Ainda há muitos quebra-cabeças na história da arte…

11 08 2025

Natureza morta com melão, melancia e outras frutas, c. 1810-1820

Hóspede de Saraceni (França, ativo entre 161-1630)

[Pensionante del Saraceni]

óleo sobre tela

Recentemente comprado pelo Kimbell Art Museum, Fort Worth, TX

 

 

O verdadeiro nome do pintor é desconhecido. Sabemos que era francês, mas atuava na Itália. Há diversas obras dele ou atribuídas a ele.  Esses enigmas do passado sempre me fascinaram. Sabe-se que o artista conhecido como Hóspede de Saraceni ou [Pensionante del Saraceni] deveria pertencer a um pequeno grupo de artistas seguidores de Caravaggio, trabalhando em Roma.  

 

 

O vendedor de galinhas, c. 1618

Hóspede de Saraceni (França, ativo entre 1610-1630)

[Pensionante del Saraceni]

óleo sobre tela, 95 x 71 cm

Prado, Madri

 

Esse quadro, O vendedor de galinhas,  talvez seja sua obra mais conhecida.  Provavelmente porque está no Museu do Prado, também.  Vemos um bom desempenho do chiaroscuro desenvolvido tão bem por Caravaggio e também pelo pintor francês Georges de La Tour que é contemporâneo do enigmático Hóspede de Saraceni.

 

 

A negação de São Pedro, c. 1618

Hóspede de Saraceni (França, ativo entre 1610-1630)

[Pensionante del Saraceni]

óleo sobre tela

Museu do Vaticano

 

Nessa Negação de São Pedro é mais clara a influência de Caravaggio, o drama da cena enfatizado pelo chiaroscuro, típico de Michelangelo Merisi (verdadeiro nome de Caravaggio). 

 

E há muitas outras obras atribuídas a esse pintor, algumas cenas religiosas e outras naturezas mortas. Acredito que a IA, através ciência quântica ajudará em muito nas atribuições das obras em questão.  Mas infelizmente não ajudará, creio, na identificação de quem seria o Hóspede de Saraceni.  Pensei nele, porque recebi notificação de que o Museu Kimbell havia comprado a natureza morta colocada acima.





Caravaggio, nas palavras de Murilo Mendes

2 09 2019

 

 

 

Crucifixion_of_Saint_Peter-Caravaggio_(c.1600).jpgCrucificação de São Pedro, c. 1600

Michelangelo Merisi da Caravaggio (Itália, 1571 – 1610)

óleo sobre tela,  230 x 175 cm

Igreja de Santa Maria do Povo, Roma

 

 

♦ “Michelangelo Merisi dito il  Caravaggio porque nascido em Caravaggio, aldeia da região Bergamasca: aos 16 anos já com a pintura no sangue transfere-se para Roma onde executará obras capitais,  a vocação de Mateus na Igreja de San Luigi de Francesi, Paulo a caminho de Damasco e Pedro crucificado, em Santa Maria del Popolo.

♦  De natureza selvagem irreverente anticonformista, prestigiam-no altos senhores, altas putas, eclesiásticos. Divide-se em rixas discussões de rua taverna bordel. Desafia inimigos a duelo, fere, é ferido.

♦  Ataca a rude matéria da vida. Ajudado pela técnica do claro-escuro inventa a pintura objetiva. O povo participa da ação.  Cresce o gênio do detalhe. O realismo transpõe os esquemas herdados, adianta-se em concisão e intensidade: Caravaggio fixa as coisas na sua consistência corpórea, torna polêmica a luz, que passa do elemento secundário a protagonista.

♦  É um deus, o deus Caravaggio. Entre seus numerosos descendentes, Velásquez e Rembrandt. Qual dos três o maior? Nenhum; os três são maiores.

♦  Caravaggio durante uma rixa mata à força de espada um certo Ranuncio Tommaso, que só por isto é inaugurado. Temendo a fúria pontificia foge para Malta onde o grão-mestre da ordem, Alof de Wignacourt, recebe-o em fasto e lhe empresta dois escravos para segui-lo. Futuramente aparentado a Rimbaud, apesar da glória Caravaggio permanece inadaptável, feroz, surdo ao diálogo. Tateando no claro-escuro, bêbado seminu sem flores vagueia pela Itália.

♦  Praia de Porto Ercole (Toscana). Contrai malária. Perde os papéis de identidade, a bagagem e as telas que trouxera de Malta. Tendo litigado com o grão-mestre, os esbirros deste desencadeiam a vingança. Ferido, golpeado no rosto, grita em vão por socorro. Apostrofa os cães e suas fezes. Michelangelo Merisi dito il  Caravaggio, outrora chama, desespera-se de não poder pintar — escuro demais — o abismo do nada que já desvenda; e — claro de mais — o espaço da própria morte.

 

Em: Transístor, Murilo Mendes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1980, pp. 214-215.