O edifício do Senado Brasileiro, ná época do Segundo Império.
Inspirada no picadeiro em que se transformou o debate sobre o desmando no uso da coisa pública no Brasil, ou em outras palavras, no uso sem cabimento do dinheiro público dos nossos legisladores, voando pelo mundo às nossas custas, voltei-me para um texto delicioso de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), escrito em 1855, sobre a política no império. Quem ainda não conhece este romancista brasileiro, ou que só o conhece pelas obras românticas que leu na escola como A moreninha, O moço louro, As mulheres de mantilha, e outros tantos títulos; precisa se dar o presente de consultar seus outros escritos. Joaquim Manuel de Macedo foi um grande escritor, crítico voraz dos hábitos e costumes brasileiros, muito sarcástico mas também muito bem humorado nas suas críticas. Foi também um poeta, um teatrólogo, um memorialista e um biógrafo. Acredito que ainda não tenhamos lhe dado o lugar que merece na história do pensamento brasileiro.
A passagem que se segue é de seu romance A carteira de meu tio, onde ele descreve o político brasileiro da época. O que parece inacreditável: passados 150 anos e com pouquíssimos ajustes suas descrições vestem como uma luva o que presenciamos no Congresso em Brasília. Então, vamos lá:
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Ora pois, consideremos ao acaso um de tantos: seja aquele figurão que ali vai repotreado em um magnífico e soberbo carro.
Era há poucos anos um miserável diabo, que vivia de suas agências, e mais não disse; não tinha onde cair morto, e portanto ninguém fazia caso dele: mas não há nada como ter juízo!… O maganão atirou-se ao comércio, e foi de um salto ao apogeu da fortuna; eis o caso: primeiro abriu uma casa de secos, e quebrou; meteu-se logo nos molhados, e quebrou outra vez – excelente princípio! O quebrado ficou inteiro, e os credores com alguns pedaços de menos; depois, dinheiro a juros, três ou quatro por cento ao mês para servir aos amigos; um pouco mais aos indiferentes; duas dúzias de alicantinas por ano, e o suor alheio nos cofres do espertalhão: uma terça deixada em testamento por um estranho, e arrancada aos malvados parentes do morto; aqui há anos atrás o comércio de carne humana, que era um negócio muito lícito, negócio molhado e seco ao mesmo tempo, porque se arranjava por mar e por terra, terra marique: vai senão quando, no fim de dez ou doze anos, o pobretão aparece milionário.
Mudam-se as cenas; dantes ninguém tirava o chapéu ao indigno tratante, olhavam-no todos com desprezo, era um bicho que causava tédio, além de mau, era pobre; mas, ó milagrosa regeneração! ó infalível poder do ouro! o antigo malandrim já é um homem de gravata lavada! banhou-se no Jordão da riqueza, e ficou limpo e puro de todas as passadas culpas!…
E por onde chegou ele ao cume das prosperidades? – pelos desvios: se tivesse vindo pela estrada real, estava na esteira velha.
É verdade que o tal bargante, para se enriquecer, fez a desgraça de muita gente: mas que tem isso?… não goza ele agora muito sossegadamente a sua imensa riqueza?…
Quebrou fraudulentamente, pregou calotes, ofendeu as leis de Deus, e zombou das leis dos homens; ora viva! Coisas do tempo da nossa avó-torta; águas passadas não movem moinho; dize-me o que tens, que eu te direi o que vales: bravo o nosso figurão!…
Todos o festejam, diplomatas conselheiros, senadores, deputados, ministros, enfim, a fidalguia toda da terra!
Dizem que é sedutor e libidinoso; histórias da carochinha! Todas as portas se abrem para ele, todas as famílias o recebem em seu seio!
Se dá um baile, não há fidalgo que deixe de ir dançar na casa do ex-velhaco; se é solteiro, ainda que seja feio, velho, e tenha fama de mau e de bruto, as mães metem-lhe as filhas pelos olhos adentro.
Quando aparece no teatro, os grandes figurões quase que quebram o espinhaço, fazendo-lhes cortesias.
Antigamente era um farroupilha, um trapaceiro desprezível; agora é o amigo de cama e mesa do senhor marquês; é o compadre da senhora viscondessa, é o fidus Achates do senhor conselheiro; é o querido, o nhonhô, o não-me-deixes das moças. O diabo do dinheiro faz até de um mono um cupidinho, e transforma uma azêmola em um rouxinol
Dizem que é estúpido: elegem-no deputado, ou votam nele para senador. E fica sábio!…
Tem fama de gatuno: nomeiam-no tesoureiro. E fica honrado!
Acusam-no de todos os sete pecados mortais, e ainda dos quatro que bradam ao céu: fazem-no juiz ou mordomo das dez irmandades! E fica santo!…
Passa enfim a vida regalada, embora alguns nas costas lhe mordam; tem tudo quanto deseja e aspira: festas, favores e honras, ainda que pela boca-pequena o abocanhem; e para dizer tudo, fica sendo um senhor da terra, como muitos outros senhores da terra.
Viva, pois, o dinheiro, que tudo o mais é história!
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Em: A carteira de meu tio, Joaquim Manuel de Macedo, Porto Alegre, LP&M:2001, 50-52.
Joaquim Manuel de Macedo (Itaboraí, 24 de junho de 1820 — Rio de Janeiro, 11 de abril de 1882) foi um médico e escritor brasileiro: romancista, poeta, cronista literário e dramaturgo.
Em 1844, Joaquim Manuel de Macedo, formou-se em Medicina no Rio de Janeiro, e no mesmo ano estreou na literatura com a publicação daquele que viria a ser seu romance mais conhecido, “A Moreninha“, que lhe deu fama e fortuna imediatas.
Além de médico, Macedo foi jornalista, professor de Geografia e História do Brasil no Colégio Pedro II, e sócio fundador, secretário e orador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, desde 1845. Em 1849, fundou, juntamente com Gonçalves Dias e Araújo Porto-Alegre, a revista Guanabara, que publicou grande parte do seu poema-romance A nebulosa — considerado por críticos como um dos melhores do Romantismo. Foi membro do Conselho Diretor da Instrução Pública da Corte (1866).
Abandonou a medicina e criou uma forte ligação com Dom Pedro II e com a Família Imperial Brasileira, chegando a ser preceptor e professor dos filhos da Princesa Isabel.
Macedo também atuou decisivamente na política, tendo militado no Partido Liberal, servindo-o com lealdade e firmeza de princípios, como o provam seus discursos parlamentares, conforme relatos da época. Durante a sua militância política foi deputado provincial (1850, 1853, 1854-59) e deputado geral (1864-1868 e 1873-1881). Nos últimos anos de vida padeceu de problemas mentais, morrendo pouco antes de completar 62 anos.
Obras:
Romances
A Moreninha (1844)
O moço loiro (1845)
Os dois amores (1848)
Rosa (1849)
Vicentina (1853)
O forasteiro (1855)
Os romances da semana (1861)
Rio do Quarto (1869)
A luneta mágica (1869)
As Vítimas-algozes (1869)
As mulheres de mantilha (1870-1871).
Sátiras políticas
A carteira do meu tio (1855)
Memórias do sobrinho do meu tio (1867-1868)
Dramas
O cego (1845)
Cobé (1849)
Lusbela (1863)
Comédias
O fantasma branco (1856)
O primo da Califórnia (1858)
Luxo e vaidade (1860)
A torre em concurso (1863)
Cincinato quebra-louças (1873)
Poesia
A nebulosa (1857)

Joaquim Manuel de Macedo é o patrono da cadeira número 20 da Academia Brasileira de Letras (ABL).





