Da minha mesa de trabalho

10 10 2016

 

dsc01492Crisântemos lilás nesta semana de outubro.

DA MINHA MESA DE TRABALHO

A obra é que importa. É o quadro, o livro, o poema. É a partitura, a escultura. Muralha da China, Torre Eiffel, Cristo Redentor.  Domo de Santa Maria del Fiore.  É a cirurgia de sucesso, o remédio que cura,  o para-raios. É a lei de Newton, a máquina a vapor. É isso que fica.  Se os feitos humanos marcaram a nossa presença, nos deram identidade, facilitaram a vida, prolongaram a vida isso é o que importa.  Não interessa saber se Donatello sofria de asma ou se preferia o verão ao inverno. Não é de qualquer importância se Magritte era ou não gago, se Machado preferia as louras. O que restou, aquilo que significa algo para alguém, emocionalmente ou fisicamente, é a obra.  Podemos ter curiosidade sobre como certas escolhas foram feitas e a razão que levou cada um daqueles que contribuíram para a cultura humana a decidir dessa ou daquela maneira.  Mas não é necessário.

Por isso devemos respeitar o anonimato daqueles que preferem proteger sua privacidade. A autora Elena Ferrante, que parece ter tido sua identidade revelada, sofreu, a meu ver, nessa semana que passou, uma grande agressão, um desrespeito à vontade pessoal de permanecer anônima. Elena Ferrante todos sabiam ser um cognome. Mas o quê dá direito a alguém de invadir a privacidade de uma pessoa que não está sob suspeita da justiça, que não apresenta um perigo para a sociedade? Quem disse que “o público tem o direito de saber”?  Quem estipulou isso?  Só porque fez sucesso é obrigada a ter sua vida defenestrada?  Os meios usados pelo repórter americano, examinando traços de riqueza de alguém que mantinha o perfil modesto, foram de grande falta de respeito e total insensibilidade.  Elena Ferrante não foi nem é um caso único.  Há muitos escritores de sucesso que sempre trabalharam com pseudônimos.  Abaixo uma pequena lista –  em negrito o pseudônimo.

Mark Twain – Samuel E. Clemens;  Voltaire — François-Marie Arouet;  O’Henry – William Sidney Porter; Lewis Caroll — Charles Lutdwidge Dodgson; Italo Svevo – Aron Hector Schmitz; Mary Westmacott — Agatha Christie; Agatha Christie – Agatha Mary Clarissa Miller; François Mauriac — Jean Bruller; George Eliot — Mary Ann Evans; Alberto Moravia – Alberto Pincherle; Robert Galbraith — J.K. Rowling; Stendhal — Marie-Henri Beyle; Pablo Neruda — Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto; Paul French — Isaac Asimov; Gérard de Nerval — Gérard Labrunie; George Sand — Amantine-Lucile-Aurore Dupin, Georges Orwell — Eric Arthur Blair.

Em outros campos, na política, Lenine — Vladimir Ilitch Oulianov; Trotsky Lev Davidovitch Bronstein; Stalin — Iossi Vissarionovitch Djougachvili. Nas artes plásticas há um grande número de artistas, conhecidos exclusivamente pelo local onde nasceram, nem por isso suas obras são menos apreciadas:   Caravaggio – Micheangelo Merisi; Pollaiuolo – Antonio Benci; Nos quadinhos um dos mais famosos foi Hergé – Georges Remi, criador de Tintin.

Há muitos outros.  E nem sempre um pseudônimo esconde o nome de uma pessoa.  Às vezes esconde o nome de mais de uma pessoa. Lembro-me do caso do autor de romances água com açúcar que consumi às dezenas no inicio da minha adolescência, publicados na série Biblioteca das Moças, M. Delly.  Este nome era o pseudônimo de um irmão e uma irmã, escritores franceses,  Frédéric Henri Petitjean de la Rosière e Jeanne Marie Henriette Petitjean de la Rosière.

Na França o pseudônimo [nom de plume, uma referência a escritores, “caneta de pena”] é tão respeitado, que é possível tê-lo citado na própria carteira de identidade.

Sinto-me indignada pela invasão de privacidade sofrida pela pessoa (homem ou mulher, ou ambos) que trabalha sob o cognome Elena Ferrante. Não havia necessidade.  O respeito a quem escreve deveria ter sido mantido.

LIVROS SOBRE A MESA — já lidos, à espera de resenhas: Meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout; A última palavra de Hanif Kureish e Guerra de Gueixas de Nagai Kafu.

