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Henri Rousseau, le Douanier ( França,1844-1910)
óleo sobre tela, 162 x 130 cm
The National Gallery, Londres.
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Assim como milhões de pessoas hoje, cresci com as imagens dos contos de fadas dos desenhos animados de Walt Disney. São encantadores apesar de estarem longe das histórias ouvidas e recontadas por nossos antepassados, reunidas no século XIX por Andersen ou pelos Irmãos Grimm. Mesmo depois de ter o desenho animado Bambi rejeitado por educadores atuais, sob a alegação de triste demais para as crianças de hoje, podemos dizer que Walt Disney foi o precursor dos contos de fadas limpinhos, engraçadinhos, passados pela assepsia americana, histórias com maldades limitadas, sem crueldade, diluídas dos terrores de antanho, que a turma do politicamente correto, hoje, entende como o preferencial para a proteção emocional de nossas crianças. É importante, no entanto, lembrar que a maioria dos contos de fadas tem raízes no folclore europeu, em crenças seculares, ainda vivas nas imaginações das pequenas aldeias, tecidas com os preconceitos culturais de séculos. Essas antigas histórias refletem a cultura de povos que lutaram pela sobrevivência nos mesmos lugares, nas mesmas regiões geográficas, rejeitando bravamente invasores de outros grupos, outras tribos. A repetição dessas histórias folclóricas, até hoje é comum e muitas vezes o pouco que resta de uma identidade cultural, que luta para sobreviver. São justamente essas lendas que adicionam grande encantamento à narrativa de A noiva do tigre, de Téa Obreht [Leya: 2011].
Esse romance parece um produto criado pela necessidade de honrar uma herança cultural rica, de não deixar morrer a memória de um povo. Passado na antiga Iugoslávia – que tinha aproximadamente a área total do estado do Piauí e hoje está subdividida em 6 países [Croácia, Bósnia-Herzegovina, Eslovênia, Macedônia, Sérvia e Montenegro e um protetorado da ONU Kosovo] – parece natural que o choque das guerras, o medo do extermínio, da perda da memória coletiva, esteja presente nos sobreviventes. Mas o que surpreende nessa narrativa é a habilidade da autora de não situar o romance em nenhum lugar específico além dos Bálcãs, [ela nasceu em Belgrado, hoje parte da Sérvia]; não especificar a época [exceto que foi depois das guerras] e fazer a transição de uma possível narrativa realista para uma narrativa onírica sem emendas. Um feito extraordinário.
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No romance acompanhamos uma pequena viagem feita por Natália, uma médica, que tendo perdido o avô recentemente, aproveita a missão de inoculação de crianças de uma aldeia distante, para recolher os objetos de uso pessoal de seu avô que morreu longe de casa, num lugarejo de fácil acesso à cidade costeira onde a vacinação ocorre. Nesse ínterim, ela relembra o avô, as histórias que ele contava. E ficamos a par de alguns mitos e crendices que ainda estão presentes nos dias de hoje, relativos aos rituais de enterro e salvação das almas dos mortos.
Um fato curioso a respeito do texto é a linha de emenda entre o real e o folclore, entre as lendas e o que se passa no mundo moderno: um produto literário, O livro da Jângal de Rudyard Kipling. Para os que, como eu, tiveram seus anos de juventude envolvidos com escotismo, a figura de Shere Khan, o tigre malvado e bandido das histórias contadas pelo escritor inglês, serve de imediato ponto de conexão entre o real e o imaginário. A presença dessa obra literária em todos os capítulos do livro nos lembra da importância que uma história, que um conto, pode ter para o seu leitor e por fim, como a memória cultural é enriquecida por aqueles livros ou histórias que nos tocam, e que passam a fazer parte de quem somos.
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Téa Obreht
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A noiva do tigre foi o romance vencedor do prestigiado Orange Prize para ficção por autora mulher, este ano. No Brasil, teve uma tradução fluente de Santiago Nazarian, mas teve também algumas falhas de edição que fazem o leitor ter reler para entender. Cito aqui um único exemplo, mas existem outros. “Voltando de Zdrevkov, parei em Kolac para pegar as balas das crianças, segurando a caixa da loja de conveniência do posto de gasolina quando ia fechá-la.” [sic](página 191, abertura do capítulo 8). Para os amantes de um romance da ficção fantástica esse é um excelente livro. Para os que gostam de uma forte voz narrativa também. Há poucos diálogos, e como nas histórias baseadas na memória oral, há alguma repetição. Mas o encantamento prevalece.