A noiva do tigre, de Téa Obreht, o folclore europeu em nova roupagem

29 09 2011

O tigre na floresta, 1891

Henri Rousseau, le Douanier ( França,1844-1910)

óleo sobre tela, 162 x 130 cm

The National Gallery, Londres.

Assim como milhões de pessoas hoje, cresci com as imagens dos contos de fadas dos desenhos animados de Walt Disney.  São encantadores apesar de estarem longe das histórias ouvidas e recontadas por nossos antepassados, reunidas no século XIX por Andersen ou pelos Irmãos Grimm.  Mesmo depois de ter o desenho animado Bambi rejeitado por educadores atuais, sob a alegação de triste demais para as crianças de hoje, podemos dizer que Walt Disney foi o precursor dos contos de fadas limpinhos, engraçadinhos, passados pela assepsia americana, histórias com maldades limitadas, sem crueldade, diluídas dos terrores de antanho, que a turma do politicamente correto, hoje, entende como o preferencial para a proteção emocional de nossas crianças.  É importante, no entanto, lembrar que a maioria dos contos de fadas tem raízes no folclore europeu, em crenças seculares, ainda vivas nas imaginações das pequenas aldeias, tecidas com os preconceitos culturais de séculos.   Essas antigas histórias refletem a cultura de povos que lutaram pela sobrevivência nos mesmos lugares, nas mesmas regiões geográficas, rejeitando bravamente invasores de outros grupos, outras tribos.  A repetição dessas histórias folclóricas,  até hoje é comum e muitas vezes o pouco que resta de uma identidade cultural, que luta para sobreviver.  São justamente essas lendas que adicionam grande encantamento à narrativa de A noiva do tigre, de Téa Obreht [Leya: 2011].

Esse romance parece um produto criado pela necessidade de honrar uma herança cultural rica,  de não deixar morrer a memória de um povo.  Passado na antiga Iugoslávia – que tinha aproximadamente a área total do estado do Piauí e hoje está subdividida em 6 países [Croácia, Bósnia-Herzegovina, Eslovênia, Macedônia, Sérvia e Montenegro e um protetorado da ONU Kosovo] – parece natural que o choque das guerras, o medo do extermínio, da perda da memória coletiva, esteja presente nos sobreviventes.  Mas o que surpreende nessa narrativa é a habilidade da autora de não situar o romance em nenhum lugar específico além dos Bálcãs, [ela nasceu em Belgrado, hoje parte da Sérvia]; não especificar a época [exceto que foi depois das guerras] e fazer a transição de uma possível narrativa realista para uma narrativa onírica sem emendas.  Um feito extraordinário.

No romance acompanhamos uma pequena viagem feita por Natália, uma médica, que tendo perdido o avô recentemente, aproveita a missão de inoculação de crianças de uma aldeia distante, para recolher os objetos de uso pessoal de seu avô que morreu longe de casa, num lugarejo de fácil acesso à cidade costeira onde a vacinação ocorre.  Nesse ínterim, ela relembra o avô, as histórias que ele contava.  E ficamos a par de alguns mitos e crendices que ainda estão presentes nos dias de hoje, relativos aos rituais de enterro e salvação das almas dos mortos.

Um fato curioso a respeito do texto é a linha de emenda entre o real e o folclore, entre as lendas e o que se passa no mundo moderno: um produto literário, O livro da Jângal de Rudyard Kipling.  Para os que, como eu, tiveram seus anos de juventude envolvidos com escotismo, a figura de Shere Khan, o tigre malvado e bandido das histórias contadas pelo escritor inglês, serve de imediato ponto de conexão entre o real e o imaginário.  A presença dessa obra literária em todos os capítulos do livro nos lembra da importância que uma história, que um conto, pode ter para o seu leitor e por fim, como a memória cultural é enriquecida por aqueles livros ou histórias que nos tocam, e que passam a fazer parte de quem somos.

