Uma questão de autoria? texto de Umberto Eco

15 04 2023

No. 217, 1998

Davi dalla Venezia (Itália, 1965)

óleo sobre tela, 162 x 130 cm

 

“Um amigo de infância que não encontrava havia anos me escreveu após a publicação do meu segundo romance, O pêndulo de Foucault: “Caro Umberto, não me recordo de ter-lhe contado a história patética do meu tio e da minha tia, mas acho que você foi muito indiscreto ao usá-la em seu romance.” Bem, no meu livro eu conto alguns episódios envolvendo um certo Tio Charles e uma certa Tia Catherine, que na história são os tios do protagonista, Jacopo  Belbo. É verdade que essas pessoas de fato existiram. Com algumas alterações, eu estava contando uma história da minha infância envolvendo um casal de tios meus — mas é claro que eles tinham nomes diferentes dos personagens. Respondi ao meu amigo dizendo que o Tio Charles e a Tia Catherine eram meus parentes, e não dele (e, portanto, os direitos autorais eram meus), e que eu nem sequer sabia que  ele tivesse um tio ou uma tia. Meu amigo se desculpou: deixara-se envolver tanto pela história que achou que havia identificado certos incidentes ocorridos com seus tios — o que não é impossível, pois em tempo de guerra (o período ao qual remontavam minhas lembranças) coisas semelhantes podem acontecer a diferentes tios e tias.

O que acontecera com meu amigo? Ele buscara na minha história algo que estava, isto sim, na sua lembrança pessoal. Não estava interpretando meu texto, mas usando-o. Não é propriamente proibido usar um texto para sonhar acordado, e todos nós o fazemos com frequência — mas não é uma questão pública. Usar um texto dessa maneira significa mover-se nele como se fosse nosso diário íntimo.”

 

Em: Confissões de um jovem romancista, Umberto Eco, tradução de Clóvis Marques, Rio de Janeiro, Record: 2018, p. 33