O físico Carlo Rovelli sobre vida e morte…

13 08 2025

Homem escrevendo carta, 1890

Heinrich Breling (Alemanha, 1849-1914) 

óleo sobre madeira

 

 

“Eu não gostaria de viver como se fosse imortal. Não tenho medo da morte. Tenho medo do sofrimento. Da velhice, embora agora menos, ao ver a velhice serena e bela de meu pai. Tenho medo da fraqueza, da falta de amor. Mas não tenho medo da morte. Não tinha medo quando era jovem, mas então pensava que era apenas porque parecia distante de mim. Mas agora, aos sessenta anos, o medo não chegou. Amo a vida, mas a vida também é cansaço, sofrimento, dor. Penso na morte como um merecido descanso. Bach a chama de irmã do sono, na maravilhosa cantata BWV 56. Uma irmã gentil que logo virá fechar meus olhos e acariciar-me a cabeça. Jó morreu quando estava “saciado de dias”. Belíssima expressão. Eu também gostaria de chegar a me sentir “saciado de dias” e encerrar com um sorriso este breve círculo que é a vida. Posso desfrutá-la ainda, sem dúvida; ainda quero ver a lua refletida no mar; quero mais beijos da mulher que amo, quero a presença dela que dá sentido a tudo; ainda quero mais tardes dos domingos de inverno, deitado no sofá de casa enchendo páginas de símbolos e fórmulas, sonhando desvendar outro pequeno segredo dos milhares que ainda nos envolvem… Gosto da perspectiva de ainda poder beber deste cálice de ouro; a vida que fervilha, terna e hostil, clara e incompreensível, inesperada… mas já bebi muito desse cálice doce e amargo, e se neste exato momento o anjo viesse me dizer: “Carlo, chegou a hora”, não lhe pediria para me deixar terminar a frase. Sorriria para ele e o seguiria.”

 

Em: A ordem do tempo, Carlo Rovelli, tradução de Silvana Cobucci, Ed. Objetiva: 2018





Uma nota sobre a memória, do físico Carlo Rovelli

30 07 2025

Mulher pensativa

Jules Rauschert (EUA, 1896-1975)

óleo sobre tela, 60 x 46 cm 

 

“Somos histórias, contidas naqueles vinte centímetros complexos atrás de nossos olhos, linhas desenhadas por vestígios deixados pela mistura das coisas do mundo, e orientadas a prever acontecimentos no futuro, em direção à entropia crescente, num canto um pouco particular deste imenso e desordenado universo. Este espaço, a memória, junto com nosso contínuo exercício de antecipação, é a fonte do nosso sentir o tempo como tempo, e a nós mesmos como nós mesmos. Pense nisto: a introspecção pode facilmente imaginar que existe sem que exista o espaço ou a matéria, mas será que consegue se imaginar fora do tempo?”

 

Em: A ordem do tempo, Carlo Rovelli, tradução de Silvana Cobucci, Ed. Objetiva: 2018





Carlo Rovelli, considera o tempo…

10 07 2025

A leitura da poesia, c. 1939

Ivan Olinsky (Rússia/EUA, 1878-1962)

óleo sobre tela,  90x 76 cm

 

 

“Bryce e John faleceram há alguns anos. Eu conheci os dois, e adquiri profundo respeito e admiração por eles. Na parede da minha sala na Universidade de Marselha pendurei uma carta que John Wheeler me mandou ao saber dos meus primeiros trabalhos em gravidade quântica. De vez em quando a releio, com um misto de orgulho e saudade. Gostaria de ter-lhe perguntado mais coisas, nos nossos poucos encontros. Na última vez em que o encontrei, em Princeton, fizemos uma longa caminhada. Falava com a voz baixa de uma pessoa idosa, e eu perdia muitos trechos do que ele dizia, mas não ousava lhe pedir que repetisse. Agora ele se foi. Já não posso lhe fazer perguntas, não posso lhe contar o que penso. Não posso lhe dizer que acho que suas ideias eram as corretas e que nortearam toda a minha vida de pesquisa. Já não posso lhe dizer que acredito que ele foi o primeiro a se aproximar do cerne do mistério do tempo em gravidade quântica. Porque ele, aqui e agora, não existe mais. Este é o tempo para nós. A lembrança e a saudade. A dor da ausência. Mas não é a ausência que provoca dor. São o afeto e o amor. Se não existisse afeto, se não existisse amor, não haveria a dor da ausência. Por isso, também a dor da ausência, no fundo, é boa e bela, porque se alimenta daquilo que dá sentido à vida. Conheci Bryce em Londres quando me encontrei com um grupo de gravidade quântica pela primeira vez. Eu era bem jovem, fascinado por essa matéria misteriosa pela qual ninguém se interessava na Itália; já ele era um grande guru do tema. Eu tinha ido encontrar Chris Isham no Imperial College e quando cheguei me disseram que estava na varanda do último andar. Na mesa estavam sentados Chris Isham, Karel Kuchar e Bryce DeWitt, os três principais autores cujas ideias eu estudara durante anos. Lembro a sensação intensa de vê-los ali, através do vidro, conversando tranquilamente. Eu não ousava ir até lá e interrompê-los. Pareciam-me três grandes mestres zen que compartilhavam insondáveis verdades em meio a misteriosos sorrisos. É provável que estivessem apenas decidindo onde iriam jantar. Relembro e me dou conta de que na época eram mais jovens do que sou agora. Isso também é o tempo. Um estranho inversor de pontos de vista. Pouco antes de morrer, Bryce deu uma longa entrevista na Itália, reunida num pequeno livro; só ali percebi que ele acompanhava meus trabalhos com muito mais atenção e simpatia do que jamais teria imaginado com base em nossas conversas, nas quais expressava mais críticas que encorajamentos.

