeiro na Itália, a começar por Roma em 1470.  Depois disso, diversas outras cidades italianas deram licenças para a impressão de livros em hebreu.  Mas essas permissões eram dadas e retiradas com grande facilidade, ao bel-prazer dos dirigentes locais.  Um exemplo disso vem da cidade de Cremona, onde a permissão para a impressão de textos durou só 10 anos, de 1550 a 1560.  Pois cada um dos livros publicados nesse período em hebreu está presente na coleção arrebanhada por Lunzer.

Foto: The New York Times.

Quando se fala dessa coleção espetacular temos também que lembrar das vicissitudes que circundaram os textos hebraicos.  No artigo do The New York Times, A Lifetime’s Collection of Texts in Hebrew, at Sotheby’s Edward Rothstein, nota que só o Talmude, por exemplo, foi objeto de grandes perseguições; esses textos legais, foram confiscados em Paris em 1240, na Alemanha em 1509, e queimados por decreto papal na Itália em 1553.  Que ainda haja cópias intactas e que uma pertença a uma coleção de judaica é uma demonstração não só da persistência que Lunzer demonstrou ao coletar esses textos, mas também da raridade de alguns exemplares da produção intelectual de um povo.

Lunzer  não se interessou nunca pelas publicações em hebreu das Américas.  Sua atenção estava voltada para a documentação das várias comunidades judias no mundo, efêmeras, publicações de séculos passados, de comunidades que produziram textos em hebraico. Como ele mesmo lembra, no artigo mencionado acima, cada um desses volumes só foi impresso quando alguém deu  permissão para ser impresso.  “Cada um deles chora sua própria história.”  Mas hoje, aos 86 anos, Lunzer quer ter certeza de que sua busca, compra e a arrecadação desses textos, servirá para futuras gerações de estudiosos.  Esse será um de seus legados.

Foto: The New York Times.

Grande ansiedade tomou conta dos estudiosos  desde a conclusão do leilão da Biblioteca Valmadona, pela Southeby’s em dezembro de 2010.  O que todos se perguntavam até recentemente era: onde foram parar esses livros, esses documentos da nossa herança cultural?  O arrematante continuava anônimo e uma grande dúvida pairava no ar, até que neste início de maio, através de um artigo de Paul Berger, no The Jewish Daily Forward, Treasured Judaica Library, Feared Lost, Is Back On the Market, ficou-se sabendo que a compra não foi efetuada.  Na verdade, a coleção inteira, todos os seus 13.000 volumes, ainda estão na casa de leilões em Nova York.  Aparentemente o comprador não conseguiu provar para satisfação da Fundação da Biblioteca Valmadona, que as condições de compra iriam ser cumpridas.

E quais são essas condições?

A coleção precisa ser mantida junta, sem venda de qualquer texto, por mais insignificante que pudesse ser considerado.  Essas condições foram claramente enunciadas antes do leilão, e foi justamente para proteger esse patrimônio que a Fundação da Biblioteca Valmadona foi criada. No entanto, após o leilão, o comprador se viu forçado a retirar seu lance, uma vez que não pode demonstrar satisfatoriamente para os interessados que tinha interesse, poder e o compromisso de manter as condições estipuladas pré-venda.

Jack V. Lunzer, foto: The New York Times.

Todo mundo sabe que a coleção Valmadona oferece uma oportunidade sem igual de se adquirir uma das grandes bibliotecas judaicas privadas”, admite Sharon Lieberman Mintz, curadora de arte judaica da Biblioteca Teológica Judaica de Nova York e que também é consultora-sênior de arte judaica da Southeby’s.  A julgar pelo número de visitantes da exposição pré-venda, mais de 4.000 pessoas por dia, formando filas em volta do quarteirão, Sharon Lieberman Mintz  mostra que está certa, o grande público já se conscientizou do valor do trabalho de aquisição a que Lunzer se dedicou nos últimos 50 anos.  E não é por falta de interesse que bibliotecas do mundo inteiro continuam tentando levantar fundos para adquirir este tesouro.  A Biblioteca do Congresso nos Estados Unidos ofereceu, em 2002,  USD 20.000.000 – vinte milhões de dólares, para a biblioteca que estava avaliada na época em USD 30.000.000.  Apesar de negociações dos dois lados, o acordo de compra não foi validado.  Há ainda muitas outras instituições interessadas,. Entre elas conta-se  a Biblioteca Nacional de Israel, os departamentos de Estudos Judaicos tanto da Universidade de Columbia em Nova York assim como seus equivalentes da Universidade de Pensilvânia, Universidade de Nova York, entre outras.

O custo parece ser até agora o obstáculo mais mencionado. Talvez seja um símbolo dos interesses de nossa época, se levarmos em consideração que ontem, dia 12 de maio de 2011, um único quadro do artista Andy Wharol, LIZ NUMBER 5  [um retrato da artista Elizabeth Taylor] vendeu em leilão na Phillips de Nova York, por USD $ 27.000.000 – vinte e sete milhões de dólares.  É uma pena que uma coleção com 13.000 manuscritos históricos não consiga levantar o mínimo de USD$ 25.000.000 – vinte e cinco milhões de dólares necessários para sua aquisição.

