Papalivros escolhe os melhores do ano!

16 12 2024

Este foi uma ano confuso no Papalivros e diferente de outros dos nossos 21 anos de encontros, Não lemos 12 livros, lemos 10.  Decidimos também a partir de 2024 não escolher nenhum livro para leitura e discussão em dezembro porque o dia do nosso encontro é sempre de festa e a discussão se esvai.   Por motivos excepcionais, não nos encontramos em maio. 

Dentre as leituras do ano, tivemos dois clássicos brasileiros.  Algumas de nós e eu estou incluída entres essas pessoas, não consideraram os clássicos na votação.  No meu caso, ambos foram livros que já li mais de uma vez e achei injusto considerá-los no mesmo conjunto com livros contemporâneos alguns de autores recentes em suas primeiras publicações.

1 — O melhor do ano

Os enamoramentos de Javier Marías, tradução de Eduardo Brandão, Companhia das Letras: 2012

SINOPSE

O assassinato de um empresário madrilenho é o ponto de partida do romance de Javier Marías, que traz uma reflexão literária sobre o estado de enamoramento.

María Dolz, uma solitária editora de livros, admira à distância, todas as manhãs, aquele que lhe parece ser o “casal perfeito”: o empresário Miguel Desvern e sua bela esposa Luisa. Esse ritual cotidiano lhe permite acreditar na existência do amor e enfrentar seu dia de trabalho.

Mas um dia Desvern é morto por um flanelinha mentalmente perturbado e María se aproxima da viúva para conhecer melhor a história. Passa então de espectadora a personagem, vendo-se cada vez mais envolvida numa trama em que nada é o que parecia ser, e em que cada afeto pode se converter em seu contrário: o amor em ódio, a amizade em traição, a compaixão em egoísmo.

A história, narrada em primeira pessoa por María, sofre as oscilações de seus estados de espírito, de seus “enamoramentos”, evidenciando que todo relato é tingido pela subjetividade de quem conta.

Ao mesmo tempo, a presença incômoda dos mortos na vida dos que ficam é o tema que perpassa este romance, à maneira de um motivo musical com suas variações. Para desdobrar e reverberar esse mote, Javier Marías entrelaça a seu enredo referências a obras clássicas da literatura, como Os três mosqueteiros, de Dumas, Macbeth, de Shakespeare, e, sobretudo, o romance O coronel Chabert, de Honoré de Balzac.

Sustentando com maestria uma voz narrativa feminina, o autor eleva aqui a um novo patamar sua habilidade em nos envolver no mundo interior de seus personagens. Com Os enamoramentos, obra de plena maturidade literária, Javier Marías se reafirma como um dos maiores ficcionistas de nossa época.

Em 2º lugar

Olhai os lírios do campo, Érico Veríssimo, original 1938, Companhia das Letras: 2022

SINOPSE

“Olhai os Lírios do Campo” é um romance poderoso e comovente que convida à reflexão sobre os valores autênticos da vida. No livro, Eugênio Fontes recebe uma chamada do hospital que o alerta para o estado de saúde grave de Olívia. Na viagem até ao hospital evoca o seu passado: a infância infeliz e pobre, os traumas vividos na escola e em casa, o desejo de se tornar um homem rico…É graças aos sacrifícios dos pais que acede a uma educação de excelência e entra na Faculdade de Medicina, onde conhece o amor da sua vida, Olívia.Incapaz de assumir a relação com a colega de turma, Eugênio casa com a filha de um grande empresário, passa a viver de aparências, adultérios e eternas contradições. Mas será que o passado ficará para sempre lá atrás?

Em 3º lugar — houve empate e curiosamente ambos os autores residem no Paraná.

SINOPSE – Cora do Cerrado

Na década de 80, Cora,uma jovem mãe interrompe seus estudos para se casar e ir viver na fazenda de seu novo marido, no Cerrado brasileiro.

Vivendo longe da cidade, entre grandes extensões de terra vermelha, árvores retorcidas e uma complexa dinâmica familiar, Cora tenta criar seus filhos, produzir alimentos e se proteger dos olhares alheios.