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Da minha mesa de trabalho

21 09 2016

 

dsc01454Nesta semana um grande buquê misturado de crisântemos e margaridas.

 

 

Passagem do tempo. Quando os bebês nascem é comum os pais saberem o progresso de seus filhos. Engatinham com tantos meses, falam com outros tantos. Sabemos tudo. Quando anda, quando nasce o primeiro dente.

O mesmo não acontece com o envelhecimento. Cada qual envelhece de maneira própria. Uns são grisalhos aos trinta anos, outros só aos sessenta. Engordamos. Rugas se aninham nos olhos. Hormônios desaparecem. Juntas sofrem. Tudo isso em diferentes idades e de maneiras diversas. Somos o resultado das nossas escolhas pregressas, da genética e do acaso.

Estou num momento em que tenho amigas da mesma idade que eu, amigas vinte anos mais velhas e amigas tão jovens que poderiam ser minhas filhas.

Dizem que envelhecer está na cabeça. Não é bem verdade. O corpo envelhece. Há dores. Perde-se audição, visão, um tanto de mobilidade, mesmo para aqueles mais devotos à vida saudável, restrições abundam.. É uma batalha constante o mero sobreviver.

Envelhecer se reflete também nas atitudes. Hoje temos inúmeras melhorias no envelhecer e desafios incalculáveis. Eletrônicos, internet, ferramentas e aplicativos exigem destreza nas mãos artríticas e são uma barreira entre aqueles que se habilitam e os que resistem a inovações.

Recentemente ajudei uma amiga a instalar alguns aplicativos no seu celular. Ela, já na oitava década de vida, saiu da comunicação por papel à comunicação por celular sem passar pelo email. Nunca dominou a arte de receber e passar emails. Ela não está sozinha. Há ainda muita resistência aos “novos métodos”.  A divulgação constante de fraudes na internet não ajuda a quem já fragilizado pela idade, se sente um pária no mundo informatizado. Vulnerável.

A resistência às inovações aumenta a percepção do envelhecimento. Todos nós preferimos o que conhecemos. Mudar requer esforço. Tenho visto muita resistência à entrada nas redes sociais pelas amigas mais idosas. Pena. Perdem a oportunidade de se conectar com netos, sobrinhos, amigos distantes e de fazer novos conhecidos. Já vivem uma vida de grande reclusão, este seria um bom paliativo para o distanciamento. Vejo também resistência ao livro eletrônico. No entanto, ele é de grande ajuda para quem já não enxerga tão bem e para quem não pode levantar muito peso na mão artrítica. Não só o livro ficaria mais fácil de segurar, como o preço reduzido ajudaria no bolso cada vez mais vazio do aposentado.

Produtos eletrônicos poderiam servir melhor a todos, com botões de fácil manejo para dedos imprecisos e explicações claras, beabá, porque nem todos têm um adolescente na família que possa ou queira dar instruções a seus familiares.

Não está fácil essa adaptação ao mundo virtual, para os mais velhos ou para quem resiste a mudanças. Mas assim como temos que nos exercitar e comer equilibradamente, também temos que nos manter em dia com as inovações. Não adianta resistir. O mundo muda, sempre, a toda hora. Mesmo que seja incômodo, temos que ir junto. Seria uma maneira do envelhecimento se tornar um pouco menos restritivo.

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Da minha mesa de trabalho

5 09 2016

 

 

DSC01409Nesta semana: mini crisântemos tingidos de vermelho.

 

 

Promover a leitura entre adultos e adolescentes é um dos meus objetivos há anos.  Saber que muitos adolescentes saem da escola sem conseguir interpretar o que leem é chocante.  E uma vergonha.  Isso me levou a pensar num programa de leitura dedicado ao problema. Está em fase de construção.  No momento coleto informações sobre projetos, fora da escola formal, que tenham tido bons resultados na educação de menores.  Quero aprender com eles.

Na semana que passou visitei um dos mais bem sucedidos projetos de recuperação educacional do Brasil, que serve de modelo para organizações fora do Brasil: Projeto Uerê.

Foi uma visita impactante.  Emocionante para qualquer um de nós que preza a educação.  Localizado na Comunidade da Maré no Rio de Janeiro, o projeto recupera um pouco mais de 400 crianças que se encontram em situação de risco. É uma instituição de ensino alternativo. E as crianças participam até os quinze anos de idade.  Essa escola alternativa usa o método educacional desenvolvido por Yvonne Bezerra de Mello, chamado Uerê-Mello.