 

Em: A ordem do tempo, Carlo Rovelli, tradução de Silvana Cobucci, Ed. Objetiva: 2018

 





O tempo (t) uma questão de inadequação da linguagem… texto de Carlo Rovelli

17 06 2025
Chico Bento na escola, ilustração de Maurício de Sousa.

 

 

“… o que “é real”? O que “existe”? A resposta é que essa é uma pergunta mal formulada, quer dizer tudo e nada. Porque o adjetivo “real” é ambíguo, tem uma infinidade de significados. O verbo “existir” tem ainda mais. À pergunta: “Existe um boneco cujo nariz cresce quando conta mentiras?”, pode-se responder: “Claro que existe! É o Pinóquio!”; ou então: “Não, não existe, é apenas uma fábula inventada por Collodi”. As duas respostas estão corretas, porque usam o verbo “existir” com significados diferentes. Há tantas maneiras de se dizer que uma coisa existe: uma lei, uma pedra, uma nação, uma guerra, um personagem de uma comédia, um deus de uma religião a qual não professamos, o deus de uma religião em que acreditamos, um grande amor, um número… cada um desses entes “existe” e “é real” num sentido diferente do outro. Podemos nos perguntar em que sentido algo existe ou não (Pinóquio existe como personagem literário, não no registro civil italiano), ou se uma coisa existe num sentido determinado (existe uma regra que proíbe fazer roque no jogo de xadrez depois de mover a torre?). Perguntar-se “o que existe?” ou “o que é real?” em geral significa apenas se perguntar como queremos usar um verbo e um adjetivo.6 É uma questão gramatical, não sobre a natureza.”

 

Em: A ordem do tempo, Carlo Rovelli, tradução de Silvana Cobucci, Ed. Objetiva: 2018





A divisão do tempo, texto de Carlo Rovelli

20 05 2025

 

 

“A função dos relógios é indicarem todos a mesma hora. Mas essa ideia também é mais moderna do que podemos imaginar. Durante séculos, enquanto se viajava a cavalo, a pé ou de carruagem, não havia motivo para sincronizar os relógios de um lugar para outro. Existia um ótimo motivo para não fazê-lo: meio-dia é, por definição, o momento em que o sol está mais alto no céu. Cada cidade ou aldeia tinha uma meridiana que marcava o momento em que o sol estava a meio-dia e permitia regular o relógio do campanário, visível a todos. O sol não chega ao meio-dia no mesmo momento em Lecce, Veneza, Florença ou Turim, porque vai de leste para oeste. Meio-dia chega primeiro em Veneza e bem mais tarde em Turim, e durante muitos séculos os relógios de Veneza estiveram uma boa meia hora adiantados em relação aos de Turim. Cada cidadezinha tinha sua “hora” peculiar. A estação de Paris mantinha uma hora própria um pouco atrasada em relação ao restante da cidade por cortesia aos viajantes.

No século XIX, chega o telégrafo, os trens se tornam comuns e rápidos, e passa a ser importante sincronizar bem os relógios de uma cidade para outra. É difícil organizar horários ferroviários se cada estação tiver uma hora diferente das outras. Os Estados Unidos são o primeiro país a tentar padronizar a hora. A proposta inicial é estabelecer uma hora universal para todo o mundo. Chamar, por exemplo, de “doze horas” o momento em que é meio-dia em Londres, de modo que o meio-dia corresponda às doze horas em Londres e a aproximadamente dezoito horas em Nova York. A proposta não agrada, porque as pessoas são apegadas às horas locais. O acordo é obtido em 1883, com a ideia de dividir o mundo em fusos “horários” e padronizar a hora só dentro de cada fuso. Desse modo, a discrepância entre as doze horas do relógio e o meio-dia local compreende no máximo em torno de trinta minutos. Aos poucos, a proposta é aceita no restante do mundo, e os relógios começam a ser sincronizados entre cidades diferentes.”

 

Em: A ordem do tempo, Carlo Rovelli, tradução de Silvana Cobucci, Ed. Objetiva: 2018





Minutos de sabedoria: Carlo Rovelli

14 05 2025

Autorretrato com Saturno, 2007

Marta Kiss (Hungria, 1974)

óleo sobre tela, 70 x 50 cm

 

 

“Uma origem da ciência talvez seja a poesia: saber enxergar além do visível.”

Carlo Rovelli, A ordem do tempo