Da interação com as mulheres locais, aprende a curar com ervas e a viver em harmonia com a natureza selvagem. Descobre que a solidariedade é a resistência silenciosa contra as convenções que as aprisionam. Seu maior desafio a vencer não é o lugar inóspito, mas sim as pessoas que ali habitam.

SINOPSE — Ojiichan

Terceiro romance do escritor paranaense e vencedor do Jabuti Oscar Nakasato, Ojiichan, que em japonês significa “vovô”, retrata a vida de Satoshi a partir do seu aniversário de setenta anos.

A aposentadoria compulsória do colégio onde ele lecionou por décadas é o primeiro dos eventos que o obrigam a confrontar as muitas faces da velhice. Seus colegas preparam uma festa de despedida e os alunos, que carinhosamente o apelidaram de Satossauro, prestam homenagem ao professor. Preocupados em celebrar o merecido descanso após uma vida de trabalho, ninguém ao redor parece enxergar a dor de Satoshi em deixar a rotina e dar início a uma nova fase.

Em casa, as coisas não estão muito melhores. A perda de memória de Kimiko, sua esposa, vai se agravando, e os cuidados com ela recaem sobre ele, sobretudo depois que uma tragédia acomete a filha do casal. Com o outro filho vivendo no Japão e o neto ausente, Satoshi experimenta, de modo estoico, os primeiros sinais da solidão, que só pioram quando ele é obrigado a se mudar para um apartamento menor e se despedir de Peri, seu cachorro. No novo prédio onde passa a morar, a solidão de Satoshi dá as mãos à de d. Estela e Altair, seus vizinhos, cuja história de vida o protagonista descobre aos poucos.

Com a coragem de representar o desamparo em toda sua crueldade, porém avesso a melodramas, Oscar Nakasato toca em pontos sensíveis da sociedade brasileira e provoca a reflexão ao desafiar o final trágico que parece se anunciar: quando Satoshi contrata Akemi como cuidadora de sua esposa, sua vida particular ganha novos contornos e a configuração do cotidiano e da família se alteram de modo inusitado.

Em sua prosa a um só tempo austera e atenta aos detalhes, tão característica da cultura japonesa na qual Nakasato cresceu, Ojiichan mostra que a terceira idade não é a linha de chegada, mas um caminho a ser trilhado, e transborda a beleza e a serenidade necessárias a um mundo ocidental de supervalorização da juventude e da velocidade.





Resenha: Ojiichan, de Oscar Nakasato

2 12 2024

Interior, 1947

Yoshiya Takaoka (Japão-Brasil, 1909-1978)

óleo sobre tela, 50 x 40 cm

 

 

 

Ojiichan é um pequeno livro de grande impacto, repleto de entrelinhas que contam. É o segundo livro do escritor Oscar Nakasato que leio. Meu primeiro, Nihonjin, foi o que o levou ao Prêmio Jabuti, de ficção em 2012, um dos mais importantes prêmios literários do país. Reconhecimento merecido. O novo livro foi escolhido para discussão em novembro, pelo meu grupo de leitura, e teve, coisa rara, 100% de aprovação. Todos os membros ficaram encantados. Ojiichan, que em japonês quer dizer avô, abre a narrativa no dia 8 de julho de 2014, onde coisas importantes acontecem na vida de Satoshi, o brasileiro morador do Paraná, que completa setenta anos naquele dia. Por isso mesmo, ele se despede da escola onde passou as últimas décadas como professor, vítima das regras da aposentadoria compulsória pela idade. Sente-se ainda cheio de vida, com muito a dar, apto a continuar ensinando. Mas não consegue nenhum jeitinho de permanecer na ativa. Nesse mesmo dia ele tem outra surpresa. Tampouco boa. Não costumava apostar em futebol, mas antes da final da Copa do Mundo, induzido pelo constrangimento de ter dito que achava que a Alemanha poderia ganhar o campeonato, acaba fazendo a aposta contrária e vê, com surpresa, o resultado do jogo Brasil-Alemanha, confirmando sua suspeita, quando o time da casa perde de goleada. É o reflexo perfeito do que Satoshi sente dentro de si. Ainda nos momentos iniciais do livro acompanhamos sua viagem, de retorno da cidade de São Paulo, uma viagem de pêsames à irmã, viúva recente. Mas ao chegar em casa descobre que a jabuticabeira que havia plantado no jardim, há mais de trinta anos, havia sido derrubada, a mando de Cecilia, sua filha. Estranha o jardim sem a árvore, sem o aconchego e o prazer que ela lhe dava. Assim é, então, o marcante começo de uma nova etapa na vida do professor. A frase que abre o livro é sucinta, mas nos dá o conteúdo inteiro do que presenciamos. Ela introduz de maneira direta e simples o dilema de Satoshi: “Um homem está velho quando não consideram mais a sua opinião.”

