Resenha: Línguas, Domenico Starnone

17 07 2025

Moça lendo à janela, 1928

Albert André (França, 1869-1954)

óleo sobre tela, 73 x 61 cm

 

 

 

Línguas, de Domenico Starnone, com tradução de  Maurício Santana Dias, foi o terceiro livro do autor que li. Posso dizer que gostei de sua escrita desde que o encontrei em Assombrações (2018) e Laços (2017). Gosto imensamente de sua voz narrativa: calma, nostálgica, reflexiva.  Sua escrita é de nuances. Ele não precisa abrir o jogo, contar tudo, tintim por tintim. Ele nos deixa espaço para imaginar e sonhar; ar para respirar e tempo para absorver o lugar, os sons, as memórias do autor que se imiscuem com as nossas.

Línguas é um pouco diferente dos outros que li.  Menos fluido. Tem breque. É uma obra em dois tempos. Primeiro vemos o delicioso despertar do primeiro amor de um menino de oito ou nove anos, em Nápoles.  Ele se apaixona por uma menina do edifício em frente ao dele. Ela é bem mais arrojada que ele, flerta com a morte, dançando no peitoril da varanda.  Ela é diferente. Diferente de tudo que ele conhece. Ela não é como ele, do sul da Itália. Vem do norte e por isso, para surpresa do apaixonado garoto, ela fala com outro sotaque, usa vocabulário diverso, demonstra maneira de se expressar inesperada.  A paixão dele, só aumenta.  É o fascínio do outro, do desconhecido.  Mas, para atrapalhar, no horizonte, há Lello, um amigo, que também se apaixona pela milanesa.  Com o triângulo amoroso formado, a briga pela atenção da menina se desenvolve.  Irão às vias de fato?  Deixo isso para descoberta do leitor…  Depois… temos a segunda parte dessa história. Os dois, que em criança haviam sido apaixonados por Emanuela, se encontram, são jovens adultos.  Continuam a não se gostar e nesse encontro, e só então, Lello, o rapaz que sabe tudo de tudo, revela o verdadeiro destino da jovem bailarina de Milão.

 

 

 

Além da fascinante arte narrativa de Starnone, aprecio as diversas referências à literatura clássica em suas obras.  Da mera alusão à mitologia greco-romana, aos contos medievais, vamos nos informando, circundando assuntos cujas menções ecoam e enriquecem o texto.  Em Línguas, a própria abertura, o primeiro parágrafo ele já se refere ao trágico mito grego de Orfeu e Eurídice.  A leitura atenta, já vislumbra, nas primeiras frases que abrem o texto, por causa dessa referência,  um desfecho trágico, uma morte, quem sabe?  

Entre os oito e os nove anos de idade, decidi encontrar a fossa dos mortos. Tinha acabado de aprender nas aulas de italiano da escola a fábula de Orfeu e Eurídice debaixo da terra, onde ela havia ido parar por causa de uma picada de cobra. Eu planejava fazer o mesmo com uma menina que infelizmente não era minha namorada, mas que poderia vir a ser caso eu conseguisse tirá-la das profundezas da terra, enfeitiçando baratas, gambás, ratos e musaranhos.” [7]

 

Domenico Starnone

Línguas apresenta reflexões sobre dois temas constantemente ligados na literatura e no nosso emocional: amor e morte. Desde da Grécia antiga, e até antes disso, a relação entre essas duas profundas experiências fascinou poetas, escritores e filósofos. Por isso, não é surpresa que Starnone os considere, mesmo ao falar do primeiro amor — aquela paixão emocional que nasce na infância dos personagens, vista pelos olhos de quando eram crianças. Mas o texto é mais rico ainda, como complemento há contrastes entre juventude e velhice, línguas faladas tão próximas umas das outras e ainda assim estranhas.  A riqueza do  texto encanta e seduz.

Esse é um livro que aflora a sensibilidade do leitor.  Não é repleto de fortes emoções ou de diálogos arrebatadores. Starnone é mais fino, dedica-se a tênues paralelos. As observações desse menino de nove anos são curiosas, engraçadas, trazem um leve humor para o texto, mas nem por isso deixam de ser perspicazes, deixam de elaborar complexos argumentos. Boa leitura.  Dessas que adicionam. Recomendo sem restrições. 

 





A Peregrina escolhe os melhores livros do ano!