Téa Obreht

A noiva do tigre foi o romance vencedor do prestigiado Orange Prize para ficção por autora mulher, este ano.  No Brasil, teve uma tradução fluente de Santiago Nazarian, mas teve também algumas falhas de edição que fazem o leitor ter reler para entender.  Cito aqui um único exemplo, mas existem outros. “Voltando de Zdrevkov, parei em Kolac para pegar as balas das crianças, segurando a caixa da loja de conveniência do posto de gasolina quando ia fechá-la.” [sic](página 191, abertura do capítulo 8).   Para os amantes de um romance da ficção fantástica esse é um excelente livro.  Para os que gostam de uma forte voz narrativa também.  Há poucos diálogos, e como nas histórias baseadas na memória oral, há alguma repetição.  Mas o encantamento prevalece.





Literatura como mensagem política, ainda funciona? E o feminismo?

31 05 2011

Moça lendo, s/d

Mikhail Vasilyevich Nesterov (Rússia, 1862-1942)

óleo sobre tela

No jornal The Independent da semana passada, Arifa Akbar no artigo Is feminism relevant to 21st  century fiction?  levantou algumas questões interessantes que pretendem determinar se o Feminismo ainda tem lugar na literatura contemporânea, ou melhor, na literatura do século XXI.

Qualquer produção literária que queira refletir uma posição política ou social corre o risco de ficar comprometida.  Isso serve para o feminismo, para o socialismo, para escrita revolucionária de direita ou de esquerda, e até mesmo para a literatura com a intenção de mudar dogmas pré-estabelecidos nas sociedades:  dos proselitismos religiosos ao missionarismo contra chagas sociais tais como o racismo, purificação das raças, opções sexuais que por mais perversos que sejam são melhor combatidos de outras formas.  O mesmo acontece quando um escritor é comissionado para escrever um romance em que alguma companhia seja a patrocinadora.

Melina de verde, 1930

Emma Fordyce MacRae (Áustria 1887- EUA, 1974)

óleo sobre tela

www.emmafordycemacrae.com

Um caso que me vem à lembrança é o da escritora inglesa contemporânea Fay Weldon. Conhecida por seus temas sociais e feministas, Fay Weldon — que ficou muito famosa com o romance The life and loves of a she-devil – [no Brasil, A Maligna, vida e amores de uma mulher-demônio, Art:1986] um retumbante sucesso no exterior, transformado em roteiro de filme [de menos sucesso]: Ela é o diabo, 1989, dirigido por Susan Seidelman —  aceitou, no início da década passada,comissão da famosa joalheria Bulgari para que fizesse – ao que tudo indica – um  “product-placement” em um de seus romances.  Isso se resume a um anúncio disfarçado de um produto, como quando as marcas de produtos de beleza, hidratantes e muito outros, aparecem nas novelas televisivas brasileiras, para citar um exemplo.  Fay Weldon foi fartamente criticada pela imprensa inglesa, especializada ou não.  O resultado foi um romance meio sem graça, Conexão Bulgari [Record, 2005].  Falo isso com pesar, porque admiro bastante o trabalho da autora que parece sempre estar antenada para assuntos que afetam o universo do comportamento feminino de maneira inteligente, crítica e bem humorada.

Mas a verdade é que em termos de romancistas feministas, Fay Weldon foi, e ainda é, relevante, assim como muitas de suas contemporâneas e sucessoras como Margaret Drabble entre muitas outras, que trouxeram, para um público muito maior do que aquele que lê ensaios sociológicos, o feminismo do dia a dia da mulher do século XX.  Quais outras escritoras contemporâneas conseguiram atingir a tantas mulheres que não se davam conta de que os problemas que enfrentavam eram o que se chamava de feminismo?  Fay Weldon estava dando voz a uma geração pós Doris Lessing, a verdadeira pioneira do feminismo literário na Inglaterra.