As perdas de Satoshi não se limitam aos acontecimentos narrados acima. Sua mulher, companheira de vida, sofre, há tempos, de demência, perdendo significativamente a memória. Com esse vácuo, vão-se os momentos de companheirismo do casal, as referências mais íntimas. E ainda, mais adiante, Satoshi perde inesperadamente a filha, Cecília, que havia se dedicado a cuidar da mãe doente. Essa é a perda que o faz forçosamente reestruturar a vida. Novos rumos, inesperados, o levam a sair de casa e mudar-se para um apartamento, o primeiro de sua vida, um lugar apertado, para onde não consegue levar nem mesmo seu cachorrinho Peri. Em um pequeno espaço de tempo, tudo que conheceu, tudo para o qual trabalhou, se desfaz. Uma nova vida, nascida a fórceps, com diferentes estruturas, surge. Satoshi aprende à medida que ela se desencadeia.

 

 

Apesar da série de reveses que poderiam contribuir para tornar a velhice, suas perdas naturais ou acidentais em um texto pesado ou melancólico, temos, em seu lugar, uma narrativa meditativa, delicada, tão contida quanto seu personagem principal e pontuada por realizações bem elaboradas que leitores leem mais de uma vez e sublinham e marcam: “o tempo trapaceia, encolhendo-se ou se dilatando sem a permissão do homem.” [61] ou “a sexta-feira vale, principalmente, pela expectativa que se cria com relação ao sábado.” [140].  Oscar Nakasato presenteia o leitor com um livro, de meras cento e sessenta e oito páginas, repleto de ponderações perspicazes ao nos mostrar a paulatina adaptação de Satoshi à nova vida, descobrindo a pluralidade das maneiras de viver que percebe à sua volta.  Ele consegue preservar a seriedade e dignidade que lhes eram naturais, ainda que surpreenda o leitor a cada virada da nova vida, tomando caminhos nem sempre esperados.  Há neste homem um delicioso assombro ao se deparar com pessoas distintas e verdadeiro desejo, ainda que sutil, de se adaptar a circunstâncias que não imaginara ao talhar sua existência.  A chegada ao condomínio, onde dois terços do livro se passa, é marcada por esse momento em que ao abrir a janela ele se depara com a vida de outros, de vizinhos que se ocupam de maneira variada e ainda assim familiar ao que o rodeia.  “Satoshi foi à janela aproveitar a última claridade do dia e observar mais uma vez o condomínio. Sentia-se um pouco constrangido em adentrar os apartamentos da torre Flamboyant através das janelas e das cortinas descerradas” [73]  E por vezes, em sua demência, Kimiko, a esposa que parece não ter um pé na realidade, ecoa de maneira direta aquilo que  Satoshi, não chega a expressar, mas que sabemos ser próximo do que sente, como quando ela pergunta: “Onde é aqui?” [73], logo após o casal se mudar. 

