O crime, José Américo de Almeida

1 09 2022

A leitora, 1901

Auguste Frederic Dufaux (Suiça,1852-1943)

óleo sobre tela

 

O crime

 

Morava no engenho uma mulher por nome Josefa, conhecida como feiticeira. Tinha três filhos homens: João Duda, Antônio Cuíca e Felizardo, o melhor cortador de cana, que voltou da cidade, num dia de feira, em toda carreira, com a polícia no encalço. Chegando,gritou de longe para meu pai dizendo que acabara de cometer um crime e pedindo proteção. Matara Mesquece, um vendedor de cocada, por uma questão de troco.

Meu pai negou-lhe asilo.  Não admitia criminoso em sua terra, mas nesse dia não jantou e dormiu tarde.

Veio o comandante do destacamento, tenente Moreirinha, e pediu licença para correr a propriedade. Contrariando a tradição de inviolabilidade dos engenhos, meu pai permitiu.

Além de varejar todas as casas, a polícia surrou a mãe do assassino e sua cunhada, mulher de Antônio Cuíca, o que causou indignação a meu pai.

Diziam os moradores que, com a diligência na ilharga, Felizardo tornara-se invisível por ter virado a camisa pelo avesso.  Fugiu e homiziou-se numa usina em Pernambuco, só voltando a Areia depois de prescrito o crime.

 

Em: Memórias: antes que me esqueça, José Américo de Almeida, Rio de Janeiro, Francisco Alves: 1976, pp. 60-61





O brejo, texto de José Américo de Almeida

7 05 2021

Paisagem

Victorina Sagboni (Brasil, 1932-2009)

óleo sobre tela

O brejo

“As pererecas, umas hóspedas invisíveis, anunciavam a mudança do tempo com um canto rascante como um rilhar de dentes.

Passado o verão, a serra transformara-se num chamariz de nuvens saturadas.  As primeiras águas eram violentas e o céu a bombardeava.

Pegava a chover; semanas e semanas pluviosas empapavam o sítio. Um chuvão, cada pé-d’água e fazer um mar no baixio.

A tanajura enfiava-se no chão e o embuá, doente de andar com suas mil pernas, enroscava-se.

Sericóias cantadeiras e araquães amantes da umidade festejavam o dilúvio.

A saparia enchia a noite  com a sua cantiga interminável, entoando as canções do charco, na sua riqueza de ritmos, desde a bigorna do caldeireiro até a arraia-miúda dos tocadores de flautim. Bastava um aguaceiro para animar a folia , vingando a mudez dos peixes.

O caçote, um sapo escuro e esguio, gritava na goela da cobra-preta que, em vez de silvar, coaxava.

A frente da casa espelhava de poças, onde lavandeiras familiares tomavam seu banho, aos casais , com gritinhos amorosos.

Outra pancada d’água e ressoava um canto festivo.  A cachoeira, a gorjear, alegrava os dias e as noites com sua música fluida.

Os meninos pulavam debaixo das biqueiras.

Vinha mais inverno e a terra deixava de ser terra; mal comparando, virava um mar de lama.

A enxurrada corria até os altos e os caminhos eram cortados de atoleiros. Só o jumento tinha uma ciência: farejava o tremendal e, se havia risco, empacava.

Tanta mosca que escurecia tudo. Os animais peludos ficavam em carne viva comidos por essa caterva.

Aí, ninguém aguentava. Com um tempo semelhante tínhamos que levantar acampamento.”

Em: Memórias: antes que me esqueça, José Américo de Almeida, Rio de Janeiro, Francisco Alves: 1976, pp. 37-38