28 12 2023

Interior com senhora lendo

Albert André (França, 1869-1954)

óleo sobre tela, 50 x 65 cm

Musée de Belas Artes de Lyon, Coleção Tomaselli

 

 

Este foi um ano irregular de leituras.  Ou seja:  muitos livros começados.  Muitos livros sem terminar.  Muitos livros terminados aos trancos e barrancos.  Muitos livros relidos.  Muitos livros lidos exclusivamente para aulas.  E alguns meses sem qualquer vontade de ler.  Dizem que o vai e volta é típico de quem passa pelo processo de luto.  Termino este ano consciente que faz um pouco mais de um ano e meio que me encontro viúva; o luto realmente mexe com a cabeça da gente.  Mas daqueles que li tenho alguns que achei MUITO BONS.  Como sempre, posto aqui a lista dos que li para depois colocar meus favoritos. 

 

Lições, Ian McEwan

Ninféias negras, Michel Bussi

A tenda vermelha, Anita Diamant

O mistério de Henri Pick, David Foenkinos

Hotel Portofino, J. P. O’Connell

Orgulho e preconceito, Jane Austen — RELIDO desta vez em português

A última livraria de Londres, Madeline Martin

Uma mulher singular, Vivian Gornick

Caderno proibido, Alba de Cespedes

O sol também se levanta, Ernest Hemingway 

Véspera, Carla Madeira

Noites Brancas, Fiódor Dostoiévski

Berta Isla, Javier Marías  — RELIDO

Garota, mulher, outras, Bernardine Evaristo

A vida peculiar de um carteiro solitário, Denis Thériault — RELIDO

Casas Vazias, Brenda Navarro

A boa sorte, Rosa Montero

As vitoriosas, Laetitia Colombani

O peso do pássaro morto, Aline Bei

Vermelho amargo, Bartolomeu Campos de Queirós  RELIDO

Confissões, Kanae Minato

A arte da rivalidade, Sebastian Smee

Autobiografia, Agatha Christie  RELIDO

A cidade e as serras, Eça de Queiroz  RELIDO

Laços, Domenico Starnone

A elegância do ouriço, Muriel Barbery  RELIDO

Violeta, Isabel Allende

O apartamento de Paris, Lucy Foley

O hotel na Place Vendôme: Vida, morte e traição no Ritz de Paris, Tilar J. Mazzeo

Ficções, de Jorge Luís Borges

Uma relação Imprópria, Barbara Pym  RELIDO, desta vez em português

2030: Como as Maiores Tendências de Hoje Vão Colidir com o Futuro de Todas as Coisas e Remodelá-las, Mauro F. Guillén

Incidente em Antares, Érico Veríssimo

 

Ao todo foram trinta e três livros.  Entre eles oito relidos.  Quase um quarto deles. Seis escolhidos como os melhores do ano.

 

 

 

 

Em primeiríssimo lugar:

Uma mulher singular, de Vivian Gornick.  Uma autobiografia  de uma mulher moderna, intelectual, que mantém o ritmo sincopado da cidade de Nova York,  onde vive.  Não é linear.  Não é a história completa de uma vida. Tampouco é um livro para todo leitor.  Mas é fascinante, revela uma era, uma mente curiosa e desvenda um conhecimento literário muito maior do que o de grande parte dos leitores.  É um livro que eu gostaria de um dia poder escrever, mas acredito que só esta autora poderia fazê-lo.

Em segundo lugar:

Ficções de Jorge Luis Borges. Que desafio!  Que brincadeira com a mente dos leitores.  Extraordinário.  Este livro terei que reler ainda algumas vezes. Mas é tudo o que haviam anunciado e muito mais. Que passeio entre a realidade (ela existe?) e o sonho.  Definitivamente um livro que não pode deixar de ser lido. Labiríntico.

Em terceiro lugar:

Incidente em Antares, Érico Veríssimo.  Ah, que prazer!  Uma comédia, uma crítica social, um retrato em que ainda nos reconhecemos!  Um prazer esta leitura, um divertimento que me fez refletir, sobre a nossa cultura, o nosso momento, sem amargor.  Muito bom.         

 

      

 Os outros três, também excelentes leituras: Laços, de Domenico Starnone; Lições de Ian McEwan e Caderno proibido de Alba de Céspedes.  Recomendo todos três (dois italianos e um inglês, que ano diferente!) para quem queira ler obras reflexivas com qualidade literária de primeira!