Para os que estão familiarizados com a literatura brasileira, este é um livro repleto de menções abertas e discretos acenos literários.  Alguns autores são citados claramente, às vezes acompanhados pelos títulos de suas obras: José de Alencar, Machado de Assis, Milton Hatoum, Raduan Nassar foram semeados através da narrativa. Ocasionalmente referências vêm indiretamente como nos nomes daqueles que rodeiam Satoshi: a filha Cecília e o cachorrinho Peri, saídos diretamente de O Guarani de Alencar.   Aurélia outra heroína do mesmo autor, do livro Senhora é mencionada abertamente. Outras alusões são bem mais discretas quando, por exemplo, parafraseia o poeta Ferreira Gullar: “…e fantasiava a vida porque a realidade não lhe bastava.” [159]. Essa riqueza de texto aparece também em ligeiras sugestões culturais, como na cena em que Suzana sai do banho enrolada numa toalha, na ocasião em que Satoshi aparece para uma de suas visitas regulares. Essa é uma referência indireta a passagem bíblica do Livro de Daniel, comumente  conhecida comp “Suzana e os anciãos’, cena fartamente retratada na arte ocidental por Tintoretto, Rembrandt, Rubens e outros.  Essas menções culturais, brasileiras ou universais, enraízam a obra no seu meio cultural, dando riqueza ao texto e prazer a quem o lê.  Esses detalhes, essas insinuações, andam ausentes na literatura contemporânea das listas dos mais vendidos, mas são um bálsamo que regala a leitura cuidadosa, traz sorrisos de reconhecimento aos lábios do leitor, comunhão com o escritor e ainda alerta para a conexão das coisas, para o elo invisível que delineia o perfil da cultura retratada.

Oscar Nakasato

É difícil dar ideia da enormidade de temas, descrições,  ponderações que esta leitora sublinhou, marcou, escreveu, anotou.  De muitas, deixo aqui a deliciosa descrição que Altair, um vizinho de Satoshi, faz sobre o jogo de xadrez:  “O peão precisa ter uma paciência maior que os outros, dizia meu pai. Ele poderia, um dia, mudar sua condição humilde, mas deveria dar seus passos com muito cuidado. E todos tinham regras a cumprir. Não se via no tabuleiro uma torre traçando a sua vida por um caminho diagonal, nem  um cavalo seguindo em linha reta. A rainha era poderosa, seus privilégios não eram contestados.” [103]. E dessa maneira, com amigos que nunca pensou fazer, mesmo mantendo parte de seus hábitos e rituais, como continuar a jogar gateball com antigos amigos aposentados, Satoshi renasce, adaptado às novas circunstâncias. É uma nova vida. Ele passa a observar com maior cuidado o seu redor, aqueles e aquilo que o rodeia e pondera: “Mas não é assim o amor, uma reinvenção a cada abraço?” [94]  A velhice para Satoshi trouxe limitações inesperadas, mas o mundo também se ampliou, e há luz naquele horizonte descoberto. Esse é um livro que nos deixa esperançosos.  Que nos tira dúvidas, eleva pensamentos, satisfaz.  Leia.  É ótima literatura. Literatura com letra maiúscula.

Recomendo sem restrições.

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.





Voltando para casa de ônibus, texto de Oscar Nakasato

16 09 2024
Anúncio dos pneus GoodYear Airfoam, 1944.

 

 

 

“No ônibus, Satoshi tentava esvaziar a mente para buscar o sono. Quando percebeu que não conseguiria dormir, retornou a poltrona para uma posição com menor inclinação, abriu uma fresta da cortina e passou quase todo o trajeto , de pouco mais de nove horas, observando o que era possível na madrugada de quase lua cheia. Com a cabeça reclinada no encosto da poltrona, via a paisagem noturna obliquamente. Os morros distantes eram manchas escuras, e deles se viam apenas os contornos delineados em função do firmamento clareado pela lua. As árvores mais próximas surgiam e desapareciam na velocidade controlada pelo pé do motorista. As imagens imediatas eram mais visíveis, mas a cada instante eram consumidas pelo movimento do ônibus e do tempo, enquanto a paisagem distante, teimava em suas retinas insistindo em ficar.” […]

 

 

Em: Ojiichan, Oscar Nakasato, São Paulo: Fósforo, 2024.