Hora da leitura, s/d

John Weiss ( EUA, contemporâneo)

Gravura, 30 x 28 cm

Sempre me senti em cima do muro quanto a feminização dos estudos nas artes.  Duas de minhas melhores amigas, que se formaram em história da arte comigo, tornaram-se especialistas em assuntos feministas, uma delas, hoje,  é diretora da Faculdade de Estudos Feministas de uma grande universidade americana.  E apesar de ter abraçado o movimento feminista com zelo, de ter pertencido à National Organization for Women, sempre achei que um momento chegaria, em que estas especializações não teriam mais sentido de existir.  Talvez fosse pura esperança, de que um dia o trabalho feminino fosse considerado do mesmo valor que o masculino.  Por outro lado, reconheço que até mesmo no fechado círculo dos historiadores da arte, muitas foram as mulheres pintoras e escultoras, cujos trabalhos, que não deixavam nada a desejar em relação aos dos seus colegas homens, só vieram a ser mais ou menos conhecidas  depois que algumas portas se abriram para a pesquisa de campo nesse setor.  Foram e ainda são décadas e décadas de dedicação nos porões de museus conhecidos à procura de artefatos dessas artistas plásticas, desbravadoras das artes.  E os resultados se acumulam.  E não teriam aparecido não fosse a dedicação, a devoção à uma causa, das historiadoras de arte feministas.  Um dos exemplos mais convincentes é o caso da pintora americana Mary Cassatt, que era considerada uma boa pintora impressionista americana, mas que só obteve o lugar de destaque que hoje exibe depois que houve abertura em dois campos de pesquisa que sofriam preconceito:  arte americana (EUA) — quando tudo o que era considerado bom era europeu; e arte por uma mulher, com temas exclusivamente femininos.  A abertura dos estudos feministas e de estudo da arte americana — a princípio muito esparsos — nas maiores universidades dos EUA só se deu mesmo a partir da década de 1970.  E o lucro cultural, além dos valores econômicos que essas “descobertas”  trouxeram é enorme, impossível mesmo de se calcular.  Para não se falar na auto-estima de metade da população do mundo.  O mesmo aconteceu na literatura: nos EUA duas escritoras “re-descobertas” foram Kate Chopin e Charlotte Perkins Gillman.  Dou exemplos dos EUA, porque foi lá que passei grande parte da minha vida profissional, mas o mesmo aconteceu na maioria dos países do ocidente.

Jovem mãe no jardim, s/d

Mary Cassatt (EUA, 1844-1926)

Acredito que nas artes visuais assim como nas literárias haja realmente uma grande diferença de enfoque entre os sexos.  Uma das minhas decisões mais radicais na década de 1990, foi no campo da literatura, eu não iria ler NADA, absolutamente NADA escrito por um homem.   Como leio muito, foi uma década de intenso perambular pela criatividade feminina.  E confesso que adorei, porque há uma diferença palpável na percepção do mundo, da realidade, da fantasia entre homens e mulheres.   O que nos preocupa não é necessariamente o que preocupa um escritor homem.  Menciono isso porque o artigo do jornal The Independent mencionado acima questiona se ainda há a necessidade de se ter um prêmio literário, nesse caso o Orange Prize, exclusivo para  escritoras mulheres. [O Orange começou em 1996 com o propósito de premiar escritoras mulheres, por sua excelência, originalidade.] Não sei.  Provavelmente ainda há.  Ainda que eu acredite — talvez até fantasie — que daqui a uns poucos anos essas divisões não sejam necessárias.  Exemplos das ganhadoras do Orange Prize mostram que o prêmio não foi em vão:  Barbara Kingsolver (2010), Rose Tremain (2008), Zadie Smith (2006).

Mas ao que tudo indica, pelo menos ultimamente, há um sentimento  de aversão, bem delineado, ao feminismo,  uma posição que se reflete na capa e no conteúdo do último número da Revista Granta, [nº 115],  que, numa alusão a um palavrão em inglês,  intitula esta publicação de  The F. word.   Nesse meio tempo, como lembrou Arifa Akbar, a Austrália considera inaugurar um prêmio literário exclusivamente para mulheres.  O que parece é que o Feminismo está mudando de cara.  A fase inicial de contestação e a fase de reconhecimento, pelo menos em alguns lugares do mundo, já se esgotaram.  Talvez não haja oxigênio suficiente para que o Feminismo sobreviva como o conhecemos.  Uma nova variação deve estar a caminho, sem alguns excessos, talvez mais inclusiva.  Talvez seja essa a variação a despontar.  Nada muito diferente da conhecida evolução Darwiniana.  Esperemos.

©Ladyce West, 2011