Mas a esperança de que essa coleção ainda vá ser comprada por uma instituição pública não morreu. Desde que a notícia circulou pelos meios intelectuais sobre a venda frustrada, e sobre a volta ao mercado dessa coleção, o interesse na Biblioteca Valmadona parece ter re-acendido.  Seria uma grande aquisição para qualquer biblioteca do mundo, em qualquer lugar.  Porque a história dos judeus está tecida na história do mundo ocidental de maneira inescapável, e uma biblioteca como essa certamente tornará qualquer cidade, em que a coleção se estabeleça, num grande centro de pesquisa internacionalmente aclamado.


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4 responses

14 05 2011
Avatar de Letícia Alves Letícia Alves

Ladyce,
Não conhecia esse caso e fiquei pasma com a trajetória e o desfecho até agora.
Também penso que alguma instituição pública mundial a compre, penso que a Library of Congress seria uma das mais adequadas, claro, se aumentasse o valor.
Vamos ver no que dá, o que não pode acontecer é ela se desfazer ou ficar impedida de ser consultada.
Obrigada por compartilhar essa informação!
Beijos,
Letícia

14 05 2011
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Pois é, Letícia, eu fiquei surpresa também com o desenrolar dessa história. Agora, quando trabalhava nas artes, me lembro de alguns casos de doações feitas a museus, grandes museus de Washington DC a Paris, que às vezes trazem alguns problemas. Há casos de quadros que mais tarde, digamos 30-50 anos depois da doação, descobre-se não serem verdadeiros… e o que se faz? Sabe-se mas não se diz nada, porque o tal quadro falso tem estipulação pela doação feita ao museu de não ser separado do resto da coleção… Curadores com frequencia, no caso de museus, recorrem a artifícios — colocam o quadro em longo período de restauração, mudam o lugar de sua exposição para um de pouco acesso… e assim por diante. Até mesmo bibliotecas têm problemas semelhantes com doações — Harry me lembrou de um caso em uma das universidades que ele frequentou que depois de anos de um certa doação, teria sido mais interessante a biblioteca trocar alguns volumes por um manuscrito raro… [ como fez a biblioteca da abadia de Westminster, como no artigo da coleção Valmadona] … e a biblioteca ficou com as mãos amarradas e não pode adquirir alguma coisa muito mais valiosa por causa de um acordo muito restitivo anterior … Não sei se estou me fazendo entender porque não quero citar nomes de instituições que são muito famosas e que procuraram um meio ou outro de contornar, mudar, desviar algumas restrições impostas por doadores. Talvez esse tenha sido um dos impecillhos de compra pela Biblioteca do Congresso, que como qualquer outra biblioteca se dá ao direito de melhorar o seu acervo através de trocas e outros ajustes internacionais. Aliás, assim que vim de volta ao Brasil, eu me lembro dos jornais — O GLOBO — fazer um escarcéu porque uma entidade governamental — ou a Biblioteca Nacional oou o Museu de Belas Artes — queria justamente fazer isso, melhorar o acervo com uma permuta — e foi uma gritaria enorme, como se o povo — que não´é treinado nisso — tivesse a opção de decidir o que deve ou não ser feito… Foi uma vergonha e o assunto depois saiu da pauta e espero que aquela instituição tenha podido fazer o que o curador dos livros ou dos quadros — não vou ser específica — tenha decidido… Mas uma das heranças que temos hoje da ditadura é que com a chegada da democracia todos acham que devem dar os seus palpites, e que todos os assuntos são para serem resolvidos no voto popular… Isso desfaz a necessidade de especialistas… a necessidade de estudo.. Enfim, este é um outro assunto…. Procurei muito saber se havia alguma informação sobre o porquê do acordo com a Biblioteca do Congresso não ter sido fechado, mas há — definitivamente — um voto de silêncio sobre o assunto… Acho importante a gente por aqui ficar de olho em como esses acordos acontecem… Um dia — e não será muito longe eu espero — o Brasil poderá estar dando seus lances em coleções tão importantes quanto essa… Isso é claro se decidirmos valorizar a educação… Ainda não parece ser um objetivo desse governo, pelo menos por enquanto. Obrigada pela leitura, um beijinho, Ladyce

14 05 2011
Avatar de Maria de fatima Moraes Rodrigues Maria de fatima Moraes Rodrigues

Amiga, esse post é de um valor incalculável, feliz de ter acesso a essa informação, como sempre lhe digo, seu trabalho é sensacional. parabéns, parabéns!
Tomara que a sua preservação se dê através de uma Instituição Pública.
Afetuoso abraço.

14 05 2011
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Obrigada, minha amiga, muito obrigada. Um beijinho e o desejo de um ótimo fim de semana!

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