Quando entram, as crianças pequenas ainda, já demonstram sequelas causadas pela pobreza, violência familiar, abandono e uma miríade de outros problemas que as colocam em risco. A memória é afetada e com isso o aprendizado formal deixa de fazer o seu papel.

Visitei a escola toda.  As salas de aula das crianças pequenas me surpreenderam com seus jogos de matemática, com o aprendizado em diversas línguas [vi números serem contados em português, inglês, francês, alemão e ioruba], com o conhecimento de geografia e do noticiário do mundo.

Passei um bom tempo também com os adolescentes de 14 anos que fazem parte da orquestra de câmara do Uerê (cordas). Alguns deles vocês podem ver aqui abaixo. São rapazes educados,  gentis, inteligentes e como todos os jovens brincalhões.

Vim para casa renovada e determinada a estabelecer o projeto de leitura para adolescentes. O Projeto Uerê me deixou confiante num Brasil melhor.

 

Cláudio Cardoso6No violoncelo, o cellista Cláudio Cardoso.

 

Erik Lima2No violino, Erik Lima.

 

Luís Felipe Andrade3Violinista Luís Felipe Andrade.

 

Paulo Henrique Conceição2Paulo Henrique Conceição violinista.

 

Luís Eduardo HonoratoMembro da orquestra de cordas, Luís Eduardo Honorato.
Luan Vítor França1Violinista Luan Vítor França.

 

DSC01384Jamming: o immproviso com música popular.

projeto uerê1www.projetouere.org.br

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Da minha mesa de trabalho

29 08 2016

 

 

DSC01323Minha mesa de trabalho, semana 28.08.2016 — margaridas singelas.

 

 

O ponto alto do meu fim de semana foi um casamento. Um casamento diferente. O casal em questão já estava casado no civil há 21 anos.  Na época a situação financeira não permitia nada além do cartório. Mas ficou a vontade da cerimônia religiosa.  Apesar do convívio diário por décadas, os noivos estavam emotivos.  Era uma reafirmação de seus votos, dessa vez perante uma autoridade maior.  A filhota de 18 anos entrou com um dos tios, irmão da noiva: padrinhos. Sua irmã, onze anos mais nova, cobriu a passadeira até o altar com pétalas de rosas vermelhas e brancas.  Duas princesas orgulhosas por seus papeis na vida familiar. A cerimônia transcorreu como qualquer outro casamento, mas o aplauso da plateia de parentes, amigos e vizinhos foi emocional após os votos de fidelidade enunciados e jocosa quando o padre permitiu o beijo nupcial. O clima na igreja,no entanto, foi diferente daquele a que estamos acostumados nos casamentos jovens, de primeira viagem. Não havia aquela tensão dos familiares de um lado ou de outro que se desconhecem. Não havia a esperança de que os noivos pudessem levar o comprometimento por alguns anos.  Como numa cerimônia de bodas de prata todos ali já se conheciam, já tinham se tornado família e amigos do casal, já formavam a unidade familiar que inclui os dois lados, todos se conheciam e conseguiam brincar uns com os outros. O que diferenciou este casamento de outros foi a realização de um sonho de muitos anos, adiado, postergado, frustrado, malogrado pelo sobreviver, pelo trabalho, pelas doenças dos pais, escola para os filhos, pelo bem-estar do núcleo familiar. Por isso o júbilo, a alegria ebuliente, que contagiou a todos.   A festa foi modesta pelos padrões de hoje, mas a alegria e o bom convívio foram genuínos. Estão de parabéns os noivos e suas duas filhas.

Voltei para casa feliz e só na manhã seguinte, refleti  sobre minha reação ao evento.  Por que achei a realização de um sonho acalentado através das intempéries naturais da sobrevivência tão emocionante?  Inusitado mesmo. Por que me emocionei com a realização de um sonho tão pessoal de outra pessoa? Por que achei os votos trocados neste altar mais sérios do que os de outros casamentos que testemunhei?  Havia ali verdadeiro comprometimento e honestidade. Pensei na grandiosidade dos casamentos de hoje, verdadeiros eventos de multidões de convidados, bufês e música até a manhã seguinte. Haveria com isso uma banalização do compromisso que perde a berlinda no meio de tantas distrações?  Ou talvez seja porque acho cada vez mais difícil encontrar aqueles que genuinamente se dedicam aos compromissos que têm com os outros e consigo mesmos. Será?

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