Insônia, poesia de Reynaldo Valinho Alvarez

9 11 2023

Insônia

Joana Aslanian (EUA, contemporânea)

óleo sobre tela, 73 x 91 cm

 

 

Ali onde se pescam amarguras,
a insônia se aprimora nas torturas.

 

 

Insônia

 

Reynaldo Valinho Alvarez

 

 

A manhã se aproxima e é sempre duro

quando o sol rompe a treva e inunda o escuro

de um sono que nem mesmo aconteceu.

Sinto-me novo e inútil Prometeu

a quem bicam o fígado, melhor

dizendo a mente, e que aprendeu de cor

os caminhos da noite soluçados,

como vagidos, em jardins murados,

numa vigília que não se escolheu.

Ah, estradas da noite, ah, poços fundos,

sempre cheios de lodo, tão imundos

deste vazio amortalhado em breu.

Ah, pontes sem destino, cruel fadiga

do tempo debulhado como espiga.

 

 

Em: A faca pelo fio: poemas reunidos, Reynaldo Valinho Alvarez, Rio de Janeiro, Imago: 1999, p.63





“Um domingo uma tarde” poesia de Reynaldo Valinho Alvarez

17 07 2022
Manhã, larva que em tarde se transforma,
obedecendo ao tempo e à sua norma.

 

Um domingo uma tarde

 

Reynaldo Valinho Alvarez

 

um domingo uma tarde um menino na rua

e à frente como um sol uma bola de cor

enquanto acima o sol real se espreguiçando

cai sobre o tempo morno e absorto do passado

em lentas gotas rubras num solene rio

 

um domingo uma  tarde uma árvore frondosa

irrompendo na rua como um cone verde

enquanto as aves chamam o parceiro ausente

e os muros alvacentos gritam sob a luz

o prazer de brilhar na mornidão tranquila.

 

como pedir ao tempo

escasso e errante pingo

que fixe para sempre

a tarde de domingo?

 

Em: A faca pelo fio: poemas reunidos, Reynaldo Valinho Alvarez, Rio de Janeiro, Imago: 1999, p.12





Plaza Mayor, poesia de Reynaldo Valinho Alvarez

26 07 2021

O casamento, [A boda], 1792

Francisco de Goya (Espanha, 1746 -1828)

óleo sobre tela, 269 x 396 cm

Museu do Prado

 
 
Plaza maior

 

Reynaldo Valinho Alvarez

 

 
O mundo, em guerra, não permite abraços.
Mas, nos rostos da rua, há os mesmos traços.

 

 

Diante de Goya, no Museu do Prado,

vejo sombras que as sombras circundantes

parecem reencarnar. Voltando à rua,

vou para o centro velho. Nestes rostos

que me fitam ou não, há retrarados

do mesmo Goya. Sombras tão goyescas

quanto as sombras que vi entre outras sombras.

Assombra-me o prodígio ao sol ardente

de uma Espanha estival. Que liame estreita

os vínculos dos tempos num só tempo?

Que força une as cadeias com que Cronos

ligou as mãos de tantos entre os séculos?

Agora encaro a praça e vou contando,

como os níqueis do bolso,  tantos Goyas.

 

 

Em: A faca pelo fio: poemas reunidos, Reynaldo Valinho Alvarez, Rio de Janeiro, Imago: 1999, p.59

NOTA: esta postagem é uma homenagem a Reynaldo Valinho Alvarez que faleceu esta semana, aos noventa anos. Um dos poetas contemporâneos de que mais gosto, com provam as diversas poesias de alguns de seus livros que possuo.





Estrangeiro, poesia de Reynaldo Valinho Alvarez

24 05 2021

Figura

Darel Valença (Brasil, 1924-2017)

Desenho, 54 x 25 cm

 

 

Quando o tempo no vento se eterniza,
a estranheza do mundo é mais precisa.

 

 

Estrangeiro

 

Reynaldo Valinho Alvarez

 

Sou estrangeiro em todos os lugares.

Inútil procurar-te, aldeia minha.

Subo de escada todos os andares,

com a fria espada a acutilar-me a espinha.

Não sou daqui nem sou de lá. Perdi-me

na indecisão de becos e de esquinas.

Como o pardal diante do gato, vi-me

apanhado por garras assassinas.

Os mapas pendurados nas paredes

riem de mim como insensíveis redes,

rasgando os peixes que já não fogem mais.

Prenderam-me entre muros que abomino

e toda noite entoam-me seu hino

de insultos, gritos e ódios triunfais.

 

Em: A faca pelo fio: poemas reunidos, Reynaldo Valinho Alvarez, Rio de Janeiro, Imago: 1999, p.61